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26.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE V

 





A mãe de Luísa, fora uma mulher frágil, que não resistira a uma pneumonia, e morrera quando ela tinha dez anos. José o pai, era um homem rude, de princípios rígidos. Acabou de criar sozinho a filha, dando-lhe tudo o que ela precisava exceto amor. 
Infelizmente para Luísa, o pai era também um homem muito ambicioso, que tinha reparado há muito, na maneira como Álvaro, o seu vizinho olhava para a sua filha. Ele ficara viúvo uns anos antes, quando a sua esposa se suicidara. Não tinha filhos, e era muito rico. Na cabeça do pai de Luísa, ele já  a tinha casado com o vizinho, quando descobriu que a filha andava "enrabichada" pelo jovem médico.

Nuno até podia ser médico, mas não era rico. Ou pelo menos, não o era em terras, que era a única riqueza que José entendia. Entre Nuno e Álvaro a escolha dele era óbvia.
Proibiu terminantemente a jovem de se encontrar com o médico e ameaçou-a de a mandar para a casa dos avós paternos que moravam numa remota  aldeia minhota, onde ela nunca fora e com quem não tinha tido o mínimo contato.
 
Prestes a fazer dezoito anos, Luísa era muito jovem e teve medo de que o pai cumprisse a ameaça. Chorou baba e ranho, mas acabou o namoro com Nuno. Ele não lhe perdoou. E quatro meses depois partia para África. Durante dezasseis anos, apenas uma vez ela o vira, numa reportagem sobre as condições de vida no Bangladesh.
Entretanto o pai combinara o casamento dela com o vizinho, com quem se casara pouco depois de completar os dezoito anos.

Fechou a torneira da água. Abriu o armário e retirou um frasco com sais de banho que espalhou na água. Despiu a blusa e as calças de ganga. Libertou-se das minúsculas peças de lingerie, e lançou uma rápida olhada ao espelho antes de entrar na banheira. Os seus olhos azuis escureceram e o seu rosto contraiu-se num esgar amargo, ao ver as múltiplas cicatrizes que o seu corpo bem proporcionado, apresentava.
Mergulhou na água quente, e cerrou os olhos, tentando em vão esquecer aquilo que acabava de observar. Cada uma daquelas cicatrizes, representavam muitas horas de choro, e sofrimento. Cada uma, abrira uma ferida enorme no seu espírito. Essa era uma das razões porque ela não se queria ver refletida num espelho. 

E a razão que a mantinha afastada dos homens, desde que enviuvara há quase catorze anos. 
Com raiva, pegou na esponja e começou a esfregar a pele com violência. Como se assim fizesse desaparecer dela todas as cicatrizes. Mas não adiantava. Ainda que por algum milagre as fizesse desaparecer da sua pele, jamais conseguiria apagá-las da sua memória.

23.8.21

SINFONIA DA MEMÓRIA - PARTE IX


 

               


A doutora Sandra, a colega com quem fizera amizade, naquelas três semanas, não estava, mas a enfermeira apresentou-lhe o doutor João, que fazia parte da equipa e que era quem naquele dia estava de serviço. 
Ele informou-a, que do ponto de vista físico, o paciente estava curado, mas que continuava sem memória. 

A polícia já tinha sido informada da sua alta naquele dia, e ela teria que assinar um termo de responsabilidade, e deixar a morada, a fim de ser contactada se houvesse alguma evolução nas investigações. 

Ele também já fora visitado pelo psiquiatra, que pensava talvez pudesse ajudar através da hipnoterapia. Mas o doente resistira à hipnose, e o clínico não pudera por em prática a sua teoria, já que como é sabido, em caso de rejeição do subconsciente é impossível conseguir obter o estado hipnótico.

 Terminada a conversa, e assinado o documento, despediu-se do médico e dirigiu-se à sala onde o homem se encontrava.
Ele estava sentado na cadeira, junto da cama. Devia rondar o metro e noventa, era bem constituído, tinha o cabelo negro húmido, como alguém que acabara de tomar banho, a barba escanhoada, e vestia umas calças de ganga pretas, e uma suéter vermelha. 

Ela que só o vira de noite, deitado na estrada, em hora de aflição, e depois nas visitas sempre deitado, não se tinha apercebido da figura imponente do homem, que se levantou e esboçou um sorriso, quando a viu entrar.  
Sentiu que o seu coração disparava, enquanto a cabeça a avisava, de que se estava a meter, numa camisa-de-onze-varas, como costumava dizer a sua mãe.

-Boa tarde,- saudou estendendo-lhe a mão que ele apertou com calor. Pronto para a vida lá fora?
-Boa tarde, doutora. Disseram-me que tinha alta, e que a senhora me vinha buscar. Porquê? Estou tão mal que tenha que ser vigiado?- perguntou com ansiedade.
-De modo nenhum. Apenas faltam poucos dias para o Natal, e como sei que não se lembra de onde mora, pensei convidá-lo a passar o Natal connosco. Apenas isso, mas se não o deseja, vou-me já embora.
- Nada disso doutora. Não me leve a mal. Toda esta situação, é tão nova para mim.
- Então, vamos? Deixei o meu filho numa festinha de anos em casa duns vizinhos, e não me posso demorar. Pelo caminho podemos conversar.
Ele apanhou o casaco, das costas da cadeira, e disse enquanto o vestia.
-A doutora manda.




14.5.21

COMEÇAR DE NOVO PARTE VI


- Lena, já passa das dez e meia. Não te esqueceste da reunião na escola, pois não?

- Meu Deus, já? Estava distraída, com o inventário dos bens do caso Mendes verso Correia. Tenho que resolver isto esta semana. Mas agora tenho mesmo que ir. Até logo, Rita.

Saiu, meteu-se no automóvel e dirigiu-se à escola. Ficou aborrecida ao chegar e verificar que não tinha lugar para estacionar no parque frente à mesma. Deu uma pequena volta e estacionou numa transversal ali perto. A caminho da entrada olhou o relógio. Estava quase em cima da hora e ela detestava chegar atrasada. Apressou o passo e ao dobrar a esquina para entrar na zona da escola chocou com um homem que vinha em sentido contrário, trazendo uma menina pela mão. Teria caído se ele não a tivesse segurado.

- Está bem? – perguntou ele

- Desculpe, a culpa foi minha, estou atrasada, vinha quase a correr - disse ela  levantando os olhos para ele.  Nesse momento, o seu rosto empalideceu, sentiu que as pernas lhe tremiam, mas num enorme esforço de vontade, desprendeu-se dos seus braços, e correu para o portão da escola.

-Que mulher maluca! - disse a menina e dando a mão ao homem que continuava estático olhando o portão da escola, perguntou:

-Vamos?

-Vamos sim, Princesa, a tua mãe já deve estar a perguntar-se porque nos demoramos tanto.

 - A mãe não sabe que vou contigo. Ia ligar-lhe quando soube que não tinha as duas últimas aulas, mas então vi-te a saíres da sala de reuniões e já não o fiz.

Entraram no carro e a caminho de casa, ele perguntou:

-Conheces todas as professoras da escola, Sara? Aquela mulher é professora?

-Tenho a certeza que não. Nunca a vi antes. Mas hoje é dia de reunião de pais. Deve ser alguma mãe, que ia para a reunião das onze. Porquê?

-Curiosidade, Sara. Apenas isso.

Não voltou a falar até chegarem a casa. Gonçalo estava inquieto. Só tinha segurado aquela mulher durante breves segundos, mas a sensação que teve foi muito estranha. Como se de algum modo, o seu destino estivesse ligado ao daquela desconhecida.

 Chegaram. Mal teve tempo de estacionar, em frente da moradia e já uma jovem mulher abria a porta de casa.

- Já em casa, Sara? – perguntou admirada

- Não tinha as duas horas de Inglês. Ia telefonar-te, mas então vi o tio Gonçalo a sair da reunião e vim com ele. O mano?

- Está a dormir.  Vamos entrar. Gonçalo, quero que me contes tudo sobre a reunião. Como está a Sara nos estudos?

- Não tens razões para estar preocupada. A tua filha é uma ótima aluna. Vai ter excelentes notas como sempre.

-Obrigado. Não sei o que seria de nós sem ti. Vamos entrar?

Afastou--se para deixar entrar a filha e o irmão, fechando a porta em seguida. 

- Mãe, vou para o meu quarto fazer os TPCS.  Almoças connosco, tio?

- Se a tua mãe me convidar, - respondeu o homem sorrindo.

- E desde quando, é preciso convidar-te?  Não tens hospital hoje? – perguntou Laura.

 

Finalmente ontem levei a primeira dose da AstraZeneca. Mas ainda tive que ir buscar mais um documento ao meu centro médico. Hoje tenho uma nova ida ao hospital para uma consulta de pneumologia. Não me tem sido possível visitar-vos. Ou melhor tenho lido alguns dos vossos posts nas salas de espera, mas não consigo comentar através do telemóvel. Penso conseguir voltar ao normal no próximo fim de semana

20.1.21

SONHO AO LUAR - PARTE VI

 


Isabel abriu o portão e disse ao homem que estava no jardim, que ia por causa da vaga de secretária. Ele pediu-lhe para esperar, e entrou em casa. Voltou pouco depois e levou-a ao escritório. Ela ia olhando para a casa. Estava bonita, mais moderna, mas mais impessoal. Tão diferente daquilo que ela se recordava.

O homem abriu a porta, deu-lhe passagem e fechou-a atrás dela. Na sua frente, Hélder encontrava-se recostado num cadeirão, com o cão a seu lado. Tinha vestido umas calças cinzentas, e um polo azul-escuro.

Mentalmente fez as contas. Se ela tinha vinte e seis anos, ele tinha trinta e seis. Parecia mais velho. Tinha já alguns fios de cabelo branco. O rosto moreno, continuava bonito, apesar dos óculos escuros, que escondiam os outrora brilhantes, olhos castanhos.

- Bom-dia, - saudou. - Venho por causa da vaga de secretária.
- Bom-dia. A agência não me informou de que tinham mandado alguém.
- Bom, é que não vim mandada pela agência.
- Como assim?
- É que ouvi um comentário no talho, em que diziam que estava à procura de uma secretária. Eu estou a trabalhar num escritório de advocacia na cidade, mas como moro aqui se conseguisse empregar-me cá, era muito melhor para mim. Assim resolvi tentar a minha sorte.

- E diz que trabalha num escritório de advocacia? Naturalmente vai dar-me o nome e número de telefone para que possa confirmar e tomar referências.
- Claro, sem problema.
- Bom, se decidir dar-lhe o lugar, quero que saiba que não quero mexericos, não quero saber que a minha vida ande na praça pública. Também poderá, uma ou outra vez, sair mais tarde. De qualquer modo será sempre compensada monetariamente cada vez que o seu dia, vá para além do  horário normal.

- Não tenho por hábito falar da vida de ninguém,- retorquiu ela
- Já nos conhecemos? Parece-me que reconheço a sua voz, - disse franzindo a testa, como a procurar recordar-se.
 - Passei por si, ontem na praia e saudei-o. Deve ser daí – apressou-se a dizer Isabel.
- Talvez, – não parecia muito convencido. - Como disse que se chamava?
- Não disse. Chamo-me Isabel Antunes.

Era o apelido de sua mãe, antes do casamento. Tinha a certeza que apesar de não poder mudar o nome, ele não associaria aquele apelido a ela. Se é que ele se lembraria dela.
- Bom, deixe-me os seus dados, e o número de contacto. Terá notícias em breve.
Ela já estava preparada para isso. Retirou a folha da mala e estendeu-lha. Ele rodou o braço na procura do papel e encontrou-o.

- Bom dia, senhor, - disse ela voltando-se e encaminhando-se para a porta. Abriu-a e saiu. Mal chegou ao jardim ligou para o escritório e falou com a telefonista da empresa, dizendo-lhe que era provável que lhe ligassem para pedir referências sobre ela. Devia dar as melhores, como secretária, e de maneira nenhuma dizer que era advogada. Só então se dirigiu à casa da avó.
“A sorte está lançada. Vamos ver onde me levará” – murmurou.

30.9.20

CILADAS DA VIDA - PARTE XXXIX



Eram exatamente três da tarde quando Olga introduziu o advogado David Varanda no gabinete do seu chefe.

David era um homem alto, moreno, de cabelos castanho-claro e olhos cinzentos.

-Boa tarde, -saudou o visitante estendendo-lhe a sua mão direita.

João apertou a mão que ele lhe estendia com alguma curiosidade, tanto mais que lhe pareceu detetar uma certa emoção no olhar do advogado. Então disse:

- Boa tarde, doutor Varanda. Por favor sente-se, e diga-me o que o trouxe cá. Confesso que estou curioso. A minha empresa tem um gabinete jurídico, e é com os meus advogados que todos os assuntos de lei são tratados.

-Eu sei. Mas o assunto que me trás aqui é pessoal, e nada tem a ver com as leis. Confesso que antes de tentar esta entrevista, investiguei o seu historial. Sei que é um empresário de sucesso, a propósito, deixe-me cumprimentá-lo pelo recente lançamento do Survive 2. Sei também que é um homem rico, mas nenhuma destas coisas me fariam visitá-lo, pois me preocupo mais com o carater de um homem do que com o peso da sua carteira.  O que me trouxe aqui, foi a informação de que é um homem que subiu na vida à custa do seu esforço, mas é considerado por todos, clientes e empregados um homem honesto.

Enquanto o advogado falava, João tentava descobrir onde é, que ele queria chegar.

-O nome Braizinha diz-lhe alguma coisa? -perguntou David após uma curta pausa.

João fez um esforço de memória, mas não recordou ninguém com aquele nome.

-Não, nada. Porquê?

-Porque era o apelido de solteira da sua mãe, e pensei que embora não o usasse faria parte do seu nome.

- Mãe? Que mãe? - disse o empresário pondo-se de pé. Eu não tive mãe. Uma mulher que dá à luz uma criança e a abandona para seguir um qualquer macho que lhe aparece na frente, não pode ser considerada mãe de ninguém. Não é mais do que uma…

-Não o digas, - interrompeu David, levantando-se o rosto vermelho e o punho cerrado. Não quero ter de te partir a cara.
Os dois tinham levantado tanto a voz, que Olga se assustou e após uma leve batida entrou no gabinete, onde os dois homens se olhavam numa atitude tão agressiva que ela temeu começassem a lutar como dois miúdos de rua.

-Vinha perguntar se desejam alguma coisa – disse tentando amenizar o ambiente. Um café, uma bebida?

João foi o primeiro a reagir. Virou costas ao advogado e foi sentar-se. Acabara de perceber que só um filho, ou um marido, defenderia assim uma mulher. David era demasiado novo para ser casado com aquela mulher – não conseguia pensar na progenitora como mãe, - logo aquele advogado, que até ao momento nunca vira, só podia ser, seu meio irmão.

- Eu preciso de uma bebida forte. E tu David, queres alguma coisa? Mas por favor senta-te, - disse ao ver que o outro continuava de pé.

- Nunca bebo álcool em horário de trabalho. Aceito um café.

- Então traz-nos dois cafés bem fortes, por favor.

Olga saiu para executar o pedido, completamente atónita. Como era possível que o seu chefe estivesse quase a iniciar uma luta com um homem que lhe dissera não conhecer, e de repente mudasse totalmente de atitude? Que se estava a passar lá dentro? Deveria chamar a segurança para ficar ali de prevenção?

 

23.9.20

CILADAS DA VIDA - Parte XXXVI


Entrou em casa e foi direta à cozinha, onde abriu o frigorífico, encheu um copo com leite e bebeu-o em pequenos sorvos por medo de enjoar.

Passou o copo por água e meteu-o dentro da máquina de loiça já meio cheia, seguindo depois para o quarto. Tirou o telemóvel da mala e colocou-o em cima da mesa de cabeceira, guardou a mala e seguiu para a casa de banho, onde se despiu e entrou no duche.

Depois do banho, vestiu um curto robe sobre o corpo nu, lavou os dentes, secou o cabelo e estendeu-se na cama mesmo por cima da colcha. Sentia-se muito cansada. Pelo calor e pelas emoções experimentadas no almoço e depois em casa do empresário. Nunca esperou que a levasse para casa, pensava que queria apenas mostrar-lhe a empresa, nunca pensou que tivesse nela a sua casa. E que casa, santo Deus! O homem devia ser realmente muito rico para ter semelhante casa. O que estranhava, é que um homem jovem, bonito e rico, continuasse solteiro. E mais, parecia que nem sequer tinha um compromisso, pois ela não acreditava que mulher alguma deixasse o homem que amava livre para ir almoçar e passar a tarde com outra mulher.

E com este pensamento adormeceu. A sua intenção era descansar um pouco antes da hora do jantar, mas quando uma urgente e imperiosa vontade de ir à casa de banho a acordou já passavam vinte minutos das onze horas da noite.

Já na cozinha aqueceu uma taça de sopa de legumes e comeu-a acompanhada com um copo de leite frio. Não era uma refeição decente para uma grávida, sabia-o, mas a vontade que tinha era de voltar para a cama, não de se por a cozinhar àquela hora. Depois de comer, voltou à casa de banho, despiu o robe que pendurou atrás da porta, vestiu uma curta camisa de dormir, lavou os dentes e foi para a cama. Antes de se deitar, olhou o telemóvel e verificou que tinha duas chamadas e três mensagens da Inês, preocupada com o seu silêncio e pedindo para lhe ligar, logo que visse as mensagens. Como é que ela não tinha ouvido o toque das chamadas. De súbito lembrou-se que tinha tirado o som do aparelho antes do almoço e esquecera de voltar a ativá-lo quando o tirou da mala e o pôs em cima da mesa.

Olhou o relógio.  Meia noite e cinco. Não eram horas de ligar a ninguém. Telefonaria de manhã.

Voltou a pousar o aparelho sobre a mesa de cabeceira, e deitou-se.

Mas talvez por causa das quase seis horas que dormira antes o sono não veio logo. E quase sem dar por isso estava a pensar no pai do seu filho.

Pensar no empresário, dessa maneira, sugeria uma intimidade que não existia, e era muito estranho. Como o era, o olhar de desejo que duas ou três vezes lhe surpreendera. Ela não era como as mulheres com que decerto ele estaria habituado a sair. Era alta, tinha um corpo bem proporcionado, vistoso, como diziam na sua aldeia, e um bonito cabelo. Mas o seu rosto não era feio nem bonito. Era um rosto vulgar, embora Inês levasse a vida a dizer que com um pouco de maquilhagem ela ficaria linda.  Tinha que aprender a fazê-lo. E não era pelo empresário, claro que não. É porque a gravidez a trazia mal-encarada. E com esta convicção  adormeceu.

 

7.9.20

CILADAS DA VIDA - PARTE XXIX


No sábado, Teresa acordou cedo.  Sentia-se cansada. O calor excessivo que já vinha da segunda metade de Junho, e se prolongara por aquela primeira quinzena de Julho, com noites de temperaturas verdadeiramente tropicais, fazia com que dormisse pouco e mal. Depois durante o dia, sentia-se cansada e muito sonolenta. Tinha tanto sono, que por vezes tinha a sensação de que não dormia há meses. Fora uma grande ideia ter contratado Inês para gerente da pastelaria. Do jeito que se sentia, nunca teria conseguido manter o ritmo de trabalho.

Nessa manhã, além do sono e cansaço, começaram os enjoos e vomitara tudo quanto tentara comer, não sabia se efeito da gravidez, ou se porque estava nervosa, com a aproximação da hora em que o empresário a viria buscar para a levar a almoçar.

Ele não lhe dissera onde era o almoço e isso preocupava-a. E se fossem vistos por algum jornalista? Teresa vira nas notícias do dia anterior uma reportagem da festa sobre o lançamento do jogo. Ela não usava o computador a não ser em trabalho, não percebia nada de jogos, mas a julgar pelos muitos jornalistas que o rodeavam, aquele lançamento era algo de muito importante.  Desligou a televisão a pensar que se ele já era famoso antes, agora sê-lo-ia muito mais. Caramba, não lhe bastava a situação em que estava metida, tinha que ser com um homem rico e famoso. Se fosse um pobre anónimo, provavelmente nem chegaria a saber o que tinha acontecido.

Às vezes arrependia-se de o ter procurado. Quem sabe ele levava alguns meses para descobrir a sua identidade, e ela não estaria agora preocupada com aquela convivência. “Foste precipitada como sempre. Quantas vezes te disse que as cadelas apressadas parem os filhos cegos?” Era o que a avó lhe costumava dizer quando em criança, agia de forma impulsiva.

Todavia ela sabia que não conseguiria conviver com a angústia de não saber o que o empresário faria quando descobrisse a sua identidade.  Agora pelo menos, tinham conversado, e não fosse ela, tão desconfiada em relação ao sexo oposto, poderia pensar que “o diabo não era tão mau como o pintavam”.

Depois do banho, viu-se ao espelho e observou as diferenças no seu corpo. O ventre estava mais arredondado, os seios maiores, e a auréola que rodeava os mamilos mais escura. Além disso estavam muito sensíveis e doloridos ao toque. Seria normal? Segundo o livro que estivera a ler, dizia que sim, embora também acrescentava que umas mulheres tinham muito mais sintomas que outras. Será que ela iria ser uma daquelas mulheres que a meio da gravidez já têm um barrigão que parecem estar no fim do tempo? A sua amiga Inês fizera uma barriga pequena e, no entanto, o Martim nascera com peso e comprimento normal. Depois também se sentia muito cansada. Se aquilo era às cinco semanas, como ia conseguir chegar às quarenta? Bom quando voltasse ao médico, ele lhe diria se aquilo era ou não normal, para o tempo que tinha. E por falar no médico, tinha pensado muito, e ia pedir à sua ginecologista  se a podia acompanhar e se lhe aconselhava um obstetra. Não queria continuar a ir ao Centro de PMA. Tinha perdido a confiança neles. E de resto fora com a sua ginecologista que fizera vários tratamentos anti esterilidade a fim de tornar maiores as hipótese de ficar grávida após o primeiro procedimento, já que sabia que algumas mulheres só o conseguiam à segunda ou terceira vez.

Olhou o relógio. Onze e meia. Tinha-se perdido nos seus pensamentos. Abriu o roupeiro e depois de uns momentos de indecisão optou por umas calças de algodão rosa-velho e um top de alças branco. Escovou o cabelo e prendeu-o num coque. Olhou-se ao espelho e não gostou do seu aspeto, mas também nunca gostara de maquilhagem. Bom, a bem da verdade ela até gostara bastante de se ver, quando a esteticista da Inês, a maquilhara no dia do casamento da amiga. Mas ela nunca se maquilhara, e não tinha ideia nenhuma de como fazê-lo, pelo que apenas passou o batom incolor e hidratante nos lábios e deu-se por pronta.

Pouco depois ouviu a campainha, pegou na mala e desceu.

 

19.8.20

CILADAS DA VIDA - PARTE XXI



Teresa levantou-se cedo nessa manhã, embora não tão cedo como antes de ficar grávida, quando chegava à pastelaria antes das cinco da manhã.
No dia anterior, quando chegara a casa extremamente nervosa por todas as emoções que sofrera desde o momento que entrara no Centro Médico até à altura em que abandonou o parque da TecnInformática, depois da longa conversa com o empresário, tomara um duche, vestira um curto pijama de algodão e bebera um copo de leite. De seguida estendera-se no sofá para um curto descanso e adormecera. Quando acordou, eram quase dez da noite.
Embora sem fome, mas pensando no bebé fez uma refeição frugal, e foi para a cama. Porém, ou por causa das horas que tinha dormido anteriormente, ou porque só naquele momento conseguisse racionalizar o que lhe acontecera, levou horas para adormecer, e o pouco tempo dormido foi cheio de pesadelos, em que se via a ter o seu filho e quando depois do nascimento pedia que lho mostrassem, a enfermeira ria-se e dizia-lhe que o bebé não era seu, e que já o entregara ao pai.
Acordou transpirada e aflita. Tomou o duche, secou os cabelos, que prendeu numa trança e vestiu-se. Correu a persiana e abriu a janela para arejar o quarto. O céu mostrava um azul brilhante e sem nuvens e o ar era ameno.
-Outro dia de calor insuportável – murmurou
Olhou o relógio. Seis e um quarto e o sol já nascera. Os longos dias de Verão, eram a sua paixão, embora o calor infernal dos últimos dias a fizessem recordar com saudade os meses amenos da Primavera.
Enquanto tomava o pequeno almoço, recordou mais uma vez, a conversa com o empresário. Surpreendera-a. Depois de tudo o que lhe tinham dito, julgara-o um homem arrogante e convencido, inflexível na sua decisão de ir para a justiça e mentalmente tentara preparar-se para um duro confronto, a fim de conseguir convencê-lo a não prosseguir as investigações e a ida ao tribunal, porém fora muito mais fácil do que pensara.
Apesar da dureza latente no empresário, e de alguns avisos da sua parte, ele mostrara-se bem mais compreensivo e confiante do que ela esperara. Todavia não podia esquecer que os dois eram pais daquela criança e os dois a queriam, pelo que teriam de tomar uma decisão o mais justa possível, e essa decisão iria fazer com que os dois tivessem de conviver. Não era de modo algum, o futuro que sonhara, quando decidira ser mãe daquela forma.
Acabou o pequeno almoço, e depois de uma passagem pela casa de banho, para lavar os dentes, fez a cama, trocou os chinelos por umas práticas sandálias sem salto, fechou a janela, correu a persiana para evitar o aquecimento do quarto, e saiu. Olhou o relógio. Quase sete e meia. A Inês só chegaria perto das nove, mas ela tinha que verificar alguns documentos antes. Pegou nas chaves do apartamento e saiu. Como a pastelaria ficava no passeio contrário, a menos de cem metros de distância do apartamento, nunca usava o carro.
Sabia que ia sentir saudades não só do trabalho na pastelaria, mas também do convívio com os clientes. Salvo um ou outro turista, a esmagadora clientela era composta por moradores da avenida e ruas adjacentes, que ela conhecia desde os tempos em que era apenas mais uma empregada.  Eram muito mais do que clientes; eram amigos a quem ela tratava pelo nome.



22.7.20

CILADAS DA VIDA - PARTE IX






Afastou a cadeira e pôs-se de pé. Era um homem alto, de corpo atlético. Moreno, e o cabelo que usava com um curto muito curto, era escuro, já grisalho nas têmporas, apesar de ainda faltarem três meses, para fazer trinta e cinco anos; os olhos cinzentos, um tanto oblíquos, que davam ao seu rosto um ligeiro ar oriental, contrastavam fortemente com o rosto moreno e o cabelo escuro. Testa alta, nariz retilíneo, queixo quadrado e boca grande de lábios cheios, que raramente se abriam num sorriso. Os quase um metro e noventa, de altura, os ombros largos, a cintura estreita, as pernas longas e poderosas, davam-lhe uma imagem  de força que intimidava os seus opositores.
Desde muito novo teve que aprender a sobreviver sozinho.  Ainda não tinha três meses, quando a mãe fugiu de casa, com um artista de um circo que acampara num local próximo. Fora deixado para trás como algo sem préstimo, e isso desde muito cedo o marcou. O pai era um homem calado, de carater seco, de quem nunca ouviu uma palavra carinhosa. Às vezes ele pensava que o pai o culpava pela traição da mãe.
Era verdade que nunca lhe faltara com a parte material, que qualquer criança precisa para crescer. Roupa, comida, assistência médica, livros, uma bicicleta, bolas, computador etc. Tudo ele teve. Tudo menos o essencial, o afeto necessário para um crescimento sem traumas. João acreditava que o pai não gostava dele, e depois que ouviu várias vezes a frase “és igualzinho à tua mãe” pensou que o pai o odiava porque ele lhe lembrava a traição da mulher que amara. Teria uns treze anos, quando decidiu que também ele não gostava do pai, e nunca na vida seguiria a vida do progenitor, apesar de nas férias, o pai sempre arranjar maneira de o levar para a sua oficina de automóveis e tentar que ele aprendesse o ofício de mecânico.
Os computadores, sim, fascinavam-no. Todo o dinheiro que conseguia poupar da mesada que o pai lhe dava, empregava-o em livros sobre o funcionamento dos mesmos. Por causa dos computadores, muitos sermões paternos, teve que aturar, mas aos dezasseis anos era um expert em programação e aos dezassete iniciava o seu primeiro jogo de computador.
Quando via o pai mais zangado, refugiava-se em casa da dona Hortense, mãe de Olga, a sua assistente. Eram vizinhos, e a senhora tomara conta dele, até aos quatro anos, altura em que o progenitor decidira que estava na hora de  entrar para o infantário. E já crescido, cada vez que lhe batia à porta, dona Hortense, tinha sempre um pedaço de bolo e um afago com que tentava acalmar a sua solidão e fome de amor.  Por outro lado, Olga, doze anos mais velha, sempre se mostrara muito protetora, era como uma irmã mais velha, ajudava-o nos problemas escolares, aconselhava-o e incentivava-o, a prosseguir nos seus sonhos, de um dia ser alguém importante no mundo informático. Podia dizer-se que João tinha encontrado em Olga e sua mãe, a estabilidade familiar que nem pai nem mãe lhe deram. 
Depois que a sua vida se tornou um sucesso, comprou uma casa e mudou-se. Não suportava mais viver com o pai. De vez em quando, Olga lembrava-lhe apesar de todas as mágoas que tinha, o progenitor era a sua única família, devia ir vê-lo e tentar um entendimento entre eles, todavia ele nunca o fez, até saber que se encontrava muito doente e fora internado no hospital. Foi vê-lo, falou com o médico, soube que o pai tinha um cancro no pâncreas e que se encontrava em estado terminal. E ele, que já tinha passado por uma fase semelhante, embora com desfecho positivo, entendeu o sofrimento físico e moral do progenitor, e pela primeira vez sentiu que talvez devesse ter tentado entender o pai, em vez de o ter abandonado. Todavia se era tarde demais para voltar atrás, não o era para lhe dar, o apoio e carinho que nunca lhe dera desde que se conhecia,  e tornar mais doces os últimos dias da sua vida. Era hora de apagar mágoas, e lhe mostrar com a sua presença constante e o seu apoio, que o passado fora relevado.
Na véspera da sua morte, talvez sentindo que o fim estava próximo, o pai tivera uma conversa franca com ele.Falara-lhe do imenso amor que dedicara à esposa, e de como,  depois que ela o abandonara, ele se sentira morto por dentro, e, incapaz de albergar outros sentimentos, que não a raiva e o desespero. Talvez por isso, - disse - não tivesse sabido ser um bom pai, preencher as tuas necessidades de afeto,  pelo que te peço perdão. 
Emocionado, ele abraçara o pai, acabando os dois a  chorar abraçados até que uma enfermeira  entrou e o expulsou do quarto. Foi o único e último abraço. Na manhã seguinte o hospital informou-o de que o pai partira durante a madrugada.


8.6.20

ISABEL - PARTE XIX






Tanto o cabeleireiro, como o edifício dos correios, e o seu apartamento,   ficavam no mesmo quarteirão, e por isso Isabel não tinha levado carro. Recordou a conversa recente no escritório. 
Era Sexta-feira,  e ela sabia que este era o dia, que normalmente os jovens escolhem para sair à noite. Isabel, raramente saía à noite.
Não lhe apetecia ver os casalinhos a divertirem-se. Não que sentisse inveja deles. O que sentia era pena dela, e esse era um sentimento de que não gostava. Sabia que era uma mulher bonita. Estava habituada a ver a admiração nos olhares masculinos. Mas aproximava-se dos quarenta e começava a pesar-lhe a solidão. Onde estava a vida com que sonhara na juventude? Onde os filhos que tanto desejara? Todas as suas amigas da faculdade tinham casado, tinham filhos. Algumas até se tinham divorciado e voltado a casar.  Só ela continuava sozinha, presa às suas dolorosas recordações. Bom, para ser sincera consigo mesma, a verdade é que desde aquele dia na praia, as recordações, já não eram tão dolorosas assim. Quem seria, e que estranho poder tinha aquele homem que lhe roubara o sossego, com um olhar e pouco mais? Seria como ela um solitário? Onde viveria? Será   que algum dia voltaria a encontrá-lo?
Absorta virou a esquina e esbarrou em alguém, deixando cair os envelopes. Murmurou uma desculpa e baixou-se para os apanhar. O homem fez o mesmo e ao fazê-lo as suas mãos tocaram-se. Ergueu-se rapidamente e nesse momento ouviu a voz rouca, que ultimamente povoava as suas noites de insónia.
- Você? Vejo que continua muito distraída.
 Os olhos cinzentos do homem fixaram-na com tal intensidade, que ela teve a nítida sensação de que ele lia nela, como num livro aberto. Corou. O homem franziu as sobrancelhas e semicerrou os olhos.
- Desculpe - disse ela voltando-lhe as costas, e tentando afastar-se rapidamente do local.
- Espere! - A sua mão forte agarrou o braço de Isabel, obrigando-a a parar. - Não acha que nos devíamos apresentar? Afinal de contas para quem anda por aí a esbarrar um no outro, não podemos continuar desconhecidos. Chamo-me Luís. Luís Teixeira.
Estendia-lhe a mão. Morena, forte e cuidada. Isabel não teve outro remédio que fazer o mesmo. A voz saiu-lhe quase inaudível.
- Isabel Mendes
- Hum! Isabel! Nome de rainha, - disse ele apertando-lhe a mão.
Foi um aperto caloroso que  a fez tremer da cabeça aos pés como se fosse  atingida por uma descarga eléctrica. Inutilmente tentava acalmar-se. Tinha a sensação de que o homem ouvia as loucas palpitações do seu coração. E ali continuava ele na sua frente a olhá-la fixamente como se quisesse ler, alguma coisa nos seus olhos, felizmente protegidos pelos óculos escuros.
Bruscamente Isabel desprendeu-se e quase correu para o edifício dos correios.
Pouco depois, tendo sido já atendida, Isabel dirigiu-se aos expositores de livros, e, fingindo escolher um, lá permaneceu por quase meia hora, e quem sabe não teria ficado mais tempo se entretanto não chegasse a hora do encerramento. Tinha medo de voltar a encontrar aquele homem. Não se reconhecia. Ela que enfrentara com coragem a morte do marido daquela forma brutal. Que lutara pelos seus sonhos mesmo quando não dormia para cuidar dos pais. Que era feito daquela mulher forte, a quem a vida madrasta não assustava? Quem era aquela mulher que tremia feito criança assustada na presença de um quase desconhecido?

29.5.20

ISABEL - PARTE XIII

Queria esticar as pernas, tomar um café.
Entrou no edifício e dirigiu-se à caixa para o pré pagamento do café. Havia uma fila de quatro pessoas e Isabel entrou nela. Na sua frente um homem alto de ombros largos e porte atlético. Bem moreno, a julgar pela cor dos braços meio descobertos pela manga curta da camisa. Ocorreu-lhe um pensamento estranho. Como seria sentir-se presa nuns braços assim? Passou a mão pela testa, desorientada com os seus próprios pensamentos.
O homem pagou e afastou-se. Isabel tomou o seu lugar, pagou o café e aguardou que o outro empregado lho trouxesse, ali mesmo ao lado da caixa. Então pegou na chávena e dirigiu-se à ponta do balcão para o beber. Não lhe apetecia ir para uma mesa, estava farta de estar sentada.
De súbito sentiu uma estranha sensação. Era como se atrás dela, alguém lhe pedisse mentalmente para se voltar. Agitou-se. Levou de novo a chávena aos lábios, tentando esquecer aquela sensação, mas em vão, ela continuava lá, queimando-lhe  a nuca.
Pousou a chávena vazia sobre o balcão e muito lentamente voltou-se. Sentado numa mesa, bem na sua frente, olhando-a fixamente estava o homem que estivera na fila da caixa minutos antes.
Mas o que fez Isabel tremer da cabeça aos pés, foi reconhecer os profundos olhos cinzentos, que a atormentaram durante toda a noite.
A lembrança dessa noite, fez com que se ruborizasse e fugisse dali correndo, como se o diabo a perseguisse.
“Sê inteligente Isabel. Como podia o homem saber que sonhaste com ele? Ou aquilo que estavas a pensar atrás dele? Portaste-te como uma adolescente” murmurou finalmente mais calma, enquanto atravessava a ponte 25 de Abril em direcção ao seu apartamento.
Sempre que Isabel entrava em casa, após alguns dias de ausência, sentia uma sensação de bem-estar e felicidade. Sentia-se protegida. Como se ali no seu pequeno mundo, nada nem ninguém a pudesse molestar. Desta vez porém, a casa pareceu-lhe fria e pouco acolhedora. Abriu as janelas e afastou os cortinados deixando que o sol penetrasse na sala. Como se ao iluminar o aposento afugentasse os fantasmas do passado e aquietasse o coração.
Pegou no telefone.
- Amélia? Já cheguei.
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- Sim, a viagem foi boa. Está confirmado o jantar?
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- Às oito? Está bem. Vens por aqui?
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-Claro. Então vamos juntas.
Desligou.
Passou o resto do dia arrumando as coisas. De vez em quando,  surpreendia-se a pensar no que acontecera na viagem. Desde  que na véspera, esbarrara com aquele desconhecido na praia, e ele a segurou nos braços, que sentia um estranho desassossego.
Não percebia o que se passava consigo, e isso assustava-a.  Afinal tinham passado quase vinte anos desde a morte do marido, e durante esse tempo ela cruzara-se com muitos homens, até porque a sua profissão o proporcionava,  e nenhum lhe tinha nunca provocado tal desassossego. 
 Que estranho feitiço tinham aqueles olhos cinzentos, que pareciam invadir cada recanto do seu corpo, mergulhando até ao mais profundo do seu ser? Estava ansiosa por voltar ao trabalho. Lembrou-se do ditado . "Mente desocupada, oficina do diabo" O que ela estava a precisar, para se livrar de pensamentos indesejáveis, era ocupar a mente.
Arrumou a mala, que entretanto esvaziara, tomou um duche rápido e começou a arranjar-se para o jantar com os amigos.
Pouco passava das sete e meia quando a campainha da porta tocou. Isabel deu um último retoque nos lábios, pegou na mala e saiu. Em frente à porta estava estacionado um carro cinza e junto dele um casal aguardava.





Uma explicação:
O comentário 47.000 pertenceu à poetisa Maria João Brito de Sousa.
Se não conhecem, cliquem ali no nome e vão ver que não se arrependem. 
Uma explicação aos novos leitores para o facto de eu falar no virar do milhar, nos comentários. Sempre que passa um milhar o leitor que o fez, recebe da minha parte um miminho que é constituído por uma das minhas histórias. É a maneira com que tento agradecer a simpatia e o tempo que me dispensam. E já foram distribuídas 47 histórias.

27.5.20

ISABEL - PARTE XI



Acordou tarde e com a cabeça pesada. O sono fora povoado de sonhos esquisitos, em que via um homem com o rosto encoberto, envolto em neblina. Ela sabia que o homem era Fernando era o seu corpo, o seu jeito, mas quando o rosto se tornava visível era um desconhecido com uns profundos olhos cinzentos. Depois o rosto ia-se esfumando e ficava de novo encoberto e ela voltava a ter a certeza de que era  o falecido, mas então a neblina desaparecia e ela via uma figura masculina com um pé em cima de uma muralha, o corpo inclinado para a frente e o rosto voltado para o lado contrário. Era o mesmo desconhecido? Ou era outro? Ela não sabia. Mas de uma coisa tinha certeza. Não era Fernando. Mas então o homem endireitava-se e afastava-se e embora ela não lhe visse o rosto, sabia que era o falecido marido.
Levantou-se, tirou uma mala que estava em cima do armário e colocou-a  sobre a cama. Depois abriu o roupeiro e escolheu umas calças de ganga e um top sem mangas para a viagem. Dobrou cuidadosamente o resto da roupa e meteu-a na mala.
Abriu uma gaveta separou duas peças de roupa intima meteu as restantes num saquinho de algodão florido, atou com a fita de cetim rosa e guardou-a igualmente na mala.
De seguida dirigiu-se à casa de banho e meteu-se no duche. Deixou que a água lhe resvalasse pelo corpo esbelto durante alguns minutos tentando afastar da mente a recordação do sonho esquisito que tanto a inquietava. Inutilmente. A água acalmava o corpo mas não o espírito.
Pensou em Paulo. Que diabo lhe teria acontecido para pedir transferência? Paulo era o director comercial de uma grande superfície. Era também o encarregado das campanhas publicitárias da empresa e fora o seu primeiro cliente. Ele acreditara no talento de uma jovem inexperiente, e dera-lhe a oportunidade que a maioria dos jovens não tem. Foi um risco para ele e uma bênção para ela. 
Graças a esse primeiro trabalho bem sucedido viera uma boa carteira de clientes. Paulo era um homem a rondar os cinquenta anos, completamente apaixonado pela esposa. Tinha uma única filha. Maria uma jovem que ia agora entrar para a Universidade. Ele era além de um bom cliente, também um grande amigo. E agora? Decerto a empresa continuaria a trabalhar com ela. Pelo menos até ao fim do ano, data em que terminaria o actual contrato.
O telemóvel tocou. Isabel fechou a água enrolou-se na toalha e dirigiu-se ao quarto. A meio do corredor o aparelho calou-se e ela pensou que quem quer que fosse ligaria de novo, e voltou para a casa de banho.
Espalhou pelo corpo uma camada de creme hidratante com gestos automatizados pelo hábito, enquanto o pensamento lhe fugia para o sonho. Que grande confusão. Seria um aviso do seu subconsciente? E se era, o que quereria dizer-lhe? Porque é que o rosto de Fernando não era visível como em sonhos tantas vezes aparecera ao longo de muitos anos? E porque é que no fim ele se ia embora? E aqueles olhos cinzentos? Porque é que lhe apareciam no sonho, se apenas os tinha vislumbrado durante segundos?
"Esquece Isabel", murmurou sacudindo a cabeça e começando a vestir-se.
Depois olhou-se no espelho do roupeiro. Por momentos ficou indecisa entre uns ténis brancos e uns sapatos rasos, azuis, tipo sabrinas. Acabou por escolher estes e juntou os ténis ao restante calçado, num saco de lona azul com riscas brancas.
Fechou a mala e colocou o saco com os sapatos em cima.
O telemóvel tocou de novo.
- Bom dia. Está tudo bem? – perguntou Amélia
- Bom dia. Sim, está. E contigo? Alguma coisa urgente? Vi que ligaste quando estava no banho.
- Queria saber a que horas chegas. O Paulo telefonou-me. Quer que vamos a um jantar de despedida esta noite em sua casa.
- Está bem. Chego cedo. E ele? Disse se já tem substituto?
- Diz que sim, mas que o substituto ainda não chegou. Parece que é um filho de um amigo dele.  Mas diz que não conhece, parece que há muitos anos vive fora do país. 
- Está bem. Logo falamos. Estou a acabar de arrumar as coisas. Dentro de uma hora mais ou menos, estou a caminho.
- Então até logo. Boa viagem.
-Obrigado.




E estamos a duas dezena dos 47000 comentários. Quem será que vai virar o milhar?

15.4.20

À MÉDIA LUZ - PARTE III


E ali estava ela, num impasse. Até agora não tinha visto nada de suspeito no seu chefe. Confirmara a informação que tinha de que era um mulherengo incorrigível, e apercebera-se de imediato, que ela não lhe agradara nada, quando a vira pela primeira vez, contudo não pedira para a substituíram e ela tinha a certeza de que neste momento, ele estava satisfeito com a sua prestação laboral, ainda que continuasse a olhá-la como quem olha para um saco de batatas. 
Todavia era exatamente isso, o que ela tinha pretendido, quando decidiu escolher aquele look severo e antiquado. Não estava ali para o conquistar, muito embora não deixasse de reconhecer que era um homem muito atraente. Na verdade, não estava interessada em nenhum homem por muito interessante que fosse, enquanto não conseguisse provar a inocência do seu progenitor. Ele era de momento o único homem que lhe importava.
Suavizou-se-lhe o rosto com a recordação do pai por quem sentia um carinho a roçar a adoração. 
Não se lembrava da mãe. Morrera quando ela era ainda bebé. Uma gripe, que originara uma pneumonia, agravada por problemas respiratórios de que já padecia. O pai, fora pai e mãe para ela. Sacrificara a sua vida ainda jovem, à solidão para não lhe dar uma madrasta. Criara-a com todo o amor, dera-lhe a melhor educação, muitas vezes à custa de se privar até das coisas mais básicas. Trabalhava no escritório, e em casa fazia ainda contabilidade de micro empresas. Para que ela pudesse frequentar a Universidade.  Quando viu como gostava de dançar, não hesitou em escrevê-la numa academia de dança, embora isso comportasse mais uma despesa para o orçamento. Era o homem mais nobre e reto do mundo. Mas amargava os dias na cadeia. E o pior, Sandra acreditava, seria quando fosse libertado. Ela conhecia o pai. Temia que ele não aguentasse ser apontado por todos como um ladrão. Tinha muito medo, que ele procurasse no suicídio, a solução para a sua vergonha. Sandra procurara um advogado. 
A julgar pelo que pagou por uma única consulta, decerto um dos melhores do país. Mas ele fora peremptório. Sem um dado novo, não havia como reabrir o processo.


13.4.20

À MÉDIA LUZ - PARTE I


- Aqui tem senhor!
O homem levantou a cabeça, e olhou a mulher que na sua frente lhe estendia uma pasta. A sua secretária. Caramba, cada vez que olhava para ela, ficava a pensar, o que teria passado pela cabeça do gestor dos recursos humanos, para lhe enviar aquela … ele nem sabia bem como classificar a mulher que estava na sua frente.
- Obrigado. Pode deixar aí, se precisar de si, chamo.
A mulher deixou a pasta em cima da secretária e afastou-se em direção ao seu gabinete de trabalho. Ao chegar à porta, parou e disse.
- Recordo que tem uma reunião com o seu advogado para daqui a meia hora.
Abriu a porta e saiu.
O homem ficou por momentos a olhar a porta fechada. Com tanta mulher bonita, no mundo, porque haviam de lhe ter mandado aquela, como secretária?
No seu gabinete, Sandra retomou o trabalho. Tinha vinte e seis anos, o cabelo castanho arruivado, estava apanhado num coque, e vestia um fato saia e casaco cinzento, que seria considerado o último grito da moda… há mais de cinquenta anos.
No rosto redondo, e sem qualquer tipo de maquilhagem, pontificavam dois belíssimos olhos verdes, a única coisa que chamava logo a atenção nela, mas que talvez sabendo-o, ela mantinha quase sempre meio oculto, como se estivesse permanentemente preocupada com a biqueira dos seus sapatos. Parecia uma figura saída de algum quadro de museu.
Pelo menos era o que Gabriel, o seu atraente chefe pensava. Mas de uma coisa ele estava certo. Jamais tivera uma secretária tão eficiente… no trabalho. A anterior era um desastre como secretária. Parecia que todas as suas aptidões estavam voltadas para a cama.
O homem sorriu ao recordar-se de Lúcia. Deu-lhe um certo trabalho, separar-se dela. Era realmente muito boa na cama. Mas um homem não pode ser escravo dos seus apetites sexuais, e por muito que gostasse de mulheres, não tinha nenhuma vontade de se prender a nenhuma. Pelo menos, Sandra era uma excelente secretária, e com ela não corria riscos.




Bom dia amigos. Espero que estejam todos bem, e com fé de que havemos de vencer isto.  Abraço-vos virtualmente com o mesmo carinho que o faria pessoalmente se isso fosse possível.

19.3.20

DIVIDA DE JOGO - PARTE XII



A mesa já estava posta, quando entrou na cozinha. André tinha tirado o avental, e tal como no dia anterior, apressou-se a puxar-lhe a cadeira para que ela se sentasse. Eva pensou que tinha que se acautelar. Aquele homem, com a sua gentileza, o ar travesso, o seu sorriso, era um perigo para o seu coração tão fragilizado. Mentalmente pediu a Deus que a ajudasse. Não se podia apaixonar por ele. Era um aventureiro, uma ave de arribação, que não tardaria a levantar voo.
- Que se passa, Eva? Não gostas do meu  “Spaghetti alla Carbonara”?
Não se atreveu a olhá-lo, como se ele fosse capaz de adivinhar os seus pensamentos.
- Desculpa. Estava distraída.
Saboreou um pouco de comida, e olhou-o surpreendida.
-Está delicioso. 
- Aprendi com a minha “nonna”. Já te disse, ninguém cozinha um "Spaghetti" como ela.
- Disseste que eras meio português. Não tens família cá?
- Tenho. Os meus avós maternos e uns tios. Em Braga, terra da minha mãe. Quando éramos crianças, vínhamos todos os anos, passar o verão em casa dos meus avós. Ainda não fui vê-los desde que cheguei. Quem sabe um fim de semana, queiras ir comigo.
- Eu? – Admirou-se. O que é que eu ia fazer contigo? Não conheço os teus avós. E tentando mudar o rumo à conversa, - disseste “éramos crianças”. Tens irmãos?
- Somos três. Pietro, o mais velho, eu e Giovanna a mais nova. Ambos casados. Entre os dois brindaram-me com cinco sobrinhos.
- E tu? És casado?
- Achas, que tenho perfil de homem casado? As mulheres não gostam de aventureiros como eu. Querem segurança, e eu não me dou com amarras. Ou talvez quem sabe, ainda não tenha encontrado a minha alma gémea.
“Toma juízo, Eva. Avisa o teu coração, que não se deixe enredar”, -pensou ela.
Estavam a terminar a refeição. Eva levantou-se para levantar os pratos e por na mesa a fruta.  Disse:
- Quando estava no orfanato, sonhava com o dia em que tivesse a minha família. Casar, ter filhos, sentir o calor de um lar. Não é que lá, tivesse razões de queixa. As freiras não eram más. Severas na educação, mas também amigas. Especialmente a Irmã Madalena. Mas é triste não saberes de onde vens, se teu pai era um homem bom ou um bandido, se tua mãe, era uma  senhora, ou uma prostituta. Se estão vivos ou mortos. Se tens irmãos. Não tens nada para trás, nem recordações, nem história. Consegues entender isto? É como se fosses a primeira pessoa da história da humanidade. És tu a base da história futura, da tua geração. Quando conheci o Alfredo, pensei que tinha encontrado a minha outra metade. Que juntos, íamos iniciar uma família, ter um lugar na história da vida de que todos fazemos parte. Como pude enganar-me tanto?

  

E porque hoje é o dia do Pai, para todos os que o são, e por aqui passem, o meu desejo de que tenham um dia o melhor possível e que S. José os proteja.