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31.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXIX


- O que deve fazer uma mulher que ama um homem, para que ele perceba?- Perguntou de súbito Mariana
Maria riu-se.
-O quê? Não me digas que não sabes. Vais dizer-me que nunca tiveste namorado?
-Amigos sim, namorado só o primeiro coleguinha quando fui para a escola.
- Mas tu és linda, tens bom gosto, és simpática. Por onde tens andado?
 -Por aí. Mas não me respondeste.
- Insinua-te. Se ele não for parvo, percebe.
- Insinuar? Como?
-Isso é lá pergunta que uma mulher faça? Mariana, tu não deves estar bem. Deixa cá ver se tens febre, - brincou Maria tentando colocar-lhe a mão na testa.
-Não sejas tonta. E vamos às compras que ainda gostava que me ajudasses a decorar a árvore de Natal.
Na loja Mariana escolheu um par de calças de ganga, e uma camisola de gola alta vermelha,
-Gostas?
-É um conjunto muito bonito.
-Então vai experimentar. É para ti. Prenda de Natal.
- Para mim? Oh! Obrigado. És um anjo, - disse quase arrancando-lhe as peças da mão, esfuziante de alegria.
Quando saíram, Mariana perguntou à amiga:
-E agora? Sapatos ou botas?
- Posso escolher?
Acenou afirmativamente
-Botas.
Entraram na sapataria, e Maria escolheu umas botas de cano alto, sem salto, muito práticas.
Quando regressavam a jovem disse quase chorando.
-Este ano, não esperava ter outra prenda que não a do Luís. Desde que o pai morreu, o dinheiro lá em casa, é muito pouco. Nem quero pensar o que teria sido de nós, se a minha mãe não tivesse vindo trabalhar para a tua casa.
- Não é a minha casa. É do Miguel.
- Mas tu vives lá. Porquê?
- Porque meu pai morreu, e eu estava doente, como sabes.
Calou-se. Maria percebeu que a jovem não queria falar da sua vida, e mudando de conversa disse:
-Tenho tantas saudades do meu pai!
-Também eu Maria ! Também eu!- Repetiu com tristeza.




FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXVIII


   Miguel, chegou pontual à hora do almoço.
- Estás bem? – Perguntou.
- Sim. Agora estou. Finalmente sei quem sou, recuperei a minha história.
Calou-se, enquanto Luísa lhes servia o almoço. Quando se retirou, Miguel disse:
-Mas ainda há muita coisa que não sei. Desde logo, o teu nome e o que fazias naquele dia…
- O meu nome é Mariana. Mariana Teixeira.
E Mariana contou-lhe tudo, desde que o pai morrera, até àquela tarde na falésia.
- Muito deves ter sofrido! E agora? Precisamos ir buscar as tuas coisas, ao tal hostel.
- Deixemos isso para depois das festas Miguel.
- Não podemos protelar muito. Quem sabe se eles comunicaram à polícia o teu desaparecimento, e a policia anda por aí a investigar? E outra coisa. Disseste que o teu pai se tinha sacrificado para comprar a casa. Lembras-te onde moravas?
-Sim, claro. Aqui mesmo na cidade. Numa rua simpática, perto da Av. Brasil. Rua Camilo Pessanha. Conheces?
- Não.
- Vais conhecer quando fores lá a casa. Vais ver, que vais gostar. É uma zona sossegada, gente que mora ali há muitos anos, quase todos se conhecem.
Nessa altura, Luísa apareceu com a sobremesa e Mariana perguntou por Maria.
- Disse-me que vinha às duas, saber se a menina precisava dela.
- Obrigado Luísa.
Quando a empregada se retirou, Mariana perguntou;
Mantém-se o combinado ontem?
- O que é que combinamos?- Perguntou, perdido entre tanto facto novo.
As compras com a Maria, e a conversa com a Luísa por causa da ceia de Natal.
- Ah! Sim, claro.
Acabaram a refeição, e perguntaram a Luísa se ela se importaria de lhes fazer a ceia de Natal.
Ela, disse que não tinha nenhum inconveniente, uma vez que passava a ceia ali no prédio com a irmã.
Só tinha de saber se queriam o tradicional bacalhau ou outro prato, para saber o que havia de comprar.
Logo depois, chegou Maria, e as duas jovens despediram-se e saíram. 





30.8.18

FOLHA BRANCA - PARTE XXXVII


Acordou cerca das dez. Curiosamente sentia-se bem. Como se a catarse que se seguiu à recuperação da memória, tivesse expurgado do seu espírito, toda a culpa que não tivera forças para carregar, e a levara a tentar o suicídio.
Enquanto tomava o duche matinal, recordava o que acontecera durante a noite. Como acordou assustada com a trovoada, e como de repente o som do trovão, já não era da trovoada, mas do choque entre os dois carros, e como num momento a morte do pai e tudo o que se seguiu, lhe surgira nítido na memória. 
Era como se estivesse vendo um filme, no qual, ela era a protagonista. Lembrou dos longos meses que passou no hospital, primeiro  em choque, depois perdida entre pesadelos e ataques de pânico. De quando teve alta. Dos dois dias que passou quase por inteiro no cemitério, junto da campa do pai. Da boleia que a levou até Faro. E da outra que a deixou em Lagos. Da decisão de não voltar para casa, onde sabia que não ia encontrar o pai, do  peso da culpa, do medo da solidão, do hostel onde deixara as suas coisas, naquela tarde em que procurara uma falésia mais escondida para acabar com o sofrimento, que a devorava por dentro.
Vestiu umas calças de lã cor de mel, e um camisolão branco. Prendeu a farta cabeleira, numa trança e olhou-se ao espelho. Gostou de se ver. Olhava com firmeza, a figura que o espelho lhe devolvia, sem medos, nem mudas interrogações. Tinha largado a pesada carga que há meses carregava. E agora?
Agora tinha que retomar a vida, que ficara lá atrás em suspenso.
Aprender a viver sem o pai, e sem culpas. Sentia que as sessões de psicoterapia a iam ajudar a ultrapassar, e quem sabe esquecer, aqueles meses em que a sua mente fora uma folha em branco.
Não. Esquecer, não. Esquecer, seria olvidar Miguel, a sua presença, o seu carinho, o seu riso, o seu cheiro. Os dias passados juntos, os passeios, os conselhos. Tudo o que tinha gravado para sempre no coração. Decididamente, o que mais lhe doía neste momento, já não era a ausência do pai, mas a eminente separação de Miguel.
E como doía pensar nisso.
Aos poucos enevoaram-se-lhe os olhos e uma lágrima deslizou pela face.
Porque tinha de ser assim? Era como se a vida estivesse sempre montando armadilhas no seu caminho. Porque tinha de se separar das pessoas que amava?








FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXVI




No regresso, o pai estava cansado e passou-me o volante, À saída de Sevilha, uma carrinha que acabara de fazer uma curva, despistou-se e veio em cima de mim. Vi que ia bater de frente, e tentando fugir, guinei para a esquerda, o que fez com que a carrinha abalroasse a lateral direita do carro. O meu pai, que se tinha deixado dormir a meu lado, teve morte imediata.
 - Não foi por mal, Miguel, juro que não foi. Eu só queria tirar o carro da trajectória da carrinha, disse redobrando o choro.
O homem estava impressionado com o sofrimento da jovem. Percebeu que o sentimento de culpa era tão grande que a jovem não aguentara, e o subconsciente se refugiara na amnésia.
- Não fiques assim. A culpa não foi tua. Foi um acidente. Pensa que podia ter sido o contrário. Podia ser o teu pai que estivesse ao volante, e ele teria reagido exactamente da mesma maneira. Qualquer condutor reage dessa maneira. É instintivo. Não te atormentes. Tenta descansar. Vou buscar-te um copo de leite morno. Dizem que acalma.
Foi à cozinha e voltou com o copo de leite. Ajudou-a a deitar, e puxou-lhe a roupa para cima, cobrindo-a como se ela fosse uma criança.
- Agora, sê uma menina bonita e dorme. Amanhã conversamos.
- Não quero ficar sozinha, Miguel – murmurou segurando-lhe a mão
Sobressaltou-se o homem.
Dominando-se sentou na beira da cama.
-Está bem, dorme. Eu estou aqui.
-Cansada de tanta emoção, depressa a jovem adormeceu.
Ele ficou durante um bom bocado velando-a. Assim abandonada no sono, parecia ainda mais bonita, mais indefesa.
Sentiu-se incomodado. Como se a sua admiração de algum modo maculasse a pureza da jovem.
Levantou-se, apagou a luz e saiu rumo ao seu quarto.
Finalmente a jovem recuperara a memória. Mas havia ainda muita coisa por esclarecer. Se o acidente fora em Abril, e em Sevilha, o que fazia ela no final de Setembro em Lagos? Que teria acontecido, e por onde andaria, nesse intervalo temporal?
De toda a história ele retivera uma coisa. Com a morte do pai, ela ficara sozinha no mundo. Isso explicava porque nunca ninguém a procurara. Mas ela dissera que o pai gastara todas as economias na compra da casa. Onde seria essa casa. E a jovem estava preparada para viver sozinha? Teria meios financeiros para isso?  
Em toda a sua vida, Miguel nunca se tinha visto numa situação tão complicada.
Que devia fazer? Nem sequer podia recorrer à ajuda médica, pois as sessões de psicoterapia tinham sido suspensas até depois do Ano Novo.  
Já o dia despontava, quando finalmente adormeceu.
Quando Luísa chegou, admirou-se com a porta do quarto fechada, sinal de que Miguel ainda dormia. Desde que trabalhava na casa, era a primeira vez que tal acontecia.





  

29.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXV





                     Fachada em Sevilha. Foto minha


- Não digas asneiras. Foi só um pesadelo, - disse tentando que se acalmasse
- Não… não, Miguel.- Soluçava a jovem. - É verdade.  Eu lembrei, eu lembrei...
- Lembraste o quê?
-Tudo. Lembrei de tudo.
Continuava chorando com intensidade abraçada a ele.
O homem sentiu-se perturbado. Não sabia, se pela revelação que a jovem acabava de fazer, se pelo calor emanado do corpo que continuava abraçado ao seu.
-Tens a certeza de que não tiveste um pesadelo?
-Não é pesadelo Miguel. Antes fosse.
 Afastou-a de si. Sem brusquidão, mas com firmeza. Levantou-lhe o queixo obrigando-a a olhar para ele.
- Não acredito no que disseste. Tem de haver uma explicação. Por favor, acalma-te. E conta-me tudo o que te lembres.
Afastou-lhe o cabelo da cara, roçando as costas da mão pela face da jovem, numa leve caricia, que teve o condão de a acalmar um pouco.
 – Nunca conheci a minha mãe. Morreu de parto, quando eu nasci.
Meu pai era um homem muito apaixonado e nunca a esqueceu. Por isso não voltou a casar. Emigrou para Inglaterra, e eu fiquei com os meus avós, os pais da minha mãe. Os avós paternos viviam longe, numa aldeia no norte, e nunca cheguei a conhecê-los. Vivi com meus avós até aos sete anos.  Por essa altura, minha avó sofreu um AVC e partiu pouco depois. O avô não sabia cuidar dele, muito menos de mim. Foi nessa época que o pai regressou. Gastou todas as suas economias na compra da casa, para onde fomos viver os dois. Ele sempre se esforçou para que não me faltasse nada. Era como se quisesse suprir a falta da minha mãe, assumindo ele mesmo o papel dos dois.  De tal forma, que apesar de não ter conhecido a minha mãe, fui sempre uma criança feliz.
-Ó Miguel, eu amava-o tanto!
Ele, não disse nada. Limitou-se a apertar-lhe suavemente o ombro, num gesto de apoio.
A jovem continuou:
- Cresci saudável e feliz. Fui sempre uma boa aluna, nunca tive problemas na escola. Fiz o secundário, e entrei para a Universidade. Escolhi comunicação e jornalismo. Estava  no segundo ano.
Este ano pela Páscoa, meu pai que estava de férias, convidou-me para ir com ele a Andaluzia, assistir às cerimónias da Semana Santa. Era a primeira viagem que fazíamos juntos, depois que me tornei adulta, e era também uma espécie de prenda de anos pois tinha acabado de fazer vinte anos.
Calou-se por momentos. Respirou fundo, e continuou:
- Foi uma semana maravilhosa. Andámos por Málaga, Marbella, Sevilha, Granada, Sierra Nevada. Visitámos museus,e catedrais, e assistimos a  procissões grandiosas.
Calou-se. As recordações eram cada vez mais dolorosas.
-Eu tenho a carta de condução, desde os dezoito anos, mas não tenho carro.
  Apesar disso, e sempre que o desejava, o pai emprestava-me o carro dele, e estava habituada a conduzi-lo.



  

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXIV







Sempre que pensava em pai sentia uma sensação estranha.
No início era uma grande  angústia, uma opressão no peito, uma enorme vontade de chorar. Agora já não era tão intensa, tão opressiva, mas continuava a ser qualquer coisa que a entristecia. O psiquiatra, aventara a hipótese de que podia ser essa a relação causa-efeito da sua amnésia. Mas não passava de uma hipótese, ela não conseguia lembrar-se de nada, a sua cabeça, continuava a ser para o passado uma folha em branco.
Sentiu os passos de Miguel no quarto ao lado. Pensou que talvez fosse sair, mas depois de algum tempo, teve a certeza que nessa noite não o faria.
-Ainda bem, - murmurou ajeitando a almofada e preparando-se para dormir.
No quarto ao lado, Miguel acabara de se deitar. Pegou num livro que repousava na mesa-de-cabeceira e tentou embrenhar-se na leitura. Cedo percebeu que não o conseguia. Poisou-o no mesmo sítio e apagou a luz. Lá fora chovia intensamente.  Percebia-se pelo som nas persianas, que ecoava na casa em silêncio. Mariana decerto já dormia. Lembrou da sua alegria essa tarde, enquanto faziam as compras. Era como uma criança. Uma criança num corpo de mulher. Sim porque ele tinha de reconhecer que a jovem era uma bela mulher. Nem lhe tinha passado despercebido o modo como a olhavam, os homens que por eles passavam.
Tinham passado três meses desde aquele fatídico dia na falésia.
O dia em que ela chegara à sua vida, alterando rotinas, e sentimentos.
A sua vida era tão diferente antes disso.
Não se arrependia. Não. Voltaria a fazer o mesmo. Mas a verdade, é que desde esse dia, vivia uma preocupação constante, Que seria da jovem se nunca mais recuperasse a memória?
“Isso não vai acontecer, não sejas parvo” recriminou-se em seguida. “O médico disse que é temporária. É sempre temporária quando não há lesão ou doença cerebral. E ela não tinha, nenhum mal físico, a RM estava limpa.
Um dia lembra de tudo, e adeus Mariana. Talvez até nem se lembre de todo este tempo, quando recordar o que ficou para trás.
A casa vai ficar vazia sem a sua presença, - pensou
 E embalado pelo som da chuva acabou por adormecer.
Miguel, nunca saberia o que o acordou. Se o enorme trovão que ribombava sobre a sua cabeça, se o grito de terror que lhe chegou do quarto ao lado. Saltou da cama, passou as mãos pelo cabelo e dirigiu-se para lá.
Bateu uma, duas vezes, mas de dentro só lhe chegava o choro aflitivo da jovem.
Rodou a maçaneta, empurrou e a porta abriu-se na sua frente.
O quarto estava às escuras Acendeu a luz e viu a jovem. Estava sentada na cama, os braços abraçando as pernas dobradas, a cabeça escondida nos joelhos, o corpo sacudido pelos soluços. Sentou-se a seu lado, e perguntou acariciando-lhe os cabelos, como quem acalma uma criança.
-O que foi? Tens medo da trovoada?
.-Ó Miguel, eu matei o meu pai! - Murmurou entre soluços abraçando-se ao seu pescoço.

28.8.18

BOA TARDE AMIGOS


Acabei de chegar. Antecipei o regresso. Esta noite ou o mais tardar amanhã retomarei as visitas regulares aos vossos blogues.
Tenho muitas saudades de vos visitar.
Obrigado pela vossa paciência, em continuarem a acompanhar o Sexta apesar da minha ausência
Até breve

FOLHA EM BRANCO PARTE XXXIII


                                    

Fizeram imensas compras. Uma árvore de Natal, bolas coloridas,  roupas e calçado. Muitas roupas. Mais para ela que para ele. Ela se entusiasmava como uma miúda, ele sorria e gostava de a ver assim, sem aquela sombra de tristeza que sempre tinha nos olhos.
Carregados de sacos, e a caminho se casa, Mariana disse:
-Gostava de te pedir uma coisa.
- Esqueceste alguma coisa?
- Não. Gostava de vir amanhã, com a Maria. Comprar umas coisas para ela. Sabemos que a mãe, não lhe poderá comprar nada.  Que dizes?
Ele gostou de saber que ela se preocupava com a amiga.
-Desde que não me esgotem o saldo bancário,- respondeu sorrindo.
Mais tarde, enquanto jantavam, Mariana perguntou:
- Como vai ser a noite de Natal?
- Costumo passar a noite num hotel. Por falar nisso tenho que fazer a reserva.
- Não podemos ficar em casa?
- Em casa? Mas como? Não podemos pedir à Luísa para vir trabalhar nesse dia. E eu não percebo nada de cozinha. Sabes cozinhar?
- Não, - respondeu envergonhada.
- Então?- Interrogou, sem saber o que ela queria.
- A Maria disse que iam passar a noite, com a tia lá em baixo. Parece que é, a única família que têm. Tenho a certeza que se lhe pedirmos, a Luísa faz a nossa ceia. Os doces, podemos comprar, numa pastelaria. Não me apetece ir para um hotel. É muito frio, muito impessoal. Que te parece?
- Se achas melhor assim, parece-me bem. Falamos com a Luísa amanhã e veremos se ela está de acordo.
Depois do jantar, Miguel subiu ao atelier e Mariana foi arrumar as compras.
Sentia-se estranhamente feliz. Aquele dia tinha sido inesquecível.
Não pelas imensas coisas que Miguel lhe comprara, mas porque ele passou a tarde a seu lado, e estivera sempre lá. Sim, porque uma mulher, sabe sempre, quando um homem está consigo, ou quando está apenas a seu lado. E Mariana nunca se tinha reconhecido tão mulher, como quando estava com Miguel.
Desde quando o amava? Não sabia. Talvez desde que abriu os olhos e o viu de pé junto do cavalete, olhando-a inquieto. Ou mais tarde, quando com desvelo cuidou dela. Não sabia. E de resto nem isso  lhe importava. O que era realmente importante, é que estava irremediavelmente apaixonada por um homem, que a olhava como se ela fosse uma miúda, e a tratava como se fosse um pai, atento e carinhoso.

27.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXII





O tempo não pára, os dias de inverno, são curtos e passam rapidamente. 
É extraordinária a facilidade com que os jovens estabelecem relações de amizade. Parecia que as duas jovens, se conheciam de toda a vida. Apesar de ter ficado sem pai há pouco tempo, Maria era uma jovem alegre e extrovertida. Namorava um colega, que a julgar pelo seu entusiasmo era a oitava maravilha do mundo, e, tirando a escassez monetária, era uma jovem feliz e sem problemas. Mariana era a antítese. Mas como diz a sabedoria popular, os pólos atraem-se.
 A exposição de Miguel fora um êxito, as obras foram todas vendidas, algumas para o estrangeiro.
As duas jovens, foram juntas ver a exposição, no dia seguinte ao da inauguração. Embora tivessem reacções diferentes, Maria parecia não estar habituada àquele ambiente, enquanto Mariana estava à vontade, mas ambas “viajaram” para locais lindíssimos através dos quadros expostos. O pintor, encontrava-se rodeado de várias pessoas, a maioria das quais, mulheres muito bonitas. Irritada, Mariana quase se arrependeu de ter ido.
Preparavam-se para sair, mas antes aproximaram-se de Miguel.
Maria cumprimentou efusivamente o pintor.
-Parabéns. Os quadros são lindos. O senhor é um génio.
-Quem dera, quem dera, - disse sorrindo divertido.
Logo se voltou para Mariana:
-E tu? Gostaste?
- Como não? São muito bons. Mas  não vi o quadro daquele lugar…
- Não faz parte da exposição.
-Porquê? Não o acabaste?
Não teve tempo de responder, pois um casal, chamava a sua atenção, e teve de se afastar.
Mariana continuava as suas sessões semanais de psicoterapia, mas exceptuando o facto do médico, ter mandado parar com a medicação, tudo estava quase  na mesma. Quase, porque eram cada vez mais frequentes , os lampejos  de rostos, e ruas , que apareciam e desapareciam sem que ela soubesse quem eram ou de onde eram.
O Natal aproximava-se a passos largos, montras e ruas cobriam-se de luz e cor.
Miguel passava longas horas no atelier. À noite quase sempre saía.
A jovem sentia-se “abandonada”. Não lhe apetecia ver TV. Os livros, começavam a aborrecê-la. Quase todos falavam de amor, de gente apaixonada e feliz. Coisa que ela começava a duvidar de vir a ser algum dia.
Porém naquela manhã, antes de subir para a mansarda, Miguel disse.
-Logo depois de almoço, vamos sair. O Natal é já para a semana, precisamos prepará-lo. Vamos às compras.
Sorriu, o coração batendo acelerado.

26.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXXI


                                               


Acabara de se arranjar, quando Miguel chegou. Sentiu-lhe os passos no corredor, e apressou-se a sair.
- Bom dia.
- Bom dia Miguel.
Vestia umas calças cinzentas e uma camisa de xadrez. A barba de três dias, dava-lhe um ar rude que não lhe ia bem. E estava mais magro, - pensou a jovem.
-O almoço está pronto, Luísa?
- Vai já para a mesa, senhor.
-Vamos almoçar? Não temos muito tempo.
Na sala a mesa já estava posta. Sentaram-se e logo Luísa trouxe o almoço.
Almoçaram quase em silêncio e depois saíram em direcção à clínica onde ela ia ter a consulta.
- Nervosa?
-Um pouco.
-Desculpa, quase não te ter dado atenção nos últimos dias. Depois de amanhã é a inauguração da exposição. Foram vinte e cinco  telas para escolher, e catalogar. E mais um sem fim de coisas que não podia descurar. Faltam quarenta e oito horas para a inauguração. Depois são mais quinze dias de exposição em que tenho de estar presente. Quando acabar, fico com todo o tempo do mundo para ti.
Sentiu um arrepio ao ouvir a última frase e teve quase a certeza que tinha corado.
Como tinham chegado ao consultório, absteve-se de responder.
A consulta foi  demorada, o médico ouviu-os com atenção, analisou demoradamente a Ressonância Magnética, fez muitas perguntas, e acabou por dizer o que eles já sabiam, ou seja concordar inteiramente com o diagnóstico anterior.
Agendaram com a assistente a primeira sessão de psicoterapia para o final dessa mesma semana, e saíram.
Eram quase cinco horas, a noite caía rapidamente, Tinha-se levantado uma aragem fria. Mariana levantou a gola do casaco.
Solícito, ele perguntou:
-Tens frio?
-Um pouco.
Ele colocou-lhe um braço sobre os ombros, como se quisesse transmitir-lhe o calor do seu corpo. A jovem sentiu que o arrepio que nesse momento a percorria, nada tinha a ver com o frio 
-Vê se a Maria pode ir amanhã, ao shopping, contigo. Precisas fazer compras. O inverno está aí, e tens pouca roupa para enfrentá-lo. Desculpa já devia ter pensado nisso, mas como sabes, não tenho tido cabeça para mais nada que não seja a bendita exposição.
Não se referiu à consulta. Por qualquer estranha, e desconhecida  razão, ambos evitaram falar nela.



25.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXX



                                                  


Luísa era uma mulher dos seus quarenta anos, alta e magra de rosto simpático e voz suave. Vestia de preto, e tinha no olhar uma expressão de tristeza. A filha, Maria, tinha dezoito anos, e era igualmente alta, e bem proporcionada. Mariana gostou delas.
Miguel acabou contratando-as, embora ficasse estabelecido que Maria faria apenas companhia a Mariana, quando o seu horário o permitisse.
A consulta com o tal doutor Serra, ficou marcada para a Segunda-feira seguinte e no resto da semana, a jovem não viu Miguel.
Saía antes dela, acordar, chegava quase de madrugada. Às vezes, à noite, sentia-o no estúdio, e tinha um desejo enorme de ir até lá.
Como nessa noite, em que se levantara, enfiara um robe e se dirigira à escada em caracol. Parou junto dela sem se atrever a subir.  Que justificação teria para o fazer? Não podia dizer simplesmente que tinha saudades dele. Ia rir-se dela. Arrependida voltou para a cama. Porque não vinha para baixo? O que fazia lá em cima? Caramba, as telas para a exposição, é que não era. Já tinham sido todas levadas para a galeria, onde iam ser expostas. Pinturas novas? Talvez. Mas tinha que ser agora?
Desde o primeiro momento, quando Miguel lhe disse que a escada, era o acesso ao estúdio, e não a convidou a subir, para lho mostrar, Mariana entendeu que aquele era um local que lhe estava vedado. Era um espaço só dele, uma espécie de santuário masculino. Por isso, pese toda a curiosidade que sentia, nunca se atreveu a subir, nem mesmo quando sabia que Miguel tinha saído. Cansada acabou por adormecer.
Eram quase onze horas quando acordou. Finalmente era Segunda- feira. Dia da consulta. Que diria o médico? Seria da mesma opinião do outro? E Miguel? Lembrar-se-ia da consulta?
Vestiu o robe e dirigiu-se à cozinha.
-Bom dia Luísa.
- Bom dia menina. Preparo-lhe o pequeno-almoço?
- Se comer agora, não almoço. Obrigado.
- O senhor disse, para a avisar que vinha almoçar a casa, e para a menina não esquecer que tinham a consulta de tarde.
- Não esqueço. Vou-me arranjar.
“Miguel vem almoçar! E vamos ficar juntos umas horas. Que bom!” – Pensou enquanto mergulhava na banheira, para um relaxante banho de espuma.

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXIX


Como todos os artistas, Miguel era um bom observador do que o rodeava, e possuía uma enorme sensibilidade. Por isso mesmo, não lhe passava despercebida a tristeza no rosto da jovem, que ele atribuía ao seu estado amnésico. Estava porém longe de imaginar, que ele poderia ser parte dessa tristeza.
O restaurante escolhido, ficava perto de casa. Era um café restaurante, não muito grande, mas acolhedor.
-Um dia, com mais tempo, havemos de ir à Adega Machado, jantar e ouvir o fado. Mas hoje jantamos aqui mesmo, a comida é boa e podemos conversar mais à vontade. - Disse ele afastando a cadeira para ela se sentar.  
Escolheram a refeição e enquanto esperavam, Miguel disse: 
- Queria arranjar alguém de confiança, para te acompanhar e ajudar no que precisares.
Amanhã, vou tentar conseguir a consulta com o tal médico. Vou contigo à primeira consulta, mas se ele achar necessário, as tais sessões de psicoterapia, não poderei acompanhar-te. Os próximos dias vão ser muito complicados, em termos de tempos para mim. Provavelmente nem as refeições, faremos juntos. Falei com a porteira, ela conhece meio mundo no bairro, talvez pudesse ajudar-me. E sabes uma coisa? Ela tem uma irmã que enviuvou há três meses. Precisa urgente de trabalho, tem uma filha estudante, que está em risco de ter de abandonar os estudos, por causa dos problemas económicos em que a morte do pai a deixou.
Calou-se enquanto o empregado servia a refeição, retomando a conversa, logo depois:
- Disse-lhe para virem amanhã. Estou a pensar, que a mãe poderá tratar da casa, fazer compras, e inclusive as refeições. E a filha, que deverá andar pela tua idade, pode acompanhar-te às sessões, ou a dar uma volta pela cidade, ir ao cinema, ou outro lado qualquer que vós, jovens, apreciais. Dava-nos jeito, e era uma maneira de as ajudar, nesta hora difícil. O que achas?
- Não sei Miguel. Faz o que achares melhor.
-Então está decidido. Claro que teremos de combinar as coisas, em função do horário da miúda. Não vamos atrapalhar os seus estudos.
- Miúda, Miguel? Não disseste que era mais ou menos da minha idade?
Ele arqueou a sobrancelha
- E?
-Eu, não sou uma miúda, - protestou com veemência.
- Pois não. Tu és ...uma senhora miúda. – Riu divertido



24.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXVIII

Com tudo arrumado, sentou-se na cama. Gostava da casa. Era bonita. Ouviu vozes no estúdio. O arrastar de qualquer coisa. Percebeu que deviam ser os caixotes com as telas. Uma voz desconhecida que se despedia, uma porta que se fechava, e os passos fortes de Miguel. Gostava de saber que estava  por perto. Sentia-se protegida.
Mariana tinha perdido aquela angústia dos primeiros tempos. Claro que continuava, apreensiva e um pouco angustiada. Como não havia de estar, se continuava sem saber quem era. Mas, já não era aquele aperto no peito, que quase a sufocava, dos primeiros tempos. De vez em quando, sem razão aparente, vinha-lhe à memória, uma frase, um rosto, uma rua. Uma coisa tão fugaz que surgia e desaparecia tão rápida quanto um relâmpago. Seria a sua memória a forçar o regresso? Estava ansiosa por voltar ao médico. É que ultimamente sentia-se muito estranha. Sonhava que em breve ia ficar boa, recuperar a memória, voltar para a sua casa, e para a normalidade da sua vida. Ficava tão feliz! Mas quando se sentia no píncaro da felicidade, deslizava de novo para o vale da amnésia.
Voltar para a sua vida, era deixar de viver com Miguel, de o ver a toda a hora, de conversar com ele, de sentir o seu carinho e protecção. E isso causava-lhe uma angústia quase tão grande, quanto não saber quem era. O ideal, seria recuperar a memória e continuar junto de Miguel. Ali, no Algarve, ou em qualquer parte do mundo. Mas isso não era possível. Ela devia ter família, que reclamaria a sua presença! E Miguel certamente, ficaria contente, por se ver livre dela e retomar a sua vida, Sentiu um nó na garganta e as lágrimas deslizaram silenciosas, pela sua face atormentada. Que se passava com ela? Porque era tão complicada? Ensimesmada, nem reparou, que a noite ia descendo de mansinho, o seu negro manto, sobre a cidade. Acendiam-se as luzes na rua. Mas na cabeça e no coração de Mariana continuava a reinar a escuridão.
Perdida, algures em si mesma, nem ouviu as batidas na porta do quarto, quando Miguel voltou duas horas depois.
Ele chamou ao mesmo tempo que batia de novo;
- Mariana!
Sobressaltou-se a jovem.
- Entra. Está aberta.
- Que fazes às escuras? Estou cheio de fome. Afinal de contas, nem lanchámos. Vamos sair?
- Não me apetece nada!
- Podíamos encomendar uma pizza, mas sinceramente, hoje não me apetece pizza.  Vá lá, a noite está muito bonita. Um bocadinho fria, mas nada de especial. Vestes um casaco e pronto. Anda,- e estendia-lhe a mão, - não aceito uma recusa. E depois do jantar, damos uma volta, pelo bairro. Vais gostar. E demais, aproveitamos o tempo para combinarmos algumas coisas.
- Pronto, convenceste-me!



23.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXVII


                                                     


Inesperadamente, quase à entrada da ponte Vasco da Gama, Mariana disse:
-Lisboa é maravilhosa!
Miguel quase provocava um acidente ao olhar para ela, ao mesmo tempo que o seu pé carregava no travão.
-Lembraste alguma coisa?
-O quê?
Como o quê? Disseste que Lisboa é maravilhosa! – disse ele nervoso
- Ah! Isso? Não sei. Veio-me à cabeça, essa ideia. Nada mais.
- Pode ser um sinal, disse ele sem convicção. Fica atenta. Se reconheceres alguma rua, algum monumento, por favor diz.
- Fica descansado. Ninguém deseja mais isso do que eu.
Mas não voltou a falar até entrarem em casa.
Miguel vivia, no sexto andar de um edifício antigo, numa das zonas mais bonitas da cidade. À chegada, tiveram que dar uma volta pelo quarteirão, até que Miguel encontrou um lugar vago para estacionar, um pouco distante da casa.
O elevador, era antigo, pequeno, mas os dois lá se acomodaram o melhor que puderam pois as três malas de viagem quase o enchiam por completo.
A casa ocupava todo o espaço do prédio que só tinha um inquilino por andar.
Miguel foi abrindo as janelas e mostrando a casa à jovem.
Um quarto, que fora dos pais, o seu quarto, mais um quarto, que era da avó Ermelinda, quando vinha passar férias com o filho, e que seria o quarto para ela, a cozinha, uma sala, na qual uma escada em caracol, despertou a curiosidade da jovem.
-Dá para a mansarda, onde tenho o atelier. Também tem entrada pelo exterior, que uso para a entrada e saída dos materiais e telas.
E finalmente a casa de banho. Destoa do resto da casa, pois foi reconstruída o ano passado. Havia junto dela, um pequeno quarto sem utilidade, mandei derrubar a parede e assim o espaço quase triplicou.
- A casa está impecável. Tanto tempo, fechada, não devia ter pó?
-Na semana passada, telefonei à porteira e pedi-lha que arranjasse alguém de confiança, para vir limpar e arejar a casa.
- Pensas em tudo!
-Estou habituado a viver sozinho. Bom, agora que já conheces a casa, fica à vontade, eu vou lá abaixo à porteira. Preciso da sua ajuda, para resolver algumas coisas, e saber se já chegaram as telas e se ela as recebeu.
Saiu. Mariana foi até à janela e ficou maravilhada. A paisagem era muito bonita. Via-se uma grande parte de Lisboa, o Tejo, a ponte 25 de Abril, e o
Cristo-Rei. “O ideal para um pintor” murmurou preparando-se para arrumar as roupas no armário

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXVI


                                          
. -Muito bem doutor. Mas, eu não posso ficar mais tempo na cidade. É imperioso que regresse a Lisboa. Posso viajar com a Mariana?- Perguntou Miguel.
- Do ponto de vista médico, claro que pode. Em Lisboa existem bons médicos, ela pode perfeitamente ser acompanhada lá. Pode inclusive ser melhor para o restabelecimento da normalidade cognitiva da paciente, se o factor causa-efeito, estiver nesta cidade. O afastamento do local, de uma tragédia, não faz com que ela seja menor, mas faz com que pareça menos trágica. Agora, do ponto de vista legal, pode ser problemático, uma vez que uma pessoa em amnésia, não tem vontade própria, e segundo me disse, a paciente não é sua parente. Mas isso, claro, não é comigo.  E sim com o senhor e as autoridades.
-Compreendo. E o doutor poderia recomendar-me algum colega, em Lisboa?
- Claro que sim. Se quiserem aguardar um pouco na sala, eu vou escrever uma carta a um colega meu. Convém que levem a RM. Se não puder esperar, passe pela clínica, deixe a morada que eles enviam-na pelo correio. Se não o fizer, o colega vai pedir-lhe para ir fazer outra e não há necessidade disso.
-Muito obrigado, doutor.
- Boa sorte! - Respondeu o médico.
Aguardaram alguns minutos na sala, até que a assistente, lhes veio trazer uma carta endereçada a um tal doutor João Serra, na rua António Augusto de Aguiar.
Consulta paga, e já na rua, Miguel perguntou:
-Está desiludida, Mariana?
-Não devia estar? Retorquiu com amargura.
- Não. Já sabemos que não tem nada físico, o que podia tornar irreversível o seu estado. Então é preciso não perder a esperança.
Amanhã vou despachar as telas para Lisboa, e depois seguimos nós. Precisamos comprar uma mala para as suas coisas. Vai gostar da minha casa em Lisboa. Fica num sítio muito bonito, e tem outras condições que esta não tem. E, preciso contratar alguém para ir consigo ao médico e lhe fazer companhia. Vou estar muito ocupado nos próximos tempos. Tenho uma exposição para fazer, e estou muito atrasado. Tenho que ver o espaço, na galeria, escolher as telas que vou expor, mandar fazer os folhetos de apresentação, os convites,  contatar a imprensa, um sem fim de coisas.
Calou-se ao ver que a jovem chorava.
- Mau. O que é isso agora?
- Estraguei a sua vida. Deixou de pintar, de ir às suas tertúlias, está farto de gastar dinheiro comigo. Devia ir-se embora sem mim.
Estacou, zangado:
-Não digas, asneiras, - disse tuteando-a pela primeira vez







22.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXV






Faltavam cinco para as duas, quando chegaram à clínica. Miguel falou com a empregada, enquanto a jovem parecia distraída com a leitura do Juramento de Hipócrates, exposto num quadro na parede.
Como o médico já tinha chegado, não foi preciso esperar muito para serem atendidos.
Miguel contou ao médico a cena protagonizada pela jovem, que ele presenciara.
O médico ia tomando notas. Depois virando-se para a jovem perguntou:
-Além dos sintomas que o Miguel já relatou, sentiu mais alguma coisa?
-Uma grande pressão no peito, que não me deixava respirar, e um enorme medo de morrer.
-E lembra-se de alguma coisa antes disso, que pudesse de algum modo assustá-la?
Negou com um movimento de cabeça.
- E o Miguel, observou alguma coisa fora do normal no momento?
- Não. Só se…
-Diga, diga, tudo o que se lembre, ainda que lhe pareça irrelevante.
- O silvo estridente de uma ambulância que passava.
- Ouviu a ambulância? -Perguntou o médico à jovem
-Creio que sim. Não lembro com exactidão.
-Muito bem.
O médico não se cansava de fazer apontamentos.
- E a RM que eu pedi?
-Fiz ontem em Portimão, na Euromédic, mas só está pronta para a semana.
- Euromédic? Em Portimão? Óptimo. – Disse o médico premindo a campainha na secretária, o que fez aparecer a  assistente  à porta.
-Precisa alguma coisa, doutor?
- Sim, Teresa. Faça-me uma chamada para a Euromédic de Portimão. Pergunte se o Dr Gonçalo Prates está, e se estiver, diga que quero falar com ele e passe-me a chamada.
- Assim farei doutor. E retirou-se fechando a porta
- Enquanto esperamos, há mais alguma coisa que se lembrem?
- Sim doutor.- Respondeu Miguel. E de seguida relatou o incidente na papelaria, e como a partir daí começara a chamar a jovem de Mariana.
- É muito provável que esse seja realmente o seu nome, mas também pode ser de alguém que ela ame muito. A mãe, uma irmã…
O telefone tocou nesse momento. O médico escutou e depois pediu aos dois para saírem.
Uns quinze minutos mais tarde, voltou a chamá-los. Já tinha o exame no computador, já o tinha examinado e estava à vontade para dizer que a jovem não tinha nenhum tumor, ou qualquer outro distúrbio físico, que originasse a amnésia.
- Não havendo, doença degenerativa, encefalite, ou traumatismo, é evidente que a amnésia da paciente, é psicogénica temporária, decerto provocada por um choque emocional. Qualquer coisa que fez a paciente sofrer de tal ordem, que o seu subconsciente se revoltou, e  apagou tudo, numa manobra de defesa. Por outro lado, os sintomas que teve ontem, configuram um ataque de pânico, o que no seu caso parece ser consequência directa,  do trauma que lhe terá provocado a amnésia. Deve continuar a fazer a medicação que lhe receitei, mas mais importante que a medicação, é fazer psicoterapia.

21.8.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XXIV





O homem, preocupado, sem saber que fazer, e quase sem tempo para adiar uma resolução, pois a data agendada para a próxima exposição aproximava-se. A jovem, assustada, perdida, sabe-se lá em que infernos interiores, quase não jantaram nessa noite, apesar de toda a simpatia do empregado do restaurante e do belo aspecto do peixe assado pedido para o jantar. Depois em casa, rapidamente a jovem recolheu ao quarto. Mas estranhamente, ou não, a porta do quarto ficou aberta, e a luz acesa, acabando por adormecer assim.
Na sala Miguel continuava perdido nos seus pensamentos, buscando uma solução para o problema em que se tinha metido.
O melhor, cogitou, será levá-la para Lisboa. Lá existem bons psiquiatras, poderá ser tratada lá. Depois se verá. Mas levá-la daqui, que pode ser a sua terra, não será demasiado arriscado? – Interrogava-se.
Por fim tomou uma decisão. No dia seguinte teria uma conversa franca com o médico, e faria o que ele achasse melhor para a jovem, ainda que isso o contrariasse. Mais calmo, preparou-se para dormir. Como a porta do quarto estava aberta e a luz acesa, chamou pela jovem julgando-a acordada. Ela não respondeu. Hesitou, um pouco e depois dirigiu-se ao quarto. Ela dormia, meia destapada, a farta cabeleira espalhada na almofada. Por alguns instantes ficou contemplando-a. A imagem era demasiado bela para o  olhar de qualquer homem, mas Miguel atribuiu a sua admiração ao facto  de ser pintor. Os seus olhos estavam treinados para tudo o que era belo. E o abandono da jovem que dormia confiante, era de grande beleza. Depois suavemente puxou-lhe a roupa para cima, apagou a luz, e saiu do quarto murmurando:
-Tão jovem e tão sofrida!
Acordou perto das onze. Sentou-se no sofá, e enquanto calçava os chinelos, olhou para o quarto. A porta continuava aberta, mas a cama estava feita, pelo que deduziu que a jovem se teria levantado à muito.
Encontrou-a sentada à mesa da cozinha fazendo rabiscos no caderno de desenho. Vestia, umas calças de ganga, e um camiseiro turquesa. O cabelo apanhado numa só trança, caía-lhe sobre o ombro direito.
“Caramba, parece uma miúda”, pensou enquanto saudava:
-Bom dia Mariana. Dormiu bem?
- Bom dia Miguel. Dormi sim. E parece que o Miguel também. Pelo menos quando me levantei, dormia.
- Adormeci tarde, - desculpou-se sorrindo. Bom, vou tomar o meu duche. Temos que almoçar mais cedo, por causa da consulta. Está preparada?
Ela assentiu com a cabeça.
-Ainda bem.
E saiu dirigindo-se à arrecadação junto à casa de banho. 
Dias depois da chegada da jovem, ele  tinha comprado um armário, que mandou colocar na arrecadação, para onde mudou todas as suas roupas. Não tinha lógica, e nem lhe parecia  correto,  ir para o quarto da jovem, sempre que precisava mudar de roupa. 
Mariana fechou o caderno e dirigiu-se à sala. Apanhou a roupa espalhada no chão, sacudiu-a,  dobrou-a cuidadosamente, guardando-a no gavetão do sofá. Depois fechou-o e colocou-lhe por cima a manta alentejana, e as almofadas de croché.