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28.2.18

CARLOTA - PARTE VI

Foto de um aerograma, rebaptizado pelos militares de "bate-estradas" 

Descansada com o filho, de novo em casa da irmã, Carlota dirigiu-se a casa dos antigos patrões, e contou à antiga patroa o que lhe tinha acontecido. A senhora ficou com pena dela, afinal estivera lá em casa quase dez anos, e deu-lhe uma carta de recomendação para uma amiga, que ela sabia andar à procura de uma pessoa competente e de confiança. Só que era em Cascais. 
A jovem não se importou. Ela queria e precisava trabalhar. Claro que a dona da casa ao ler a carta de recomendação  lhe deu trabalho na hora.
Carlota, regressou à vida de cuidar da casa e dos filhos dos outros, tentando esquecer a triste experiência, porque tinha passado, e cada dia mais descrente na humanidade.
A casa era grande e farta. Além de Carlota, havia uma cozinheira e uma ama para os meninos, que a ajudava nas tarefas da casa, quando eles estavam no colégio.
Dois anos depois, o patrão, diplomata, foi colocado em Paris. Carlota bem como as restantes empregadas, foram convidadas a acompanharem os patrões.
Em Portugal, não havia divórcio pelo que Carlota continuava casada, e embora nem sequer soubesse onde o marido parava, não podia viajar sem autorização dele. Parece ridículo, hoje, mas antes da revolução de Abril, era assim em Portugal.
Por isso, Carlota não pode aceitar. A patroa, passou-lhe então uma carta de recomendação, para uma amiga em Lisboa e assim não ficou sem trabalho. Os anos foram passando, o filho tinha completado dezoito anos, alistara-se no exército como voluntário, e o seu coração de mãe, vivia o pavor de saber que mais dia, menos dia, ele seria destacado para a guerra nas colónias. E o que tanto temia, aconteceu em Janeiro de mil novecentos e setenta e três, quando o jovem foi para a Guiné, integrado numa companhia da PM.
Como Carlota não sabia ler nem escrever, quando começaram a chegar os aerogramas do filho, pedia a uma colega, Dorinda, a trabalhar na casa vizinha, para lhe ler as notícias e escrever as cartas de resposta. Tornaram-se amigas e surgiram as confidências.
Por essa altura, a amiga, recebeu a visita de António, um irmão que regressara de França onde estivera emigrado por doze anos. António, ficara viúvo aos trinta e sete anos, quando a mulher morrera em consequência dum parto complicado, de uma menina que já nascera sem vida. Destroçado, António só queria partir para um local bem longe da tragédia. Foi por isso que emigrou. Primeiro para Espanha, onde trabalhou dois anos, e depois para França onde estivera mais dez. Quase a completar cinquenta anos, a mágoa atenuada pela passagem do tempo, António sentira que era chegado o momento de voltar, e de arranjar uma companheira para o resto da vida. Fora à terra ver a família, pais, irmãs, cunhados e sobrinhos. Aí lhe deram a morada de Dorinda, a irmã mais nova que vivia em Lisboa, na casa dos patrões para quem trabalhava.
Foi visitá-la, e ao conhecer Carlota, logo se interessou por ela. Contrariamente ao que seria de supor, Carlota, não ficou indiferente ao interesse de António. Bem pelo contrário, corava como uma menina, e sentia as pernas a tremer, quando ele a olhava com intensidade. Pela primeira vez na vida, Carlota estava apaixonada.


A todos os que leram A Culpa, conto que estava a concurso,  informo que o resultado saiu ontem.
Eis a cópia  do  mail que me mandaram

Boa noite 

Aqui estamos para comunicar o resultado da decisão do júri 
para o 11º Concurso Literário Papel D´Arroz Editora 

Resultado - 11º Concurso Papel D´Arroz Editora


- A CULPA - 

1º Classificado - Paulo Vaz 
2º Classificado - Mª Elvira Carvalho 
3º Classificado - Maria Estrela do Mar 


Parabéns ao Vencedor! 


O Autor vencedor terá a edição de um livro - de sua Autoria - sem custos - Edição da responsabilidade de Papel D´Arroz Editora - Grupo Múltiplas Histórias 


27.2.18

CARLOTA - PARTE V


O comportamento de Francisco começou a mudar seis meses depois. Primeiro foram as saídas à noite. Depois o dinheiro que lhe dava para a casa que foi encurtando até deixar por completo de lhe entregar dinheiro. Carlota fazia limpezas em duas lojas, mas o ordenado não chegava para as despesas da casa. Começou a questionar o marido, e ele tornou-se agressivo. 
A poucos dias de comemorarem um ano de casados, levou a primeira sova. 
Ficou com um olho negro, e várias equimoses espalhadas pelo corpo. Tudo porque ela queria dinheiro para pagar, a conta no talho e na mercearia.  
Por vergonha escondeu de todos o que se passava.  Até mesmo quando questionada pela irmã, ela disse que tinha caído na rua. Dias depois, o marido chegou a casa com um ramo de flores, pediu-lhe desculpa, jurou que nunca mais lhe fazia mal, deu-lhe dinheiro, e durante algum tempo tratou-a com carinho, parecendo o homem dos primeiros tempos de casado.
Para mal dela, essas alterações, tornaram-se rotina. Ora lhe batia, ora lhe suplicava perdão e jurava mudar de comportamento. Ora lhe dava dinheiro, ora lho tirava e a deixava sem um tostão em casa. Carlota contou à irmã o que se passava, e disse-lhe que se queria separar do marido. A irmã disse-lhe que era uma vergonha, nunca ninguém na família se separara, o povo ia dizer que ela era uma perdida, e depois ela sabia que “quem se obriga a amar, obriga-se a padecer”. Carlota chorou, mas resignou-se, especialmente depois que descobriu que estava grávida.
Infelizmente não teve tempo para contar ao marido o que se passava. Naquela noite, ele disse-lhe que ia sair e pediu-lhe o dinheiro, que dias antes, entregara para a casa. Ela negou, e depois de duas violentas bofetadas, o marido dirigiu-se à gaveta onde ela guardava o dinheiro.
Com as notas na mão encaminhou-se para a porta. Carlota tentou impedi-lo e ele deu-lhe um encontrão que a derrubou na sua frente. Como se não chegasse ainda lhe deu um pontapé, que a apanhou em cheio na barriga.
Depois abriu a porta e saiu. A jovem ficou no chão contorcendo-se com dores. O filho, aflito, sem forças para a levantar, chamou uma vizinha.
A mulher ajudou-a a erguer-se e ao fazê-lo, Carlota deu-se conta que estava com uma hemorragia. A vizinha ofereceu-se para ir ao café chamar uma ambulância, (naquele tempo poucas pessoas tinham telefone em casa).
No hospital Carlota soube que acabara de perder o filho que esperava.  Ficou internada, pois surgiram complicações, foi operada e informada de que não mais podia engravidar.
O marido ia vê-la todos os dias. Chorava, pedia perdão, fazia promessas. Ela já não acreditava nele. Pensava que ele tinha uma amante. E se assim era, pois que fosse para junto dela. Soube depois que não havia tal amante. O marido era viciado no jogo. Contou-lhe a vizinha quando a visitou no hospital. Fora um sobrinho que lhe contara, “ele está empregado num desses sítios onde se joga,  e diz que já o viu perder muito dinheiro” dissera ela.
De qualquer modo ela estava decidida. Não voltaria para casa. Só precisava falar com, a irmã, e  pedir se lhe cuidava do filho. Ela não tinha dinheiro para alugar uma casa, para  viver com ele. Nessa altura, dava graças a Deus, por Francisco nunca ter cumprido a promessa de perfilhar o garoto.
Assim, não podia exercer qualquer chantagem por causa dos direitos sobre o filho.
Depois, ela havia de se arranjar. O trabalho nunca lhe metera medo.



CARLOTA - PARTE IV


Duas vezes por mês Carlota tinha o dia de folga. Eram os dias para passar com o filho que continuava a ser criado pela irmã. À medida que os anos iam passando, e o garoto crescendo, tornava-se cada dia mais parecido com o pai. Essa parecença, já fora notada pelo pessoal da aldeia que vinha fazer a safra para a Seca. Tanto Carlota, quanto a irmã, Fernanda, tinham a certeza que já toda a gente sabia de quem o garoto era filho. Esta semelhança, era um espinho cravado no peito de Carlota que não conseguia olhar o filho sem reviver a violência de que fora alvo, e se culpava por não conseguir demonstrar ao filho, todo o amor que realmente sentia por ele.
Quantas vezes, levantava a mão, para fazer uma carícia ao filho, e ao olhá-lo, se lembrava do pai , e a deixava cair inerte. João foi crescendo assim, sentindo mais amor pela tia, do que pela mãe, que via esporadicamente e que não lhe demonstrava grande afeto.  Ele não podia saber, o amor que a mãe sentia por ele, nem os sacrifícios que fazia para que não lhe faltasse o necessário, já que a irmã e o cunhado, tinham um ordenado de miséria e três filhos para criar. Prestes a fazer vinte e nove anos, Carlota conheceu Francisco que se apaixonou por ela e lhe propôs casamento.
 Francisco era um homem alto, bem-parecido, que dizia ter um futuro estável, pois era funcionário público. 
Sentindo-se tentada a mudar de vida, especialmente por causa do filho, a quem podia dar um melhor futuro se casasse, Carlota contou-lhe que tinha um filho de dez anos, e que só aceitaria casar se ele aceitasse esse facto e a autorizasse a trazer o filho para a sua companhia. Francisco aceitou, e combinado o futuro casamento, Carlota fez-se acompanhar por ele, quando na folga seguinte foi visitar o filho a casa da irmã.
Contrariamente ao que esperava, nem a irmã nem o marido se mostraram entusiasmados com o  casamento.  Mas ela era maior de idade, sabia o que fazer, e eles só desejavam que fosse feliz.
Quatro meses passados, Carlota e Francisco, uniam o seu destino na Igreja de Santa Cruz no Barreiro, numa cerimónia simples mas bonita.
Depois do casamento ficaram a viver no Barreiro. Carlota deixou o seu trabalho de “criada interna” em Lisboa e começou a procurar um trabalho de limpezas perto de casa. Não sabia ler nem escrever, mas sabia como ninguém tratar de uma casa, lavar, cozinhar ou engomar.
A sua casa não era grande, apenas dois quartos e uma pequena sala, mas Carlota estava feliz por ter o filho consigo. Depois,Francisco tinha prometido, que havia de perfilhar o garoto e dar-lhe o seu nome. Mas nem tudo eram rosas na sua vida.
Primeiro porque o filho queria voltar para casa da tia, sentia a falta das brincadeiras com os primos e sentia que a mãe e o “tio” lhe eram pessoas estranhas.  Segundo, Carlota, não amava o marido. Estava-lhe grata, respeitava-o, mas não se entregava. Não se fazia rogada, não inventava desculpas, para evitar as relações sexuais, mas o fazia como alguém que cumpre uma obrigação, dolorosa, mas que não se pode evitar.



Estou sem internet. Com visita do técnico agendada para amanhã à tarde. Pelo Smartphone tenho dificuldade em vos visitar. Peço desculpa.


Voltou a Internet. Já ando a ficar farta.  O ano passado foi uma desgraça. Três vezes me mudaram o modem, Cinco vezes estiveram aqui os técnicos. Este ano é a terceira vez. 
Fico sem net sem que haja avaria na zona. Telefono e sigo todas as instruções e nada. Agendam uma visita porque a box não responde, e passadas 4 ou 5 horas  a net  volta sem que ninguém faça nada. E lá tenho que telefonar de novo a desmarcar a visita do técnico.

26.2.18

CARLOTA - PARTE III

Foto da rua onde Carlota trabalhava. Edição de António Passaporte.

A irmã bem tentou saber o que se passava, mas Carlota não se abria. Morria de vergonha que alguém descobrisse o que acontecera, como se fosse a culpada. Infelizmente para ela, não pôde ficar calada por muito tempo, pois “as regras” não vieram e o corpo começou a apresentar sinais evidentes de que estava em transformação. Com a experiência que lhe davam os anos de casada e os três filhos que já tivera, a irmã, cedo se apercebeu do que se passava, e Carlota viu-se obrigada a contar o que se passara.
Revoltado e irritado, o cunhado praguejou, e pensou ir à aldeia tirar satisfações, mas foi demovido pelas duas mulheres. Afinal, naqueles tempos, aquela situação, era mais corrente do que aquilo que se desejava, e aos senhores nunca acontecia nada. Eles tinham dinheiro para comprar o que queriam, até a justiça, que ainda culpava a mulher, e a considerava destruidora de lares. Depois, quem sabe, o malandro não cumpria a ameaça e se vingava no pai da jovem, ou noutro membro da família.
Assim, resolveram até, não contar nada aos pais da jovem, pelo menos por enquanto, que quando o pessoal da aldeia, viesse para a safra, iria ver a jovem prenhe, e no regresso à aldeia, toda a gente iria saber que a jovem “se perdera” e esperava um filho sem pai. Mas até lá, muita água havia de correr debaixo da ponte, quem sabe a gravidez não ia adiante?
Porém isso não aconteceu e em Março, a parteira chamada às pressas pelo cunhado, trouxe ao mundo um belo rapazinho. O cunhado escreveu aos sogros, contando que a jovem, tinha acreditado na conversa de um malandro, que a abandonara quando soubera que estava esperando uma criança. Ele nada pudera fazer, já que o malandro em questão, tinha desaparecido sem deixar rasto. Não podia contar a verdade. Tinha medo do que podia acontecer.
De volta recebeu uma carta da sogra, dizendo que o marido estava furioso, dizia que a filha “era a vergonha da sua cara, que nunca mais queria vê-la, que para ele ela tinha morrido.”
Apesar de saber de antemão, que essa seria a reacção do pai, Carlota sentiu-se destroçada.
Felizmente para ela, a irmã e o cunhado, tratavam-na com muito amor, e davam-lhe todo o apoio material que os seus fracos recursos materiais permitiam, até a cuidar do filho, pois ele era tão pequenino, que ela até tinha medo de lhe pegar.
“Mal de quem morre, os vivos, pontapé daqui, pontapé dali, tudo se cria”, - dizia o povo na época, e até que era verdade. O menino foi crescendo saudável, sempre rodeado dos primos, mais velhos, e a mãe empregou-se como criada de servir na casa de um senhor doutor,(1) em Lisboa. Tinha comida e dormida, o que recebia, entregava à irmã, para o sustento do filho. Os anos foram passando, Carlota estava cada dia mais bonita, não lhe faltavam pretendentes, mas ela não queria saber de namoricos. Naquela época, havia o culto da virgindade, dizia-se que esse era o verdadeiro tesouro das raparigas, e aquela que fosse “desonrada” já não servia para esposa.  Apenas era procurada para diversão, uns minutos de prazer, com que os homens temperavam o corpo e a vida. Carlota sabia disso, via o que acontecia com outras colegas, também criadas de servir. E o que não via, ouvia em comentários, quando se encontravam na praça, ou nas folgas.





1)  Naquela época era comum chamar doutor a qualquer um que fosse rico, mesmo que ele não tivesse qualquer curso superior.

25.2.18

CARLOTA - PARTE II



foto minha, de um dos armazéns da Seca da Azinheira.

No final do primeiro ano de safra, Carlota juntou os seus trapinhos, e o pouco dinheiro amealhado, e foi à aldeia. Há quatro anos que não via os pais, nem os irmãos, alguns tinham casado entretanto, tinha família, que ainda não conhecia.
Tinha quinze anos mas não aparentava nem treze, pois continuava miúda e franzina, embora cheia de genica. Depois de abraçar os pais e irmãos, conhecer os cunhados e até um sobrinhito, nascido entretanto, começou a procurar trabalho nas quintas da aldeia. Afinal iria permanecer lá até ao final de Agosto, altura em que pensava voltar ao sul, para a safra do bacalhau. E nessa vida o tempo foi passando, os anos foram fazendo o seu trabalho e aos dezoito anos, Carlota, era uma bela jovem, apesar do seu escasso metro e cinquenta. Tinha uma farta cabeleira que usava sempre entrançada, uns grandes e expressivos olhos castanhos, que iluminavam um rosto bonito, de nariz fino e boca pequena. Bem proporcionada de corpo, não lhe faltavam pretendentes, mas a jovem achava que era muito nova para se prender, queria algo diferente da vida, algo mais do que encher-se de filhos como a sua mãe e irmãs, e então pensava que quanto mais tarde isso acontecesse melhor.
Mas a vida, ou o destino, ou lá o que fosse, fez com que nesse ano, o patrão se enrabichasse por ela. Na verdade já no ano anterior ela notara que ele a olhava de maneira estranha. Mas como a jovem sempre ia e vinha acompanhada de outras trabalhadoras, a coisa não passou disso mesmo.
Porém naquela noite de Julho, quando ela regressava a casa, foi surpreendida pelo homem que a tomou à força. Consumado o ato vil, ainda a ameaçou, dizendo que se ela contasse a alguém, o seu pai ia aparecer morto num qualquer valado, daqueles caminhos, sem ninguém saber como.
Ferida no corpo e na alma, a jovem engoliu o choro, disfarçou o melhor que pode, a dor e a raiva que sentia, e no dia seguinte, despediu-se dos pais dizendo que estava farta do trabalho no campo, e que ia para casa da irmã na Seca. De resto estava-se nos finais de Julho, faltava um mês para a safra começar, podia ser que a aceitassem para a limpeza dos armazéns, que faziam sempre antes dos navios chegarem.
Cedo, a irmã e o cunhado notaram que Carlota estava diferente. Antes parecia um rouxinol, sempre cantando, agora estava triste calada. O sorriso fácil e bonito de antes, parecia agora um esgar. Até a paciência para as brincadeiras com os sobrinhos perdera.



24.2.18

CARLOTA



Carlota nasceu num bonito dia do final de maio, uns anos antes do início da segunda grande guerra.
Décima terceira filha de um casal pobre, de uma aldeia esquecida, neste país, governado na época, pela mão de ferro de Salazar, Carlota viveu os primeiros anos da sua vida, sempre com a sensação de que precisava comer. Pequena, franzina, sempre com um sorriso gaiato no rosto, aparentando ter menos idade do que realmente tinha. Tal como os seus irmãos, não foi à escola, que isso era coisa de ricos, e depois para que precisava uma mulher de estudar?
Uma mulher precisava saber cuidar da casa, do marido, cerzir a roupa dos filhos, enfim ser a fada do lar.
Nunca teve uma boneca, até ao dia que resolveu cortar o vestido de uma das irmãs mais velhas para costurar uma boneca de trapo, conhecida na altura por matrafona, o que lhe valeu uma valente tareia da mãe.
Como era pequena e franzina, na aldeia, ninguém lhe dava trabalho, pois achavam que não teria forças para o executar, pelo que foi ficando em casa até quase aos dez anos, altura em que o senhor João, um dos homens ricos da aldeia, lhe deu trabalho a apascentar o seu rebanho no monte.
Os primeiros dias, foi com muito medo, dizia-se que de vez em quando um lobo esfaimado, atacava o rebanho. Com o tempo foi perdendo o medo. Um dia porém deixou fugir as ovelhas, para uma propriedade vizinha, e o dono deu-lhe uma tareia tão grande,que a atirou para uma cama de hospital. Foi a primeira sova, das muitas que a vida, lhe reservava.
Quando saiu do hospital, já havia outra criança da aldeia a apascentar o rebanho do senhor João, pelo que Carlota regressou à casa paterna. Pouco depois, uma das irmãs mais velhas, já casada e com filhos, pediu aos pais se a deixavam ir lá para casa, era uma ajuda para cuidar das crianças. Para os pais, era uma boca a menos, para repartir a comida que raramente chegava, pelo que acederam prontamente. Foi assim que Carlota chegou à Seca do Bacalhau, na Azinheira, uma pequena localidade, na margem do rio Coina, perto do Barreiro.
Na casa da irmã, não haviam luxos, mas tinha uma cama só para si , e na mesa, sempre um prato de sopa, e um pedaço de pão.
Aí esteve três anos, cuidando dos sobrinhos, até que completou catorze anos, idade com que podia legalmente trabalhar na Seca. Podia ter o seu dinheirinho, coisa que até aí não soubera o que era.  
A irmã e o cunhado, mal ganhavam para o sustento da casa, roupas e calçado, só quando a filha do capitão, ou a mulher do empregado de escritório lhes dava, as roupas que deixaram de servir aos filhos, ou de que elas próprias deixaram de gostar. Aí era uma festa, para ela e para as crianças. Com muito jeito para a costura, ela acertava-as ao corpo, e até pareciam novas.





23.2.18

CONVERSANDO CONVOSCO AMIGOS







Acabou ontem esta pequena história de outros tempos.  Recordação para os da (ia dizer da minha escola, mas isso soa a tropa) minha geração, ou mais velhos, e conhecimento para os mais jovens que nasceram numa época em que a vida por força da liberdade, das novas leis, e até da informática, que veio fazer do imenso e desconhecido mundo dos nossos anos, uma aldeia, dera já um grande salto.
Quase a terminar uma nova história, amanhã vou apresentar-vos a Carlota, uma mulher que já tinha quarenta anos quando o 25 de Abril chegou.  Não é recente, publiquei-a em 2014, não sei quem na altura a leu, pois nessa época tinham-me aconselhado a retirar os textos depois da publicação, para não serem roubados. E foram vários os contos que apaguei entre 2014/2015.
O facto de eu contar várias histórias no teatro da Seca do Bacalhau da Azinheira Velha, deve-se ao facto de eu ter aí nascido, crescido, e trabalhado vários anos. De ter conhecido muita gente e muitas histórias.
Enquanto isso termino a história que estou a escrever e que se passa na atualidade.
Obrigada a todos os que por aqui passam. E já agora se souberem, expliquem-me o que tinha de especial o post de ontem que as 200 visualizações do costume, subiram para 461
Obrigada a todos pelo vosso carinho e pelos comentários que me servem de incentivo.

ENTRE DUAS DATAS - FINAL


Passaram cinco anos. E também hoje é um belo dia de Setembro. Clara acordou com os primeiros raios de sol, beijando a janela. Olhou à sua volta. Ao lado da cama, num berço de vime, o seu filho dormia o sono dos anjos. Saltou da cama, tomou banho e tratou de se embelezar um pouco. Nada de especial, que mulher de pescador, anda de cara lavada. Apenas um entrançado diferente no cabelo e um vestido mais alegre. Porque para ela, é um dia especial. Chega hoje o Gazela, um velho barco da pesca bacalhoeira, e nele, vem o seu marido. Enquanto espera que o bebé acorde, Clara vai recordando como conseguiu namorar Pedro e casar com ele. Não fora nada fácil. Gato escaldado de água fria tem medo, diz o povo e com razão.
Quando ele descobriu a traição, levou dois dias sem aparecer na rua, nem no trabalho. No terceiro dia quando voltou, não comentou nada com ninguém, e não falou mais da falecida. Era um homem diferente, não já revoltado,  mas mais duro, mais duro, mais fechado, mais indiferente, como se o mundo à sua volta, tivesse deixado de lhe importar. 
Clara, que desde os bancos da escola, sonhava o seu futuro com ele, propôs-se consegui-lo. Durante os meses que o navio levou até partir de novo para os bancos de bacalhau, quantas vezes ela se sentou a seu lado e ali ficou em silêncio como se fosse a sua sombra? E depois que ele partiu, quantas cartas escreveu, para o porto de St. John's, onde se abasteciam, sem receber resposta?
Quando ele voltou, Clara estava no cais, com a velha mãe de Pedro. E foi grande a desilusão quando ele agiu como se não a visse. Mas não desistiu. O amor que lhe tinha era demasiado grande. E a sua perseverança deu frutos, dois anos mais tarde.
O bebé chorou, e ela sacudiu a cabeça, com se quisesse afastar as recordações e dirigiu-se ao berço. Mudou-lhe a fralda, e deu-lhe o peito. Acariciou a cabeça do filho, e enquanto ele se alimentava, deixou-se envolver de novo, pelas recordações. Um dia, Pedro olhou para ela, e pareceu vê-la de outra maneira. Ficou a fitá-la pensativo. O coração apaixonado de Clara ficou em sobressalto.
Uns dias depois pediu-lhe namoro. Não foi uma declaração apaixonada. Muito longe disso. Foi assim como se o homem, não visse nela a mulher, mas uma amiga, uma companheira. Alguém a quem se habituara, o único ser humano que parecia importar-se com ele, depois que a sua mãe morrera.
Clara aceitou. E teve que lutar contra os preconceitos dos próprios pais, que não viam com bons olhos, aquele namoro. Diziam eles, que um homem viúvo carrega recordações, sempre vai fazer comparações. Mas Clara manteve-se firme, contra tudo e contra todos. Confiou no seu amor, para lhe fazer esquecer as más recordações. E ganhou a batalha. Agora, - ela acreditava nisso, - Pedro amava-a tanto, quanto ela o amava. O filho acabou de mamar. Clara levantou-se, e com o filho ao colo foi até à janela.
O barco já tinha passado a ponte férrea que ligava  o Barreiro ao Seixal, e dirigia-se para o local onde ia  fundear. Clara apertou o filho ao peito, e correu para a velha ponte de madeira, que serve de cais, onde os pescadores vão desembarcar. Pelo caminho, Clara recordou aquele outro dia, cinco anos atrás. Mas que diferença entre um e outro. Hoje, Pedro, será dos primeiros a saltar para a lancha que o trará para terra. E como ela está ansiosa por o abraçar, e lhe mostrar o filhito, que ele ainda não conhece. 
E ei-lo que galga as escadas, e chega perto dela. Abraça-a fortemente, de tal modo que o menino que ela tem no colo começa a chorar. Pedro pega o filho, com lágrimas nos olhos e ar desajeitado, e a criança chora ainda mais, assustada com aquele rosto desconhecido. Clara acalma o filho, e o marido enlaçando-a murmura emocionado, como numa prece:

-Mulher...Mulher...

Amorosamente o olhar de Clara envolve o marido, e diz com emoção.

- Pedro! Meu Pedro!

Fim


Elvira Carvalho


21.2.18

ENTRE DUAS DATAS - PARTE V







- Não digas isso meu filho. És jovem, e algum dia esquecerás, embora isso hoje, te pareça impossível. E eu? Será que não pensas em mim, filho da minha alma?  
Havia lágrimas na voz e nos olhos da idosa. Estivera bastante doente, e ainda andava com dificuldade, razão porque chegara tarde.
- Eu também fiquei sem o meu homem, e Deus sabe como lhe queria. Mas que seria de ti, se eu me deixasse levar pelo desespero? Por ti tive de viver. Sofri muito meu filho. Santo Deus como sofri. E hoje, queres acabar comigo, acabando contigo?
Tinha-o apertado nos braços, e choravam. Mãe e filho abraçados comungavam da mesma dor. Clara ficou a olhá-los enternecida. Na verdade sempre tivera um fraquinho por Pedro, mas ele escolhera outra na hora de formar família.
- Mana, olha toda a gente já foi embora - disse a pequenita, puxando-lhe a saia.
Era verdade. Clara que só tinha olhos para o homem que amava, nem se apercebera.
- Mãe, mãe, perdoe-me. É que sofro tanto!
 A frase saíu entrecortada, como se quisesse engolir o soluço que lhe apertava a garganta. 
- Mas olhe minha mãe, não se preocupe. Eu julgava que tinha perdido tudo e não é verdade. A mãe precisa de mim e eu vou viver para si. Que Deus me perdoe a minha insensatez.
- Vamos Pedro. Já todos se foram embora. A tua mãe esteve doente, e ainda não pode abusar das suas forças. Vamos andando.
- Vamos sim, filha. E tu, meu filho, dá-me o teu braço e ampara este velho corpo cansado.
Deram-lhe o braço, e cada qual do seu lado, ajudaram-na. Na frente dos três a irmãzita de Clara, tentava apanhar uma borboleta, cantarolando com a inocente alegria das crianças.


Esta história termina amanhã.  

ENTRE DUAS DATAS - PARTE IV


Calou-se e ficou pensativo. Como se, falar do caso, lhe trouxesse à memória, toda a angústia vivida. Clara escutara-o em silêncio. Procurou com o olhar o Santos contramestre do navio.
-É um grande homem, - disse Pedro que seguira a direção do seu olhar. - Não fora ele, e certamente não estaríamos aqui hoje e toda essa gente teria alguém por quem chorar.
- E depois Pedro, como chegaram à Terra Nova? - Perguntou Clara, enquanto puxava a irmã, para junto de si.
- Depois que o temporal passou, embora com alguma dificuldade, conseguimos chegar a St. John's, onde reparámos a avaria, e abastecemos. Lembro-me bem, porque foi aí que eu recebi a notícia da morte dela.
Calou-se e por momentos, o seu olhar perdeu-se na distância. Clara olhava-o em silêncio, respeitando a dor do jovem. Ele retomou a conversa:
- Deus como sofri. Procurei a morte a todo o instante. Mas Deus, sempre me protegeu. E eu... eu, que nunca tive medo de nada, tive medo disto. De chegar aqui, e ver toda esta alegria e felicidade à minha volta... Ah! Rapariga, que se tu soubesses quão negros são os meus pensamentos, por certo fugirias de mim. A Glória era uma grande mulher. E uma boa esposa. Amava-me e eu adorava-a. E morreu. Morreu num desastre estúpido. Queria morrer também. Sem ela, a minha casa vazia, os meus sonhos mortos, que me importa viver?
Clara, não teve uma palavra de consolo para ele. Que podia ela dizer para lhe mitigar tão intenso sofrimento? Que a "grande mulher" a quem ele adorava, tinha morrido quando fugia com outro? E podia ela cravar-lhe no peito, mais esse punhal? Seria como matá-lo duas vezes e não se pode ser tão cruel. Mas alguém lho diria. Nas terras pequenas tudo se sabe, e as pessoas parecem tirar prazer do sofrimento dos outros.                                                
                                                        
Continua


20.2.18

ENTRE DUAS DATAS - PARTE III




                                                                foto da net



Os últimos homens galgavam as escadas a correr. Mais gritos, mais risos, mais lágrimas. Os olhos de Clara ficaram presos num belo moço que subia lentamente as escadas, como se não tivesse pressa de chegar. Filho de uma viúva, moradora ali ao lado na Telha, antigo companheiro de brincadeiras, o jovem  alto e robusto, parecia carregar nas costas o  peso do universo.
 Aproximou-se dele, e saudou:
- Olá Pedro, como estás?
-Olá rapariga, - respondeu no seu vozeirão forte. - Como queres que esteja, um homem como eu? Não vês tu? Toda esta gente está feliz, contente, e olha para mim? Que diferença entre este dia e o outro no ano passado. Também eu nessa altura galguei estas escadas quase sem as ver. Também eu tinha aqui a minha mulher, à minha espera. E hoje... hoje...
As últimas palavras morreram num som rouco que mais parecia um soluço.
- Olha Pedro, é verdade que estiveram quase a afundar-se durante um temporal? - Clara tentava assim afastar maus pensamentos da mente do jovem.
- É verdade sim. Foi quando saímos dos bancos de pesca, da ilha de Baffin, a caminho da Gronelândia. Fomos apanhados por um violento temporal. Partiu-se um guincho, e ao cair apanhou o barco inclinado por uma vaga maior, provocou um pequeno rombo no casco do navio e começámos a meter água. O motor parou. Todos estávamos assustados. Chegámos a pensar que não saíamos dali com vida. O vento forte, e as vagas altas, atiravam o barco de um lado para o outro, como de dançasse uma música infernal. Uns rezavam em voz alta, outros apertavam ao peito as fotografias da família. E entretanto afundávamo-nos irremediavelmente. Foi então que o Santos, o contramestre gritou:
- "Que fazeis aí parados, homens de Deus? Deixai-vos de choros idiotas, ou ides servir de jantar aos peixes. Venham aqui ajudar, rápido. Mulheres que fossem, não estavam tão assustadas." Não sei o que cada um sentiu. Mas lutando contra o vento, presos a cordas por causa das ondas que varriam o convés, descemos ao porão e tentámos tapar o buraco. Eu fui para a bomba tirar a água, o Santos, o Ti'Amadeu, e mais seis homens lá conseguiram depois de muito esforço tapar o buraco. Incrível como um rombo tão pequeno metia tanta água, e fazia tanta pressão. O Jorge da Rita agarrou uns desperdícios, e de escopro e martelo foi calafetando à volta da tábua nova que os homens tinham pregado sobre a de estava a deixar passar a água. Tivemos ainda que lutar com o temporal durante um bom par de horas, mas a questão da água fora resolvida.

Continua 


19.2.18

ENTRE DUAS DATAS - PARTE II



- Mana, mana, já viste, esta senhora tem tantas saias! -disse de repente a pequenita.

Ela olhou, a bonita nazarena, que estava junto à irmã. Sorriu, e a mulher devolveu-lhe um sorriso rápido, que tinha muito de nervoso. Logo os seus olhos voltaram-se de novo para o barco que estava já bem perto do sítio onde iria fundear. O Gazela, era um belo veleiro de três mastros, Talvez o mais belo barco da Faina Maior,(1) que arrogante e belo passeava majestosamente pelo rio Coina, com as suas velas brancas tremelicando ao vento, como se foram lenços gigantes acenando. Era o navio mais antigo da frota, mas era também o mais belo. Nele, ela via, toda a primitiva beleza das naus, com que os portugueses saíram em busca de novos horizontes.

 Nesse ano estivera prestes a afundar-se durante um temporal, e, talvez por isso houvesse ainda em cada olhar, um misto de receio a toldar a alegria da chegada.
 A ela, apaixonava-a, ver como aqueles homens de aspeto duro e rude, que lá longe travavam uma luta diária, contra o mar, que tem tanto de belo, como de traiçoeiro, quando pisam terra se transformam nos mais delicados, para abraçar quase sem jeito, as suas mulheres, os seus filhos, e as suas famílias.
 O barco estava agora fundeado. Os pescadores saltam rapidamente para as lanchas, que os irão levar até à pequena ponte de madeira, onde a família os espera com ansiedade.
 - Anda cá querida, não te debruces que podes cair à água - chamou ela a irmã que se afastara um pouco.
 Nesse preciso momento chegaram à pequena ponte as primeiras lanchas, cheias de pescadores.
- Manel, meu rico Manel - gritou uma velhota mesmo ao pé dela.

-Paizinho, paizinho, - chamou um garoto mais distante.

E há abraços e beijos, risos e lágrimas, naqueles rostos queimados pela vida rude do mar. E chega outra lancha, e outra, e mais outra ainda. E há enlevo e amor nos olhos de toda a gente. Naquele momento, tudo foi esquecido, apenas se vive o momento presente. Lá no rio, as velas do barco, ondulando ao vento parecem acenar gritando:

- Adeus até para o ano!

                                                              Foto AQUI



1) Faina Maior, era a designação dada à Pesca do Bacalhau, que não se fazia com rede como hoje. Era um trabalho muito duro e solitário. Cada navio, levava tantos dóris como homens para a pesca. O dóri era esse barquito da imagem. Quando chegavam ao seu destino, o barco fundeava, e os dóris eram lançados ao mar. Cada um levava apenas um homem, e algumas provisões, e a pesca era feita à linha, com uma longa linha de vários anzóis. Só voltavam ao barco, quando o dori estava cheio ou as provisões de comida e água se esgotavam, ou se houvesse ameaça de tempestade. Não havia naquela altura coletes salva-vidas, mas ainda que os houvesse não teriam servido de muito, já que as águas geladas da Groenlândia, levavam apenas três minutos a matar um homem pelo frio. 
Muitos ao longo dos anos ficaram por lá vitimas de uma tempestade que parecia surgir do nada. E se mais não ficaram, era porque o pescador ao abrir o bacalhau e encontrar no bucho pedras, sabia que uma tempestade se ia formar e remava para o navio para se proteger. Na verdade o bacalhau, sempre que pressentia a tempestade, engolia pedras para se manter no fundo do mar, imune à mesma.

18.2.18

ENTRE DUAS DATAS



foto da net
                                                        I
Corria o ano de mil novecentos e sessenta e quatro.
O dia amanhecera radioso. Era um belo dia de Setembro, quando Setembro capricha ainda por nos dar um Verão, que a pouco e pouco se vai despedindo, renitente em dar lugar ao Outono.
 Quando ela abriu os olhos, o sol iluminava já a janela, como que a dizer-lhe:

- Acorda preguiçosa. Não sabes que dia é hoje? É um grande dia!

A jovem sorriu. Sorriu para o céu azul, para o passarinho, que naquele momento, passou a cantar, esvoaçando pela janela do seu quarto, e para o sol radioso que anunciava um dia de calor. Levantou-se, foi até à janela e abriu as vidraças, deixando que o sol lhe beijasse o rosto moreno. Na sua frente, o rio, maré cheia, águas calmas, mais parecia um espelho, onde o céu se refletia vaidoso. Tomou banho, vestiu a sua melhor roupa e foi acordar a irmãzita que dormia na cama ao lado da sua. Deu-lhe banho, barrou-lhe o pão com um pouco de margarina, que constituía o de-jejum habitual, juntou-lhe um copo com leite quente,  e deixou-a a comer, enquanto "puxava as orelhas" à cama e dava uma arrumação aos quartos. Pouco passava das dez, quando a pequenita gritou alvoraçada:

- Mana, já se vê o barco, já lá vem...

Correu à janela. Era verdade. Do outro lado da ponte já se via o barco. Resolveu ir até ao cais de desembarque. Porque o navio que se via ao longe, era o Gazela, um lugre-patacho da pesca bacalhoeira, que pertencia à Parceria Geral de Pescarias, dona da Seca da Azinheira, onde ela nascera e vivia. Andando devagar, com a irmã pela mão, chegou até à velha ponte de madeira, que servia de cais de desembarque da Seca. Ali já se encontravam muitas mulheres, velhas e novas, bem como alguns homens idosos, e muitas crianças. Eram os pais, as mulheres, e os filhos dos pescadores, que ali tinham ido espera-los, a fim de anteciparem de algumas horas, a visão dos entes queridos, que há mais de seis meses, haviam partido, para os mares distantes, da Terra Nova, e Gronelândia. Era assim todos os anos. Mas apesar de não ser novidade, ela ia lá sempre. E sempre se emocionava, como se fora a primeira vez. Não tinha lá ninguém e tinha toda a gente. Nascida ali, conhecia todos os pescadores e a todos admirava. Alguns, mais novos, filhos de gente que morava na Telha, e trabalhava na Seca durante a Safra, foram companheiros de brincadeiras. Depois cresceram, e ou por gosto, ou por falta de opção, ou ainda para fugirem da guerra colonial,  juntaram-se aos pais, ou substituíram-nos, nos navios de pesca bacalhoeira. Com custo arrastada pela irmã, cuja curiosidade a empurrava lá para a frente, chegou mesmo à ponta do cais. Olhou à volta sem curiosidade. Sabia o que ia encontrar. Alentejanas, algarvias, nazarenas. Algumas vinham da terra, outras há muito tempo se tinham radicado na Telha, Quinta da Lomba, ou Verderena, localidades à volta da Seca, sabendo que tinham trabalho sempre que chegavam os barcos. Todas vinham à espera de alguém. Um filho, um pai, um irmão, um noivo, um marido...

CONVERSANDO COM O LEITOR




Bom dia amigos:

Terminada que foi a primeira história deste ano, a qual pelos vossos comentários parece ter agradado, e esta reposição deste pequeno conto de outra época, outra realidade, começo esta tarde um novo conto. Um pouco maior que esta última, e bem mais pequena que a anterior. Entretanto AQUI tenho um conto a concurso, subordinado ao tema A CULPA. Quem quiser pode ir lá ler, e se quiser comentar também o pode fazer. 
Fico muito grata a todos pelos comentários que me deixam e me vão dando o feedback do agrado ou não da história.
Então bom domingo e até logo 

Deixo-vos com um cesto de rosas. Espero que dê para todos.

17.2.18

CAROLINA - FINAL

Re-edição
Em Lisboa, arranjou trabalho numa casa grande, onde já havia uma cozinheira e uma outra rapariga que tomava conta dos bebés. Aí trabalhou dois anos. Gostava da casa, dos meninos e das colegas. Aos patrões demasiado altivos nunca se afeiçoou, mas sentia-se feliz. Até ao dia em que conheceu Jorge e se enamorou perdidamente.
Conheceu-o numa das suas folgas enquanto passeava no Jardim da Estrela. Ele não era de Lisboa, estava na capital a cumprir tropa. Virgem de todas as emoções foi presa fácil do rapaz malandro que era Jorge. Assim quando se deu conta ele tinha desaparecido e ela estava grávida. Os patrões puseram-na na rua, mal souberam da gravidez, e Carolina perdida, sem saber o que fazer foi bater à porta do irmão mais velho.
Influenciado pela mulher, o irmão acabou por a recolher em casa, embora inicialmente a quisesse mandar de novo para a terra. Porém, por volta do terceiro mês, Carolina sofreu um aborto espontâneo e daquele episódio apenas restou a amargura e a descrença nos homens. Poucos meses depois estava de novo a trabalhar como “criada de servir”(1) numa casa em Belém.
Passaram os anos, vieram outros namoros, mas quando ela contava que já não era "honrada",(2) a atitude dos rapazes mudava, deixavam de falar em casamento e passavam a querer levá-la para a cama. Carolina, foi ficando cada dia mais amarga e perdendo a esperança noutra vida que não aquela de cuidar de casas alheias e de filhos  dos outros.  E assim, os anos foram passando, e de repente, já tinha vinte e sete anos. Na época, depois dos vinte e cinco, as mulheres já não sonhavam com o casamento, contentavam-se em serem tias. Foi nessa altura que conheceu o marido. Era Domingo de Páscoa,  e à saída da igreja, as suas mãos tocaram-se na pia da água benta. Olharam-se por segundos e ela sentiu-se corar.
Virou-se e saiu da igreja quase a correr. Ele seguiu-a e quando ela se preparava para entrar no jardim da casa onde trabalhava,  segurou-a pelo braço e perguntou-lhe se era casada. Perante a negativa ele perguntou-lhe se queria casar com ele. Ela achou a pergunta descabida e sem sentido mas ele insistiu.
Sem saber o que pensar, ela respondeu-lhe que embora não sendo casada, já estava "desonrada".
Ele disse que não fora isso que perguntara, apenas queria saber se ela queria casar com ele. Era pobre, mas tinha trabalho certo, vivia com uma irmã, estava farto da vida de solteiro, tinha acabado de pedir ao Senhor uma mulher capaz de o respeitar e ser uma boa companheira, para a sua vida. Achava que o encontro na pia de água benta era um sinal divino e não lhe importava o passado, já que esse era individual e só pertencia a ela. O que lhe importava era o futuro, e queria saber se ela faria parte dele.
Não falava de amor, acreditava que ele viria com o tempo, entregara o futuro a Deus, e confiava n’ELE de olhos fechados.
Carolina ficou encantada, e três meses depois estavam casados.
Apesar da pobreza não se arrependera nem por um segundo.
- Lina, "tás" pronta mulher? Já aqui estão os padrinhos do menino.
Sacudiu a cabeça, e o seu rosto iluminou-se num sorriso enquanto respondia.
- Ó homem, manda-os entrar enquanto eu acordo o menino e o visto. 



fim

Elvira Carvalho



1 Era assim que se chamavam antigamente as empregadas domésticas.
2 Era assim que se dizia antigamente de uma mulher que já não era virgem. Pessoalmente eu nunca entendi essa história de considerar que a honra de uma mulher estivesse entre as pernas.

16.2.18

CAROLINA


Re-edição


A mulher que sentada na beira da cama se  entregava à tarefa de entrançar a sua farta e negra cabeleira, não teria mais de trinta  anos, embora pequenas rugas, a fizessem parecer mais velha.
Era muito bonita, talvez um pouco alta demais para o comum das mulheres portuguesas, mas muito bem proporcionada. Muito morena de cabelos e olhos negros. Na aldeia quando era menina, e as outras crianças por qualquer razão se zangavam, chamavam-lhe farrusca por causa do seu tom de pele. Ela crescera com esse desgosto, mas agora estava na moda aquela cor e não raras vezes ela notava os olhares de inveja que lhe lançavam.
Lançou um breve olhar sobre o berço onde um bebé dormia tranquilamente. Hoje era um dia especial. O menino ia ser baptizado. Não haveria festa, o dinheiro era escasso, a vida estava muito difícil. Mas para ela o dia em que o seu menino ia ser apresentado ao altar e purificado com o sacramento do baptismo, seria sempre um dia especial.
Acabou de entrançar o cabelo e enrolou a trança no alto da cabeça prendendo-a com alguns ganchos.
Alisou a saia rodada que lhe chegava a meio da perna, dobrou um velho pedaço de lençol impecavelmente limpo em triângulo como se fosse um lenço, dobrou outro pedaço igual de modo a ficar como uma tira que colocou por cima do anterior, ficando assim com as fraldas preparadas para mudar o menino quando ele acordasse. Debaixo da cama retirou uma caixa que colocou em cima da mesma. Lá dentro repousava o vestidinho de crepe azul que a madrinha entregara na véspera para o baptizado.
 Foi até à cozinha, pegou as malgas do pequeno-almoço que tinham ficado a escorrer e guardou no armário. A cafeteira de alumínio foi pendurada na grade de madeira na parede.
A casa era pequena, apenas o quarto e a cozinha, mas apresentava-se limpa. No quintal, separada da casa alguns passos, uma pequena divisão, com uma sanita e um chuveiro. Claro que era aborrecido que não estivesse ligada à casa, especialmente de noite e de inverno, mas ainda assim Carolina achava que tinha muita sorte pois tinha água canalizada, coisa, que na maioria das casas, daquele pátio não existia. Não tinha electricidade, mas nunca faltara o petróleo para o candeeiro.
Sentou-se de novo na beira da cama, junto ao berço do filho e enquanto aguardava o marido que fora ao barbeiro à Telha, deixou que as lembranças saltassem da gaveta das memórias, onde ela as trancara.
Carolina era a sexta filha de um casal já entrado na idade e que já tinha cinco rapazes entre os vinte e os nove anos. Fruto de um descuido do pai,(1)a mãe que julgava estar na menopausa só se apercebeu da gravidez quando já era demasiado tarde para a “pôr a estudar”.
A mãe falecera poucos meses após o seu nascimento, vítima de complicações surgidas pós parto e o pai culpava-a pela morte dela. Os irmãos não sabiam o que fazer com ela e não fora uma vizinha tomar conta dela, talvez não tivesse sobrevivido. Até porque os tempos eram muito difíceis, a segunda guerra mundial tinha acabado havia pouco tempo alguns bens essenciais ainda eram racionados. Não fora por isso uma criança desejada e muito menos amada.
Mas como diziam na aldeia, “mal de quem vai, quem cá fica, trambolhão daqui, trambolhão dali, tudo se cria”
Quando Carolina entrou na adolescência mostrava já que iria ser uma bela mulher, e aí começou nova luta, já que os irmãos, diziam que ela estava uma bela "franguinha" e o mundo estava cheio de gaviões. E não a deixavam pôr o pé fora de casa, e ela tinha ânsias de liberdade. Entretanto o pai faleceu, os dois irmãos mais velhos casaram e foram viver para a cidade grande, o terceiro casara e fora viver com o sogro na aldeia vizinha. Na velha casa de família restava ela e um dos irmãos, já que o mais novo emigrara para o Brasil, na esperança de um futuro mais risonho. Farta da vida na pequena aldeia, escrevera aos dois irmãos, pedindo para ir viver com eles na cidade, mas não recebeu resposta.
Então começou a juntar algum dinheirito, do que o irmão lhe dava para as compras da casa, e um belo dia de Verão fugiu de casa rumo a Lisboa. Acabara de fazer dezasseis anos mas o seu corpo era já o de uma mulher.


CONTINUA


Como vêm esta história é uma re-edição. Foi publicada em 2014, mas como a grande maioria dos meus leitores atuais, não o eram há quatro anos aqui vai. É uma história de outros tempos,  pequenina só dois posts. Espero que gostem.

(1) Naquela época o único meio que os casais conheciam de evitar uma gravidez era o coito interrompido. Milhares de crianças nasciam porque o homem não era muito hábil na hora, e quando isso acontecia as mulheres diziam que a gravidez era um descuido do marido.

15.2.18

A VIDA É ...UM COMBOIO -PARTE XLII


Dez anos depois.

Numa das melhores galerias de Lisboa, está patente uma exposição de pintura. O pintor do momento, apelidado pelos críticos como a grande revelação portuguesa do século XXI, tem os quadros da sua segunda exposição praticamente todos vendidos. A um canto da sala, o pintor, um homem alto, moreno, a beirar os cinquenta anos, totalmente vestido de preto, conversa com um casal inglês que acaba de comprar uma das suas obras, quando os seus olhos se iluminam a ver entrar uma figura feminina, na galeria. Acompanham-na, João, um rapazinho de nove anos, uma cópia fiel do Martim de há dez anos, e as gémeas Ana Rita e Joana de cinco anos, duas bonecas loiras, parecidíssimas com a mãe. Paulo anotou o endereço que o casal inglês lhe dava para o envio do quadro e delicadamente despediu-se deles e aproximou-se da sua família.
- Que surpresa agradável, - disse beijando-os.
-Tinha que os trazer, para que vissem como a tua arte é apreciada. O Martim vai chegar no fim-de-semana. Telefonou há uma hora. Está ansioso para ver a exposição. 
- Que bom. Tenho tantas saudades dele. Sabes, recebi há pouco um convite para expor numa galeria de arte no Marais, em Paris. 
- Parabéns, amor. Tu mereces, tens muito talento. 
-Logo conto-te. Agora desculpa não vos poder dar mais atenção, mas estão a chamar-me.
-Vai, querido. Nós vamos ver a exposição. Vamos meninos.
Enquanto olhava os quadros, e tentava que os filhos apreciassem a arte do pai, Amélia recuou no tempo e recordou aqueles dez anos de extrema felicidade. Três meses após o casamento, ela ficara grávida. Aproveitando esse facto, o marido convencera-a a deixar a sociedade de advogados e a aceitar um dos escritórios da firma, mantendo-se como advogada da empresa. Quando João nasceu, foi uma grande alegria, não só para o casal como para Martim. Mas Paulo continuava com o seu sonho de se dedicar à pintura, e sentindo-se frustrado com a vida de homem de negócios que levava. Amélia compreendeu que ele nunca seria inteiramente feliz se não desse asas ao seu sonho, e encorajou-o a arranjar um gestor, de modo a poder transformar o sonho em realidade. Depois de muito pensar, Paulo decidira-se. Sabendo que o cunhado era um dos melhores gestores do mercado, ofereceu-lhe sociedade na empresa de camionagem, em troca dele assumir a gestão da mesma. Com a quinta gerida por Alfredo e a empresa por Ricardo, podia enfim dedicar-se à pintura. Entretanto os anos passaram, ela voltara a ficar grávida, desta vez eram gémeos, e ele achou melhor contratar um novo advogado, que trataria de todos os assuntos jurídicos da empresa, pelo menos até que Amélia pudesse voltar, uma vez que ela não queria abandonar a sua carreira. 
Quando as gémeas nasceram, ela decidira dedicar-se apenas à família, e fê-lo até que as meninas fizeram três anos e ingressaram na escola. Nessa altura  voltou à firma, mais como assessora do irmão, do que como advogada, cargo que estava a ser muito bem desempenhado pelo atual advogado. Foi nessa altura que o marido fez a primeira exposição, que foi um grande êxito. E agora dois anos depois a nova exposição confirmava o seu talento. Tinham passado dez anos de intensa felicidade, em que os únicos desgostos que sofrera, foram as mortes de Augusta, e da avó Maria. As duas amigas partiram com um intervalo de um mês, vitimas da mesma doença, uma pneumonia. Nesse espaço de tempo, Ricardo, fora pai duas vezes, de duas meninas, e Martim terminara o Secundário e fora para a Universidade. Nos últimos meses estudara em Inglaterra ao abrigo do programa Erasmus. António e Paulo os filhos de Alfredo também estavam na Universidade. Um cursava Agronomia, outro Veterinária. Isso não seria possível sem a generosa doação do seu marido, ao irmão e criação. 
Martim, que continuava a ter uma relação muito especial com o pai,  aproveitava todas as oportunidades para estar na quinta. Continuava encantado com Matilde, a filha de Alfredo, hoje uma adolescente de treze anos, com quem ele dava longos passeios, a pé ou a cavalo, e com quem mantinha grandes conversas. Não se mostrava muito interessado nas jovens da sua idade, e os pais interrogavam-se, sobre que espécie de sentimento, ele nutria por Matilde.. Será que ia esperar por ela? 
Paulo tinha cumprido a sua promessa. O sonho que lhe parecera viver quando casara, nunca se transformara em pesadelo. Olhando-o do fundo da galeria, ela sentia o coração pleno de amor e no peito um enorme orgulho. Sorriu. Sentia-se a encarnação da própria felicidade.
 A hora do fecho da galeria chegou. Paulo acompanhou a esposa e os filhos   ao automóvel.
- Mãe, posso ir com o pai? - Perguntou João.
- Claro, filho.
 Paulo e o filho segui-los-iam no carro dele. Deixara de andar de moto quando as gémeas nasceram. A velocidade já não lhe dava o mesmo prazer de outrora, a vida era demasiado preciosa para a por em risco.
Enquanto punha o veículo a trabalhar e arrancava, pensou no agradável que era regressar a casa, brincar com os filhos, fazer amor com a sua apaixonada esposa, e sorriu.
O menino que perdera os pais, quase bebé, que tivera uma meninice triste, por não ter conhecido o carinho e os afagos dos seus progenitores, era um homem feliz.


FIM


Elvira Carvalho




E pronto o puzzle está completo.  Espero que tenha sido do vosso agrado. E já agora se me quiserem deixar algum reparo, alguma coisa que não gostaram, ou o contrário, estejam à vontade. É com vocês que eu vou aprendendo a ser melhor. Obrigada.