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22.7.17

SINFONIA DA MEMÓRIA - PARTE XII


O menino que conversava animado com a mãe, sobre as peripécias da festa de aniversário do seu amiguinho, calou-se quando entrou na sala, olhando espantado para o homem que ali se encontrava. A mãe, deu-lhe a mão e disse:
- Diogo, este é Fernando, um amigo da mãe, que veio passar uns dias connosco.
- Olá campeão, - disse ele ajoelhando para ficar à altura do menino e estendendo-lhe a mão. A tua mãe fala muito de ti, mas não pensei que fosses um menino tão bonito.
Sorrindo o garoto estendeu a mão, mas depois como quem muda de ideia, estendeu os braços para o pescoço do homem e deu-lhe dois beijos. Surpreso Fernando retribuiu o abraço tentando esconder a emoção, sem saber se sempre tinha sido assim sensível, ou se isso se devia ao acidente.
- Vamos filho, deixa o Fernando sossegado, está quase na hora de jantar, e tens que tomar banho.
-Jantar? Eu não tenho fome, mamã.


- Calculo. Mas pelo menos tens de comer uma sopa. Anda, vamos tomar banho.
Os dois afastaram-se, deixando Fernando inquieto. Aquilo não podia estar a acontecer, era demasiado surrealista, decerto era um pesadelo do qual acordaria em algum momento. Tentou embrenhar-se na leitura, mas não conseguiu. Desde que recuperara a consciência, não lhe saía da cabeça a mesma pergunta. Quem raio era ele, e como fora aparecer numa estrada deserta, meio morto? A polícia dissera que não foi encontrado nas redondezas, nenhum automóvel acidentado. Teria ido a pé, e alguém o atropelara? Mas para onde ia a pé, se a polícia dissera que do local onde fora encontrado, até à cidade iam dez quilómetros? Por outro lado, também lhe disseram que as suas roupas embora meio despedaçadas, eram roupas caras. As suas mãos também não eram mãos de trabalhador. Então onde estava o carro? E porque ninguém avisava a polícia do seu desaparecimento?Será que ele era sozinho no mundo? Eram demasiadas perguntas sem resposta.
O menino voltou para a sala, de pijama e robe, e a mãe avisou que ia apenas aquecer a comida para jantarem. Ele pousou o livro e dando a mão ao menino, disse.
-Vamos ajudar a mãe, campeão?
- A mamã não me deixa ajudar, desde que uma vez quebrei um prato, -
lastimou-se a criança.




14.7.17

CHEGOU!


Gente , pela primeira vez na vida ganhei um prémio num sorteio. Pois é, a Susana, do blogue  CANTINHO DA GAIATA, para homenagear a mãe, que esteve muito doente, e que graças a Deus está melhor,  que faz lindas bonequinhas em croché, resolveu sortear entre os seus leitores três dessas bonequinhas. E eu fui uma das sorteadas.  Acabei de receber, pelo correio. Mais, junto com a bonequinha, a Susana teve a gentileza de enviar um doce de figo, típico do Algarve, um saquinho de cheiro para perfumar gavetas, e uma bela mensagem. Fiquei muito feliz .Muito obrigada amiga.





13.7.17

CONVERSANDO COM O LEITOR



A história que andaram a ler, é a história de Rosa, uma mulher do povo, no século passado. Mas é também através dela, das suas vicissitudes, a história de vida em Portugal antes do 25 de Abril, para os mais desprotegidos. O livro foi lançado em Fevereiro de 2016, e esgotou no final de Março do mesmo ano. Parece maior do que a história, porque foi publicado em Espanha, com a ajuda de um grande amigo, Joaquin Duarte do blogue Amigos de Portugal, que com seus alunos de Cultura Portuguesa, estudaram e traduziram a história para Castelhano, pelo que o livro é uma edição bilingue. A capa foi desenhada pelo Joaquim, e é a preto e branco, porque foi assim toda a vida de Rosa. 
Inicialmente a história foi publicada no Sexta, mas quando decidi publicar em livro, apaguei-a. Voltei a publicar agora, porque muitos amigos e especialmente colegas da UTIB , tinham pena de não a poderem ler.  
Espero que tenham gostado.
E estou confiante de que lá para o Natal possa sair o meu segundo livro. Maria Paula. Do mesmo modo e com a ajuda do Joaquin e dos  seus alunos.
E com Rosa , o blogue ultrapassou os 26.000 comentários.. Obrigada a todos.



E como Rei morto, Rei posto, tenho três histórias novas, prontas a entrar. Entrará primeiro aquela que tiver mais votos.

À Média Luz  3
Divida de Jogo  4
Sinfonia da Memória.   7

Qual delas vos despertou mais curiosidade?

12.7.17

ROSA - FINAL

Foto de um grupo de retornados. Em 74, em poucos meses, meio milhão de portugueses regressaram das colónias. Chegavam de barco ou de avião, na sua maioria de "mãos vazias". Fugiam da guerra deixando para trás tudo o que tinham. Esta foto não é minha, (até porque nessa altura eu estava em Luanda) Foi retirada da Internet 

                                       XVI 

Para Rosa tudo era novo e diferente, ela não entendia muito bem o que se passava no País mas o que notava é que o povo estava mais alegre, mais feliz
Por outro lado, João recuperara o antigo emprego, o filho conseguira trabalho na Siderurgia Nacional, a filha mais nova fora trabalhar para a Timex, até o filho doente, estava melhor agora, graças a uma "bomba" que o médico já tinha receitado à muito, mas que ela nunca conseguira dinheiro para comprar. A sua vida estava muito melhor, ela podia enfim descansar um pouco, deixando o trabalho a dias e ficando em casa a cuidar do marido e dos filhos solteiros. Podia também cuidar dos netos, deixando as filhas mais descansadas e mais libertas de despesas. Porém, sobre ela pairava, como uma sombra, o medo pelo filho ainda lá longe, em Angola. Principalmente porque não havendo a PIDE, nem censura, tudo o que se passava em África chegava a Portugal. Rosa sabia que o governo, estava a negociar a independência, mas todos os dias chegavam a Portugal “os retornados” que falavam do medo que sentiam, da guerrilha entre os movimentos de independência, e alguns residentes pró colonialistas.  Falava-se de mortes, do recolher obrigatório, da incapacidade dos militares impedirem os indígenas que os saqueavam. E o seu filho continuava lá em comissão. Por outro lado, os políticos pareciam não se entender, os governos provisórios sucediam-se, e Rosa tinha muito medo que tudo voltasse ao mesmo, ou como diziam alguns, que a seguir à ditadura fascista, se seguiria uma ditadura comunista. O marido, dizia-lhe que isso sim seria um sonho, mas Rosa, que era uma mulher sem instrução, e tudo o que aprendera na vida, ficara-lhe  gravado na memória pelo sofrimento, achava que ditadura nunca seria coisa boa, fosse ela fascista ou comunista. E lembrava-se do que a avó sempre dizia quando ela era pequena e nem bem sabia o sentido das palavras. “Atrás de mim virá, quem bom me fará” Tinha medo. Muito medo de ainda vir a achar que os anos para trás, é que tinham sido bons. Naquele verão, mais de um ano após a revolução, o país parecia caminhar para uma guerra civil, e ela tinha medo do que o futuro lhe podia ainda reservar.  Medo que só perdeu, quando em Novembro de 75, pode enfim abraçar o filho que regressara são e salvo, após a Independência de Angola. E quase no final desse mesmo mês,  a viragem histórica do país, que afastou o espectro da guerra civil.
Agora sim, Rosa era uma mulher feliz.

                                         
 Fim

Maria Elvira Carvalho


11.7.17

ROSA - PARTE XV




Naquela manhã do dia 25 de Abril de 74, Rosa olhava-se no espelho e não se reconhecia. Apesar de não ter ainda cinquenta anos, Rosa estava cada dia mais velha, a face enrugada, os cabelos embranquecidos, o corpo magro e alquebrado, resultado de ser toda a vida, saco de pancada da própria vida. Pensava que já não tinha forças para se aguentar muito mais tempo. A sua família tinha-se desagregado.
Do marido, não sabia há muito, talvez estivesse preso, ou, quem sabe, tivesse morrido em qualquer prisão. As filhas casaram e embora não vivessem longe, estavam cada dia mais desligadas da casa materna, divididas entre o trabalho, o cuidarem da casa e dos filhos.
Dos dois rapazes mais novos, um conseguiu realizar o sonho de ser fuzileiro e encontrava-se num destacamento no Lungué-Bungo, no leste de Angola, enchendo de saudade e preocupação o seu coração de mãe. O outro, que era contra a guerra, fugira de salto para a França. Restava-lhe em casa um filho, cada dia mais doente, e uma filha adolescente.
Sacudiu a cabeça, como se quisesse abandonar todos os seus pesares, e dirigiu-se a casa do Sr. Doutor, onde ultimamente trabalhava a dias, sem sequer sonhar que no seu País estalara uma revolução que ia mudar toda a sua vida. Ela não sabia, mas a sua família não era muito diferente da maioria das famílias portuguesas pois, nessa altura, o País via-se sangrado da sua juventude. Uns partiam para a guerra do Ultramar, sem  nunca saber se voltavam, ou ficavam por lá, vítimas de uma mina ou de alguma bala emboscada. Outros fugiam para não serem obrigados a partir para uma guerra que não queriam nem entendiam.
Foi com surpresa e medo que Rosa ouviu da boca da patroa, a notícia da Revolução. Medo porque a "doutora"- era assim que ela gostava de ser tratada, embora o médico fosse o marido - lhe deu a entender que a revolução era muito má para o País e para eles, patrões, que talvez não pudessem continuar a dar-lhe trabalho. Rosa ficou muito preocupada. Se ficasse sem trabalho, como ia pôr comida na mesa? Mas quando chegou a casa, o filho explicou-lhe o que significava a revolução de uma maneira diferente. Falou-lhe do fim da guerra colonial, da abertura das prisões, do fim da PIDE, e do sonho dum País mais igualitário. E o seu coração sofrido encheu-se de esperança.
Dois dias mais tarde, quando Rosa chegou a casa, no fim de mais um dia de trabalho, teve uma grande surpresa ao encontrar o seu João. Muito magro, o cabelo todo branco e o ar macilento, em nada se parecia com o homem com quem casara. Apenas o brilho nos olhos encovados, lhe lembrava o João de antigamente. Apesar da alegria do reencontro, Rosa estava preocupada com a saúde do marido. E tinha razão, porque se ele recuperava aos poucos das mazelas físicas,  as psicológicas continuariam a persegui-lo durante muitos anos.
Dias depois, Rosa e João comemoravam pela primeira vez na sua vida o 1º de Maio em liberdade. E dois meses depois, podiam abraçar o filho António, que regressara da França, ao saber que o novo governo estava a negociar a independência das colónias e que, por isso, não teria que ir para a guerra.


Continua

ROSA - PARTE XIV


Quando em 1969, a filha mais velha da Rosa se casou, ela já não sabia do marido há largos meses.
Mergulhado nos ideais comunistas, João fora-se embrenhando na política e tornando-se um membro muito ativo no partido. A política é uma amante muito ciosa dos seus afetos e não tem contemplações com outros amores, especialmente em regimes fascistas e repressivos. Assim, aos poucos foi-se afastando cada vez mais da família. No começo, ele conseguia conjugar o seu trabalho, a vida familiar e as obrigações do partido sem levantar grandes suspeitas. Mas à medida que se foi tornando mais influente dentro do partido, isso tornou-se praticamente impossível. E quando, após uma denúncia, a maior parte dos seus camaradas foram surpreendidos e presos, João, que só não fora à reunião porque nesse dia entrara às dezasseis horas no trabalho e só saiu à meia-noite, pensou que a sua prisão estaria por horas. Em parte por causa da família, e em parte porque achava que seria mais útil ao partido cá fora do que preso, fugiu nessa mesma noite. Mais uma vez, Rosa ficava numa situação precária, com três crianças e um adolescente frágil e doente para cuidar e alimentar. Valeram-lhe as duas filhas mais velhas e algumas vizinhas. Estas ajudavam não só com alguma comida como também arranjando-lhe mais horas de trabalho. De vez em quando, chegava uma carta com dinheiro. Não muito, mas era uma ajuda. Embora as cartas não trouxessem remetente, Rosa sabia que eram do marido. A primeira carta chegou com carimbo de Beja, a segunda de Lisboa, a terceira de Faro. Cada uma de um sítio diferente. Ela não podia saber que a carta que recebia viajava sempre com algum camarada para uma terra distante e só lá era metida no correio. Mas este era um estratagema que eles usavam para despistar a PIDE. Agora, a filha mais velha ia casar. Rafael era um excelente rapaz, muito trabalhador. Filho único, de mãe viúva, conseguiu livrar-se da ida para o Ultramar, por ser dado como amparo de mãe.
Rosa sentia uma grande tristeza por não ser o marido a levar a filha ao altar; e não tê-lo a seu lado naquele dia tão importante das suas vidas. Afinal, a noiva era a sua menina. Tinha medo que ele estivesse preso. Há vários meses que, não recebia nenhuma carta. Falava-se em sussurro que nas últimas semanas tinham sido efetuadas muitas prisões. De vez em quando, desaparecia um vizinho. No Barreiro, havia muitas mulheres como ela. Viúvas da política. Algumas eram viúvas de facto pois os seus maridos foram torturados até à morte. Outras eram viúvas de maridos vivos, pois que estes estavam presos e muitas vezes nem a família sabia onde, ou ainda, andavam fugidos por terras estranhas.

Continua


Nota: O Barreiro foi uma terra muito martirizada pela PIDE.
Quase meio milhar de homens foi preso, sem cometer outro crime, que não fosse reclamar da vida de miséria que tinha. Claro que entre eles havia membros do partido comunista que lutava na sombra contra a politica fascista do regime. Mas a grande maioria, apenas queria uma vida melhor e nem sabiam o que era comunismo, quanto mais pertencer ao partido. Muitos deles não resistiram às sessões de tortura.

10.7.17

ROSA - PARTE XIII




                                          Foto DAQUI


Quando Rosa saiu do hospital, o padre que a tinha casado, arranjou-lhes um dos oito fogos, que ele próprio mandara construir para alguns dos seus paroquianos, que viviam em condições miseráveis. A casa ficava na vila, longe portanto da Seca, mas Rosa achou que lhes tinha saído a sorte grande. A casa, composta por uma boa cozinha, casa de banho e  três quartos, com água, luz e chão de tacos, pareceu-lhe um palácio. A vida do casal começava a melhorar. A filha mais velha foi servir para Cascais e só vinha a casa uma vez por mês. A segunda também foi servir para casa dum Sr. Doutor, lá mesmo no Barreiro. Dos três mais velhos, ficava em casa o rapaz que era muito frágil e que tinha sempre “uma ninhada de gatos no peito”. Ali na vila, Rosa arranjou algumas senhoras que lhe davam umas horas de trabalho para limpezas, ou passar a ferro e a vida parecia começar a equilibrar-se. Mas… foi nessa altura que João mudou. Andava macambúzio, perdera parte da sua alegria, olhava à volta com desconfiança e, de vez em quando, saía à noite. Às vezes, vinha cedo mas outras, só voltava de madrugada. Rosa começou a pensar que ele tinha arranjado uma amante.
Sentia que o chão lhe fugia debaixo dos pés e um dia fez-lhe a pergunta direta.
João irritou-se. Que ela estava doida, onde teria ido buscar essa ideia. Mas Rosa não ficou convencida. E numa noite, em que o marido voltou a sair, ela foi atrás dele. E viu quando ele se encontrou com mais dois e como andavam 
em silêncio, acautelando-se nas sombras. E viu quando um quarto homem chegou com uma pasta, da qual tirou uns papéis que distribuiu em silêncio. Escondida, viu como os homens espalhavam alguns papéis, protegendo-se sempre no escuro e sem trocarem uma palavra. Assustada, voltou para casa e meteu-se na cama. A tremer, esperou a chegada do marido. Ela já tinha visto alguns papéis daqueles no chão. Tentara até apanhar um, mas a vizinha impediu-a. Disse-lhe que eram papéis contra o governo, que os comunistas espalharam, e que se ela fosse apanhada com algum, seria considerada comunista e seria presa. O João podia ser preso? A frase martelava-lhe a cabeça e dava-lhe suores frios.
Quando João chegou a casa, achou a mulher estranha.
- O que tens, mulher? Aconteceu alguma coisa?
Ela respondeu com outra pergunta:
- Tu és comunista, João?
- Cala-te, - disse perdendo a cor. Nem em pensamento, ouviste, nem em pensamento, repitas isso.
- Então é verdade, - disse ela com a voz embargada pelas lágrimas. Mas porquê? Já passamos tanta fome, tanta miséria e agora que a nossa vida está bem melhor, é que queres desgraçar-nos.
-Tu não compreendes mulher. É nosso dever tentar que os nossos filhos não passem o que nós passamos.
- Mas… e se eles te prendem João?
 - Não te preocupes, nós temos cuidado. É verdade que há muitos “bufos”, mas também há muita gente do nosso lado.
Mas, desde aquela noite, e durante vários anos, Rosa nunca mais teve um minuto de sossego.


Continua


ROSA - PARTE XII



                     O posto médico da Seca do Bacalhau
                            A foto é minha.

De Setembro a Março, Rosa trabalhava na Seca do Bacalhau. Trabalho duro e não muito certo pois, quando o Inverno era rigoroso e não se podia pôr o bacalhau na rua para secar, não havia trabalho. Às vezes, ficava-se uma semana inteira sem ganhar um tostão. Mas, ainda assim, vivia-se melhor que no Verão, pois sempre eram dois a ganhar. E depois era a oportunidade dela ver gente da sua aldeia e de outras aldeias vizinhas, de rir, cantar e esquecer um pouco a miséria que tinha em casa. Ali, naquele mundo maioritariamente feminino, não havia segredos. Todas sabiam quando alguma levava “porrada” do marido, quando não tinham que comer ou quando punham “um filho a estudar”.a)  Muitas vezes, sem dinheiro para procurarem uma parteira, faziam – no elas próprias sem quaisquer condições. Por causa disso, não raras vezes, alguma morria com uma infecção. Algumas, trabalhavam na seca com os maridos, outras, os maridos trabalhavam nas fábricas de cortiça, ou na C.U.F. mas todas viviam irmanadas na mesma vida difícil e contudo aparentavam uma alegria difícil de explicar, pois passavam muitas horas de trabalho sempre cantando, ou contando anedotas como se o trabalho fosse leve e a vida lhes sorrisse lá fora. Então quando tocava a lavar o bacalhau nas grandes tinas de água, que levavam seis mulheres de cada lado, era ouvi-las cantar o tempo todo, ora como um só coro de muitas vozes, ora desafiando-se umas às outras em quadras repentistas que pareciam não acabar nunca. Algumas faziam graça com a própria fome, como a Rosalina, que enfiava um dedo no meio do pão e comia à roda do dedo, dizendo que comia pão com chouriço, ou a Virgínia que dizia estar a almoçar um cozido à portuguesa, enquanto emborcava uma sopa deslavada.
Por esses dias, a Ti Urbana perguntou-lhe:
-Ó Rosa, tu já estás prenha outra vez, mulher?
- Não! - A resposta foi quase um grito. Pela sua saúde, não me diga isso, que me desgraça.
- Eu não te digo mas que estás é verdade. Basta olhar as tuas pernas. Ó mulher mas tu não tens juízo?
- Ai Ti ‘Urbana, se for verdade, tenho que dar um jeito. Não quero ter mais filhos. O meu Alberto ainda não fez os sete meses.
- Vai ao posto médico. Mas olha que eu nestas coisas nunca me engano.
Na Seca, havia um posto médico, com um enfermeiro, e às quintas-feiras ia lá um médico.
Nessa semana, Rosa foi ao médico que confirmou as palavras da Ti' Urbana .  Mais uma vez estava grávida!
Pediu ajuda a algumas mulheres mais velhas. Nunca fizera um aborto mas, desta vez, tinha que ser. Estava decidida a não ter mais filhos. Mas não tinha dinheiro para ir à parteira. A Adélia ensinou-lhe a fazer escalda-pés com grãos de mostarda. Fez durante três dias mas não resultou. Depois foi fazendo tudo o que as outras lhe diziam já ter feito até terminar por picar o útero com um talo de aipo até sangrar. "Resulta sempre", tinham-lhe dito. E resultou. Numa grande hemorragia, seguida de infecção, que a ia matando. Acabou numa sala de cirurgia, no hospital de Almada, onde sofreu uma histerectomia total.  "Caparam-na" como ela costumava dizer. E nunca mais engravidou.


Continua

a) pôr um filho a estudar, era na linguagem das mulheres da Seca, a designação para aborto, que nessa época em Portugal,  era ilegal e podia até dar cadeia.



9.7.17

ROSA - PARTE XI




                                       foto da net


No ano seguinte, Rosa dava à luz uma menina e no outro, mais uma menina e no outro ainda, um rapaz.
Três filhos em três anos. João trabalhava agora na C.U.F., ganhava um pouco melhor mas, ainda assim, pouquíssimo para as necessidades de cinco bocas. A casa também não tinha condições. No quarto, além da cama de casal e do armário, só cabia o berço. As duas crianças mais velhinhas dormiam no chão da cozinha, numa cama feita com duas mantas de trapos.
Quando vagou uma casa de dois quartos no pátio, mudaram-se para lá. Mas Rosa já estava outra vez grávida. Nessa altura não havia pílula, só as “camisinhas”. Mas João não as queria usar. Quando os amigos, ou vizinhos comentavam da pobre Rosa que sofria de “prenhez cronica” ele dizia a rir:
-E o que é que eu hei-de fazer? O raio da mulher basta olhar para mim quando estou a mudar de roupa para ficar logo “embuchada”.
Rosa adorava o marido. Nunca lhe batera, o que os maridos de algumas vizinhas faziam com frequência, nunca a ofendera e, às vezes, até era carinhoso com ela. Era bom pai, muito trabalhador, não se metia nos copos como a maioria dos homens do pátio. O pior, era não querer usar a malfadada “camisinha”. Cada vez que ela lhe pedia, respondia sempre que "os rebuçados embrulhados não sabem a nada". E Rosa começava a sentir-se exausta.
Felizmente para ela, o bebé não foi além do terceiro mês, tendo sofrido um aborto espontâneo. O pior foi que pelo Natal já estava outra vez grávida. Rosa tinha que aproveitar o trabalho na Seca do Bacalhau para ajudar a despesa da casa. Levantava as crianças logo de manhãzinha e lá ia ela para o trabalho, com um filho no bucho, os dois mais pequenos sentados cada um do seu lado sobre a anca e a maiorzinha agarrada às saias. Na Seca, estendia o xaile dentro dum carro de mão e lá metia os bebés guardados pela pequenita enquanto ela trabalhava. Tempo depois, voltou a abortar e deu Graças a Deus por isso.
Depois, vieram mais três em quarenta meses. Rosa ainda não fizera vinte e oito anos, e já tivera seis filhos e dois abortos. As duas filhas mais velhas já estavam na escola. Rosa tinha vergonha de mandar as crianças, para a escola, com os sapatos rotos mas não podia comprar outros. De roupa, as duas mais velhas estavam servidas. Havia na Seca uma senhora, esposa do chefe de escritório, que tinha duas filhas, um pouco mais velhas que as suas e dava-lhes a roupa que já não servia às meninas. Coisas caras, de bons tecidos, que mesmo depois de deixarem de servir às filhas, ela guardava religiosamente para a mais pequenina. Para os rapazinhos é que era pior. Mas a necessidade aguça o engenho e Rosa ia aproveitando das suas roupas e do marido, que já não davam para consertar, alguns bocados bons que dava para uns calções ou um bibe para eles. De quando em vez, Amália, a cunhada, lá arranjava maneira de lhe dar um quilo de arroz, umas batatas ou meio litro de azeite. Não muito que também ela vivia com muitas dificuldades. O problema dos pobres é que o que podem partilhar é sempre muito menos do que manda o seu desejo de ajudar.
À noite, quando regressava do trabalho, Rosa recolhia do pessoal que vivia na Seca e cuja cozinha era composta por enormes fogões a lenha, o carvão que os ia aquecer na braseira.
Mas sentia-se muito cansada. Sentia-se velha. A vida estava cada dia mais difícil. O ordenado do marido não chegava para nada. O dono da mercearia fiava-lhe o avio durante a semana. Quando no sábado o marido recebia a semanada, passava por lá para acertar contas e vinha logo sem dinheiro para casa.

Continua



8.7.17

ROSA - PARTE X


Igreja de Santa Cruz no Barreiro. A estátua em frente é do Padre Abílio. Homenagem do povo a quem ele amou, e protegeu, construindo casas  e dando comida e roupas aos mais necessitados.
Meus pais casaram nesta mesma igreja em 1946 ano em que nesta história se casou a Rosa. Na foto do casamento deles me inspirei para descrever o vestido de noiva da Rosa. Podem ver a foto no fim do post. 
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                                                  X 


No Domingo, depois da missa, falaram com o padre para marcar o casamento. Naquela época, no Barreiro, era o Padre Abílio que estava na Igreja de Sta. Cruz onde eles acabaram por casar.
Este, depois de ter ouvido a confissão dos dois, fez questão de tratar de tudo rapidamente e sem qualquer custo. Casaram três semanas depois, o tempo necessário para os proclamas na terra dos noivos.
João tinha alugado uma casita num pátio perto da entrada da Seca. Era pequena, apenas um quarto e uma cozinha, uma pequena arrecadação e um galinheiro nas traseiras. Não tinha luz elétrica, nem água canalizada. Mas, no centro do pátio, havia um poço com uma espécie de tripé por cima, com uma roldana, onde passava uma corda que tinha numa das pontas um balde. Era desse modo que eles se abasteciam de água. Não tinha casa de banho. As necessidades faziam numa espécie de pote em argila, que era despejada todas as manhãs na “pipa”. A “pipa” era uma camioneta cisterna, propriedade da Câmara, que todas as manhãs percorria os pátios para recolher os detritos. Num canto do pátio, havia um pequeno cubículo onde se improvisara um duche comunitário, já que servia para todos os moradores do mesmo, que era composto por oito casas. O duche era a ponta de um regador, presa num tubo que saia de um bidão que alguém instalara lá em cima no telhado. Estava sempre cheio de água. Cada vez que alguém tomava banho, quando acabava, ia ao poço buscar água para voltar a encher o bidão. De Verão, o bidão apanhava sol todo o dia e o banho era quente. De Inverno, a água gelava e os moradores tomavam banho num alguidar grande de zinco, com água aquecida nos fogões a lenha ou petróleo que cada um tinha em casa. Naquelas três semanas, até ao casamento, compraram uma cama, uma mesa e dois bancos. A madrinha de casamento, deu-lhes dois lençóis e o padrinho, um fogão a petróleo para fazer a comida. A cunhada deu-lhe meia dúzia de pratos e dos futuros vizinhos recebeu um tacho, uma panela, uma sertã, um candeeiro a petróleo e uma manta de trapos.
 Rosa fora trabalhar para a Seca do Bacalhau e lá encontrou gente da sua aldeia e de certa maneira sentiu-se mais segura. Era gente que trabalhava muito, ganhava pouco e ainda tinha que poupar para a viagem de regresso à aldeia, quando a safra acabava, e também para os meses que ficavam lá na aldeia, sem saber onde arranjar dinheiro para comer. Mesmo assim, juntaram-se e compraram o vestido de noiva da Rosa. Era uma saia azul e um casaquinho da mesma cor e uma blusa branca. A cunhada deu-lhe os sapatos. Não eram novos, tinha sido a madrinha dela que lhos dera no casamento. Mas como estavam apertados só os usara nesse dia. Eram pretos, com um vivo largo branco a toda a volta.
Quando no dia do casamento, se viu ao espelho, Rosa achou-se uma rainha. E lá foi para a igreja, na carroça do ti’ Abel com o futuro marido, porque essa história do noivo não ver a noiva antes do casamento, não era para gente pobre. Pelo menos nessa época.

Continua






Foto de casamento de meus pais. Quem me segue há muito tempo conhece-os bem. A Gravelina e o Manel da Lenha, cuja história já aqui contei.




7.7.17

ROSA - PARTE IX


Esta foto mostra uma mesa, da Seca de Bacalhau da Azinheira. A foto não é minha, retirei-a da net,  mas conheço
este sitio como a mim mesma.  Ao fundo à direita é a malta dos homens, que eu já mostrei em fotos minhas. À esquerda um dos armazéns de recolha do Bacalhau. As trabalhadoras, são a Idalina  (que foi a porteira, depois da reforma da minha mãe) e a Vitória. Com ambas trabalhei alguns anos. A foto é antiga, hoje a Seca está desativada, o espaço das mesas de seca, está preenchido por árvores, e não se sabe ainda se o local, virá a ser uma reserva museológica. Por enquanto está aberto apenas para visitas de estudo.




IX




No dia seguinte, quando viu Amália lavando roupa no tanque foi até lá para ajudar. E também, porque queria conversar com a futura cunhada, longe de interrupções.
Pegou numas calças, mergulhou-as no tanque e disse:
- Vim ajudar com a roupa, Amália.
- Não carece Rosa.
- Mas eu quero ajudar. E também queria falar consigo. Saber se é verdade que o seu irmão, quer casar comigo e porquê.
- Saber se é verdade? Tens dúvidas?
- Foi muito estranho o que aconteceu.
- Vai-te habituando. A vida tem muitas coisas estranhas. Tu por exemplo, não te pareces em nada com o que tenho ouvido falar das mulheres que levam a vida que levavas.
Sem se conter, Rosa deu livre curso às lágrimas. Amália ficou espantada.
- Que se passa agora? Porquê esse choro? Não disse nenhuma mentira, ou disse? Não estavas numa casa de “meninas”?
Ela assentiu com a cabeça e depois perguntou:
- Posso confiar em si?
- Claro, mulher! Afinal vamos ser cunhadas. Mas antes deixa de me tratar por você. Que diabo, não estou a tratar-te por tu? Faz o mesmo.
Então, Rosa abriu o seu coração e contou tudo desde aquela fatídica tarde no monte.
-Juro-lhe, por tudo quanto há de mais sagrado, que digo a verdade – terminou Rosa ao perceber o ar incrédulo da outra.
- Pois então agradece a Deus, que te livrou de um destino que não desejavas. Às vezes ELE escreve direito por linhas tortas.
E então falou-lhe da ida de João para os Açores, da promessa que ele fizera e de como a família se sentia preocupada com a mulher que ele iria arranjar. Nunca lhes passou pela cabeça, dissuadi-lo. Isso não! Promessa é sagrada. O Sr. Padre, sempre lhes dissera “Muitas graças a Deus e poucas graças com Deus” e terminou:
 -Vamos rapariga lava aí essas lágrimas e prepara-te para enfrentares a vida que te espera. Não será fácil. Somos pobres, vivemos do trabalho quando o há e quando não. O que eu quero dizer é que aqui se trabalha seis meses por ano e tem que se guardar para os outros seis meses. Felizmente, o João tem trabalho todo o ano na fábrica, e já se inscreveu para a C.U.F. Se tiver a sorte de entrar, vai ser muito bom. Lá ganham melhor, fazem muitos turnos. Não tens nada para a tua casa e nós não poderemos ajudar grande coisa. Talvez uma panela ou uns pratos. Se quiseres trabalhar, segunda-feira podes ir ao escritório da Seca. O trabalho é duro mas sempre podes comprar alguma coisa para a casa.
- É claro que vou.  Trabalho, foi coisa que nunca me meteu medo. Obrigada por me acolher e me aconselhar.
- Então, agora vamos lá fazer o almoço que está na hora. À tardinha uma de nós vem apanhar a roupa.


R:  à GI  
Antigamente os homens não iam buscar mulheres ao bordel para casar. Eram muito ciosos da virgindade da mulher. Com medo da guerra, João fez uma promessa e cumpriu-a.




ROSA - PARTE VIII


Esta foto, tirada por mim, retrata a antiga Caldeira do Alemão depois da intervenção da POLIS. Claro que a única coisa que a liga à antiga, a que se refere o conto, é ser no mesmo sítio. De resto na altura não existiam por ali prédios nenhuns. Existia sim uma fábrica de cortiça, um pouco mais acima onde hoje é o parque da cidade. Pertencia a um alemão de nome Hermann Zunn Hingste, que faliu pouco depois do termino da Segunda Guerra Mundial.Tudo o resto era uma quinta improdutiva.

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                                             VIII

Antes de chegarem ao seu destino, passaram por uma espécie de pequena lagoa que, contrariamente ao rio, se apresentava cheia de água. Numa ponta entre a lagoa e o rio, uma pequena ponte de madeira e, sob ela, um grande portão de zinco, que servia de comporta. Apesar da escuridão noturna, ela parou:
- É a caldeira do Alemão, pertence àquela casa grande ali em cima, que é uma fábrica de cortiça. É ali que eu trabalho. Vem, já falta pouco.
Andaram mais um bocado e foram ter a um sítio cercado por arame farpado com um portão grande no qual o homem bateu.
Pouco depois, uma mulher abriu o portão. Era Amália, a irmã de João, a porteira daquele lugar, que ela soube depois, era a Seca do Bacalhau da Azinheira, de que falavam na aldeia, algumas pessoas que todos os anos eram engajadas para a safra.
Amália tratou-a com naturalidade e até talvez um pouco de carinho. Rosa pensou que ela não devia saber onde o irmão a tinha ido buscar. Estava enganada.
João era o mais novo de seis irmãos. Não chegou a conhecer o pai, que morrera na batalha de La Lys na França, na primeira grande guerra. Devia sentir-se orgulhoso, já que toda a gente lhe dizia que o pai fora um herói, mas não era assim que ele sentia. O que sentia era uma grande mágoa de não o ter conhecido e uma grande revolta contra as guerras que deixam sozinhas mulheres cheias de filhos para criar. Pouco depois do início da segunda grande guerra, João foi para a tropa. Portugal não entrou diretamente na guerra mas, através dos Açores e da base Americana lá implantada, pode dizer-se que de certa maneira lá esteve. João foi destacado para os Açores, para prestar serviço nessa base aérea. Quando embarcou, o medo de que a base fosse atacada pelas forças inimigas era real, tanto entre os portugueses como entre os americanos. O grupo de soldados foi a Fátima, despedir-se da Virgem e pedir a sua proteção.
Então, lá perante a Virgem, João fez uma promessa que para muitos podia ser estranha, mas que foi o que lhe ocorreu no momento. Prometeu, que se voltasse são e salvo, tiraria uma mulher “da vida” e casaria com ela. Toda a família sabia da promessa e, naquele tempo, uma promessa à Virgem, era uma coisa sagrada que se cumpria sem contestação.
 Depois de sair da tropa, João procurou trabalho e quando o teve começou a pensar que tinha que cumprir a promessa. Naquele tempo, os bordéis eram proibidos por lei mas, em Lisboa, havia alguns que por qualquer razão, que ele não entendia, as autoridades fingiam desconhecer.
Aos fins-de-semana, João começou a percorrê-los. Quando encontrou Rosa, já tinha visitado dois, mas ninguém lhe agradou. As mulheres, que encontrou ou eram já demasiado velhas, para a mulher que ele queria para mãe dos seus filhos, ou estavam por demais ligadas àquela vida e não se habituariam a uma vida diferente. Por isso, quando viu Rosa, com o seu ar de menina, provinciano e assustado, sentiu que tinha encontrado o que procurava.
Quando foi buscar o dinheiro exigido pela dona do bordel, João falou com a irmã, que lhe disse que podia levar a moça lá para casa até casarem.
E agora, ali estava ela, numa casa estranha, pobre de móveis, mas rica de vida, a julgar pelos dois catraios que andavam à roda dela como cão à volta do dono.
Amália destinou-lhe a cama de um dos filhos, os rapazes dormiriam juntos, não havia problema. Depois, não seria por muito tempo.



6.7.17

ROSA PARTE VII

Mais calma, lembrou-se dos ensinamentos da avó, devota de Nª Senhora do Rosário. Abriu o cesto e, embrulhado num lencinho branco, lá estava o terço de contas meio gastas de tantas e tantas vezes passadas entre os dedos rugosos da avó. Ajoelhou e pondo a alma em cada oração rezou como nunca o fizera na vida. Uma vez e outra e outra até adormecer de cansaço.
Vá-se lá saber se foi coincidência ou intervenção divina, mas no dia seguinte apareceu na casa um homem jovem, que ao vê-la, se engraçou por ela. E depois de uma  breve conversa, lhe perguntou se queria casar com ele. Ela pensou que ele era um anjo mandado pelo céu e aceitou na hora. O homem falou então com a dona do bordel, que lhe disse que se queria levar a rapariga tinha que pagar vinte escudos, pois fizera gastos com ela dos quais não ia ver retorno. O homem prometeu voltar ao anoitecer com o dinheiro, pedindo que, entretanto, a rapariga se recolhesse ao quarto e não fosse vista por outros homens.
Vinte escudos em 1946 era muito dinheiro, mas o homem voltou ao entardecer com a quantia pedida. E Rosa saiu daquela casa, com as suas velhas roupas, algum temor no coração mas também com muita fé num destino melhor.
João, assim se chamava o homem, trouxe-a até ao mar onde apanharam um barco para o Barreiro, pois era aí que ele trabalhava e morava. Rosa nunca tinha visto o mar e tremeu de medo os trinta e cinco minutos da travessia. Por medo do mar, por vergonha do homem que a “comprara”, porque ela achava que fora isso que acontecera, por temor do que o homem poderia fazer, Rosa nem se atrevia a falar.
Quando finalmente saíram do barco, o homem pegou no cesto dela e disse:
-Anda, vamos ter que caminhar ainda um bom bocado. Mas não tenhas medo, já falei com a minha irmã e dormes lá hoje. Amanhã vou procurar uma casinha para os dois e
depois vamos falar com o padre.
 Ela assentiu com a cabeça e começou a segui-lo. Caminhavam por um sítio de terra batida, junto ao mar, mas aquela parte do mar era estranha, pois não tinha água. Ao manifestar a sua estranheza, o homem explicou que aquilo não era mar, era o rio Coina, afluente do Tejo, que a maré estava vazia, e quando a maré vazava só ficava o lodo. Depois, começava a encher de novo e levava seis horas até a água chegar àquela orla por onde caminhavam agora. Com a ingenuidade de uma criança, ela perguntou:
- E para onde vai a água do mar quando vaza?
Ele soltou uma gargalhada e respondeu:
- E alguém sabe?
Depois, talvez para encurtar o caminho, começou a fazer perguntas sobre ela. Donde era, se não tinha família, como é que tinha chegado até ali.
- Por vergonha, ela limitou-se a dizer o nome da  sua aldeia e que não tinha ninguém na vida
-Landeira? Mas isso é muito perto da minha aldeia. Eu sou da Trapa, pertencemos ao mesmo concelho.


5.7.17

ROSA - PARTE VI


Deixou-a sozinha. Rosa estava espantada. Foi até ao outro quarto. A tina para o banho era enorme. Devia caber lá dentro uma pessoa estendida. E ela estava habituada a tomar banho num alguidar. Tirou a roupa e meteu-se dentro de água. Estava fria mas não se importou. Afinal estava-se no fim de Setembro e o tempo ainda não ia muito frio. A toalha era tão macia, que se enxugou deliciada. Depois, procurou no armário alguma coisa para vestir e, entre os vários fatos que lá estavam, escolheu um vestido azul. Olhou-se no espelho e achou-se estranha, com o grande decote e a saia quase pelo joelho. Mas enfim se era assim que se vestiam na cidade…
Tinha acabado de se vestir quando a mulher a veio buscar para jantar. Na casa de jantar, já estavam quatro jovens a quem a mulher a apresentou dizendo que eram companheiras de trabalho. Ficou espantada. Devia ser uma casa muito rica para ter tanta criada.
Durante o jantar, enquanto a mulher foi atender o telefone, uma das raparigas perguntou-lhe se ia para a sala nessa noite.
-Fazer o quê? – Perguntou
- Esperar os clientes. A maioria vem de dia, mas alguns vêm sempre à noite.
- Clientes? Do quê?
A outra viu que ela não sabia do que se tratava e apressou-se a calar-se não fora a “madame” zangar-se.
Quando a mulher voltou, Rosa perguntou-lhe quando começava a trabalhar. Ela não se importava de começar já. Podia lavar a loiça e arrumar a cozinha. As outras raparigas olharam-se entre si espantadas.
- Falamos quando acabarem de jantar - disse a mulher
No fim do jantar, chamou-a a uma pequena sala e aí disse-lhe:
 -Aqui não terás que fazer trabalhos domésticos. Só terás que atender alguns clientes e seres simpática com eles. Em troca, terás comida, roupa e até algum dinheiro no fim do mês. Só não poderás sair à rua sozinha.
- Mas simpática porquê? Tenho que vender alguma coisa?
- Ó rapariga, mas de onde diabo vens tu? Ainda não percebeste? Isto é uma casa onde os homens vêm em busca de umas horas de prazer, ou de alguma fantasia que as mulheres não lhes fazem em casa. A “mercadoria são vocês”.
- Mulher da vida? – Perguntou a medo lembrando-se de quando ouvira a palavra lá na aldeia e perguntou à avó do que se tratava.
- Ah! Afinal sempre sabes alguma coisa.
- Não quero. Quero ir- me embora – gritou.
- Podes ir! - Disse a mulher com estranha calma. Vai dormir para o jardim onde te encontrei. A meio da noite, terás que aguentar os homens que por lá passem e sem que te paguem. Bem podes gritar, que se alguém aparecer e chamar a polícia ainda vais presa. Aqui, podes descansar hoje e amanhã começas a trabalhar. És muito bonita. Não vão faltar interessados.
Rosa, completamente destroçada, muda de espanto e medo, recolheu ao quarto e atirou-se para a cama a chorar desconsoladamente.


4.7.17

ROSA - PARTE V


Dois dias depois, Rosa estava na cidade grande. Quase sem dinheiro, o ourives dissera que os brincos não valiam grande coisa, e pagou por eles tão pouco que quase nada sobrara depois de comprar o bilhete para a capital.
A cidade era enorme e ela não sabia para onde ir nem o que fazer. Caminhou por uma rua, tão grande que era maior que a sua aldeia, batendo a todas as portas, pedindo trabalho. Mas as pessoas olhavam-na de alto a baixo como se ela não regulasse bem da cabeça e fechavam-lhe a porta na cara. Algumas até lhe acicatavam os cães. Realmente o seu aspeto não era muito agradável. A saia castanha de casimira até ao tornozelo estava bastante amassada da longa viagem de comboio, a blusa de pano-cru, com uma gola redonda, em cuja orla a avó fizera um enfeite, estava enxovalhada, as tamancas de madeira e couro e a cesta de vime escuro, onde transportava algumas peças de roupa, completavam a sua indumentária.
Faminta e cansada, sentou-se num banco de um jardim sem saber o que fazer ou para onde ir.
Pouco depois, uma mulher de meia-idade sentou-se a seu lado no banco e meteu conversa com ela. Perguntou-lhe o nome, a idade, se estava sozinha em Lisboa, se não tinha família.
Desorientada e carente, Rosa contou de onde viera, falou da morte da avó, única parente que tivera até aí, do seu desejo de arranjar trabalho, afinal a cidade era tão grande, tinha tanta casa, mal haveria de ser, que ninguém precisasse de uma criada. E ela sabia fazer tudo menos comida, que nunca cozinhara e só sabia fazer chá.
Depois de a ouvir, a mulher disse que tinha trabalho para ela. Era só acompanhá-la até à sua casa.
Rosa sentiu que lhe nascia uma alma nova, quase teve vontade de abraçar a mulher.
Quando lá chegaram, esta levou-a para um quarto como Rosa nunca tinha visto. Era espaçoso, tinha uma grande cama de casal, coberta por uma colcha adamascada em tons de vinho, reposteiros do mesmo tecido, duas mesas-de-cabeceiras e um armário com as portas em espelho de alto-a-baixo. Ao lado uma porta. A mulher abriu a porta e Rosa viu um quarto de banho parecido com aquele que tinha visto na casa grande lá da aldeia. A mulher disse-lhe para se lavar e vestir as roupas que estavam no armário. Deviam ser mais ou menos do seu tamanho.
- As tuas não servem. Não se usam na cidade nem fazem jus à tua beleza. Daqui por meia hora, venho buscar-te para o jantar.



Continua

Nota:  Parece que esta história tem escandalizado alguns leitores. Pois, ela não é uma história delicodoce  como algumas que escrevo e tanto vos agradam. É uma história de vida, de uma mulher do povo, entre os anos trinta e setenta do século passado. E antes que me perguntem, se a história é verídica, digo-vos que não, mas que há nela muita veracidade. As pessoas da minha geração sabem de muitas, Rosas, Marias, Joaquinas, etc que existiram neste país. É também um pouco da história deste país, noutros tempos, que eram bem mais difíceis do que os actuais.



3.7.17

ROSA - PARTE IV



                                     Foto DAQUI

No dia seguinte, o patrão mandou um gaiato, filho de um seu empregado, perguntar porque Rosa não tinha ido buscar o rebanho. Na velha cama de ferro, sobre o colchão de palha de centeio, a jovem ardia em febre. Esteve assim três dias. Durante todo esse tempo a velha avó não saiu de casa sempre atenta à neta. Matou a única galinha que tinha, para lhe fazer um caldinho, e obrigou-a a beber litros de chá, misturando várias ervas que combatiam a febre e cuja composição aprendera com a sua avó que era pessoa muito entendida, em chás, espinhela caída, quebranto e outras coisas mais. No fim do terceiro dia, enfim a febre cedeu. Mas ainda esteve mais dois dias, prostrada na cama sem força nem vontade de se levantar. Parecia impossível que tivessem passado apenas cinco dias desde aquele dia. Bastante mais magra, as faces sem cor, os olhos sem brilho, ninguém reconheceria nela a rapariga alegre que fora até uma semana atrás. Nunca contou à avó o que lhe aconteceu. Não tinha sido necessário e ela morreria de vergonha, se tivesse de o dizer a alguém.  Só respondera com um seco não, quando a avó lhe perguntou se tinha sido alguém da aldeia. Depois a Avó disse:
- Deus queira que não tenhas ficado "prenha".
Sentiu-se apavorada. Não podia ser. Ela não queria ser mãe assim.
- Deus não o permitirá – murmurou. E logo mais resoluta: - Não saio mais com o rebanho. Nunca mais vou para o monte. Nunca mais. Será que a Ti‟Zefa, não precisa de ajuda lá para a casa grande? Ela já está tão velhinha…
- Descansa filha. Amanhã falo com ela. Tenho a certeza que se ela pedir ao patrão uma ajuda, ele te contrata. Se não logo se verá.
Mas não chegou a falar. O seu velho coração cansado de muitos anos de labuta parou nessa mesma noite.
No funeral, esteve a aldeia inteira e só nessa altura, Rosa teve a noção exacta do quanto a sua avó era estimada pelo resto da aldeia.
Depois do funeral, Rosa deu uma volta pela casa, juntou os poucos pertences e guardou os brincos antigos de ouro, único bem que a avó possuía. Guardou num cesto de vime as suas roupas, que a bem da verdade era bem pouca coisa, e tudo o resto deu a uma vizinha. Depois, entregou as chaves ao Sr. António, que era o dono da casa, e preparou-se para seguir até S. Pedro, onde pensava vender os brincos e comprar um bilhete de comboio para a capital.
Antes disso, porém, despediu-se da Ti’Zefa que fez questão de lhe arranjar uma merenda para o caminho, porque “precisas de comer, rapariga ou, não tarda, juntas-te à tua avó”




2.7.17

ROSA - PARTE III


No invólucro da Rosa mulher, que era a sua figura, vivia uma inocente menina que nada sabia da vida, nem dos maus instintos de alguns homens. Talvez por isso não se assustasse, nem pensasse em fugir, quando no Domingo seguinte os dois rapazes, apareceram lá no monte, onde ela passava as tardes com o gado. De resto tinha-os visto na desfolhada, não eram totalmente estranhos.
Chegaram de mansinho, como quem não tem pressa, e, de súbito, um segurou-lhe os braços e o outro meteu-lhe a mão entre o corpete e apalpou-lhe um seio. Aterrorizada, lutava para se desenvencilhar e quanto mais lutava, mais eles riam. Atiraram-na ao chão, levantaram-lhe a saia e rasgaram-lhe as cuecas. Ela continuava a gritar e a estrebuchar, mas de nada lhe valeu. De repente, sentiu-se esmagada, sob o peso do corpo masculino e a dor fê-la gritar, ao sentir o seu corpo rasgado pelo alarve desejo do homem. A dor, a raiva, a humilhação foi tanta que a pobre quase desmaiou. Mas não teve essa sorte. E teve de suportar não só a dor física, como o resfolegar do homem e o bafo quente do segundo homem que se apossou dela mal o primeiro a deixou. Rosa sentia-se morta, nem força tinha já para protestar. Nem disse nada quando os dois a ameaçaram, que davam cabo dela, se  contasse a alguém o que lhe tinham feito, antes de abalarem rindo em direção à aldeia. Ao Domingo, o Zé Rato, sempre ia tocar a sua concertina para o adro da igreja, onde se fazia um bailarico, e foi para lá que eles se dirigiram.
Rosa, não sabia, por quanto tempo ficara ali descomposta, deitada sobre a relva. Teriam passado alguns minutos, que lhe pareceram horas, quando a custo se levantou, o corpo e a alma destruídos. Agarrou no que restava das cuecas,  e limpou-se como pôde.  Depois ajoelhou e com as mãos cavou um buraco, onde as enterrou.
Levantou-se, pegou no bordão e começou a tocar as ovelhas para o curral. Não chorava. O seu desespero era como fogo que lhe devorava as entranhas.
Assustou-se a avó, com a sua entrada em casa. Primeiro, porque costumava chegar mais tarde, segundo porque o seu aspeto era por demais estranho. Trazia o cabelo e as roupas desalinhadas, e os olhos orlados por grandes círculos roxos, encontravam-se vidrados. Pela experiência, que lhe davam os muitos anos de vida, a avó soube imediatamente o que tinha acontecido à sua menina. Pôs uma panela de água ao lume, foi buscar o alguidar de zinco, despejou-lhe um cântaro de água fria. Enquanto a água não fervia, foi buscar uma combinação da neta e um lençol velhinho mas limpo. Depois, com as mãos trementes, tirou-lhe o vestido, e não pode deixar de reparar nas manchas sanguinolentas nas coxas, nem nas manchas roxas num dos seios. Despejou o tacho da água a ferver no alguidar, já mais de meio de água fria, experimentou a temperatura e agarrando na mão da neta disse:
- Vem. Não podemos lavar a alma, mas o corpo sim. Vais sentir-te um pouco melhor.
Ajudou-a a meter-se no alguidar e deu-lhe banho como se ela fosse uma criança. Depois, com imenso carinho, enrolou-a no lençol, enxugou-a  e enfiou-lhe a combinação de estopa grosseira. E ajudou-a a, a deitar-se na cama.
Rosa não chorara nem dissera uma única palavra desde que chegara a casa e a velha senhora começava a assustar-se.


continua