Se llamava Manuel, nació en España,
su casa era de barro, de barro e caña.
Las tierras del señor humedecían
su sudor y su llanto dia tras dia.
Introduzi a primeira quadra dum belíssimo poema de Joan Manuel Serrat, para falar de um certo Manuel, que não nasceu em Espanha, mas cuja vida foi igualmente sofrida. Chamava-se Manuel, nasceu no interior norte deste país, que para alguns - muito poucos - é um jardim à beira-mar. Quarto filho de uma pobre mulher que nunca conheceu marido, nasceu em Abril, precisamente onze dias depois, do desastre português na batalha de La Lys.
Nunca frequentou a escola, pois começou a trabalhar ainda menino. Os filhos do patrão, ensinaram-lhe a ler e a escrever. A meninice e a juventude ficaram para trás nessa pequena aldeia, no dia em que migrou para o sul procurando melhor vida. Na margem sul do Tejo, começou a trabalhar numa Seca de Bacalhau. Aí conheceu a mulher com quem casou e que viria a ser a companheira de toda a vida. Sua casa não era de barro, não. Era um barracão de madeira, assente em pilares de cimento à beira-rio, que o patrão lhe tinha cedido e do qual não pagava renda. Tinha teto, mas não tinha água nem luz. Aí lhe nasceram três filhos em menos de três anos. Como se não fosse suficiente o sacrifício, de sustentar uma família com um ordenado miserável, ainda trouxe para a sua casa os dois cunhados mais novos, pouco mais velhos que a sua primeira filha, quando a sogra adoeceu.
Com autorização do patrão, rompeu ao mato um bocado de terreno para semear alguma coisa que lhe ajudasse a criar os filhos, e os cunhados. Com as próprias mãos, abriu um poço, para regar o terreno e para ter água em casa. Trabalhava dia e noite disfarçando as lágrimas e a revolta em piadas brejeiras, e em brincadeiras carnavalescas. Nunca conheci homem mais divertido. Dizia que a vida levada a sério, endoidecia qualquer um. Adorava futebol. Não tinha rádio, nem dinheiro para o comprar. Com um dínamo, uma bobine fio de cobre e pouco mais, e as indicações do irmão, que era electricista, ele construiu uma engenhoca a que chamava galena, que lhe permitia com uns auscultadores ouvir os relatos de futebol. Pegou a vida pelos cornos, apesar da sua figura franzina. De estatura pequena, foi o exemplo de que os homens não se medem aos palmos.
Anos mais tarde, as filhas casadas, a idade da reforma chegou com mais uma provação. A mulher, companheira de sempre, sofreu um AVC e ficou paralisada do lado esquerdo. Era nove anos mais nova do que ele, mas nunca mais conseguiu bastar-se a si própria, muito menos fazer alguma coisa em casa. E Manuel começou uma nova luta. Tratar da mulher e levar para a frente a casa. Com alguma ajuda dos filhos, que apesar de toda a boa vontade, tinham a sua vida, seus empregos e as suas casas. Uma das filhas inclusive, vivia longe, noutra cidade. Mas ele continuou sempre alegre e brincalhão. De sorriso fácil, e sempre com um chiste pronto, a qualquer hora e situação. Com a paixão pelo futebol, e pela vida, costumava dizer com uma certa graça, que sabia que havia de partir um dia, mas que iria forçado, pois de vontade, a morte nunca o apanharia.
Porém a vida, madrasta até ao fim, fez com aos noventa anos, a circulação arterial se deixasse de se fazer para os membros inferiores. Resistiu à amputação de uma perna, não resistiu à amputação da segunda, falecendo a menos de um mês de fazer noventa e um anos.
Chamava-se Manuel, nasceu em Portugal, em Abril de 1918, partiu a 28 de Março de 2009.
E eu tenho um enorme orgulho em ter sido sua filha, e uma saudade cada dia maior
Maria Elvira Carvalho
Esta é a minha homenagem ao homem que me deu a vida. Quem leu o Manel da Lenha, ou A história das botas, sabe do meu amor, e da minha admiração por este homem pequeno no tamanho, mas com um coração do tamanho do mundo. Uma alma talhada e moldada na adversidade da vida. Se fosse vivo, faria hoje cem anos.