notas de mil escudos de 1927
Nota: Esta estória, já aqui a contei uma vez há dois anos. Pelos comentários da época percebi que quem a leu, julgou tratar-se de mais um conto meu. Esta história é verídica, passou-se com minha avó, Maria do Carmo da Silva, e foi-me contada por ela. Minha mãe e tios também a contavam. A única dúvida é nas notas, ela contou-me assim em 60 quando eu estive a passar um mês com ela. Os meus tios falavam em duas notas de quinhentos. Seja uma ou duas era uma fortuna, em notas que ela nem conhecia, pois nunca tinha visto notas de tal valor.
Passo a contar a estória.
A história que vou contar,
passou-se na Trapa, pequena aldeia, do concelho de S. Pedro do Sul, nos gloriosos e
loucos anos vinte. Numa pequena casa tipicamente beirã, daquelas de granito que
ficavam por cima da “loja” onde se guardavam os animais, se os havia, e os
mais pobres guardavam apenas os utensílios de trabalho na terra, a
caruma, e a lenha para o fogo, viviam a Maria e o marido, mais os cinco
filhos, dos oito que já tivera. A casa era composta por uma ampla entrada, onde num canto havia uma
chaminé, e um pequeno forno de lenha que a Maria utilizava para cozer o pão. Não havia fogão,
a refeição era cozinhada numa panela de ferro, com três pés que assentava diretamente
em cima da fogueira, que se acendia ao lado do forno, sobre uma placa metálica,
assente em cima das pedras, que formavam o chão. Completava a decoração, uma
comprida mesa de madeira e dois bancos corridos, que serviam na hora das
refeições.
Além desta “sala”, a casa tinha dois quartos. Num dormia o casal, com o filho mais novo, no outro, os
quatro filhos mais velhos. Nos quartos, mantas de trapo, sobre enxergas de
palha de centeio, serviam de cama, na hora de descansar o corpo. Manuel, o
marido trabalhava no campo quando havia trabalho, e quando não, batia as portas
das redondezas à procura de ferro-velho que depois vendia na Feira Velha, uma
feira mensal que se fazia em S. Pedro a cerca de 9 km que o Manuel fazia com o
seu burrico que ele batizou com o nome de Tem Dias. Isto, porque
segundo ele o burro tinha dias, em que era obediente à voz do dono e
outros em que empancava e não se mexia por mais que recebesse ordens em
contrário. Naquele longínquo ano de mil novecentos e vinte e nove, Maria estava de novo
grávida. Estávamos no início de Setembro, Manuel não tinha trabalho,
e nada havia para comer naquela casa. E se os três filhos mais velhos com nove, dez, e onze anos, já
estavam a "servir" em Lourosa, e em Santa Cruz, e já não davam cuidados, os outros cinco tinham fome. Maria pensou que tinha que arranjar comida para os filhos. O
marido só chegaria à noite e quem sabe se traria ou não alguma coisa para comerem.
Deitou o bebé numa canastra que pôs à cabeça, pegou no outro pequeno ao
colo, e seguida dos outros três foi em busca de comida. Batia à porta das casas
mais abastadas e oferecia algum trabalho em troca de comida para as crianças.
Não pedia esmola, tinha vergonha. Mas as pessoas tinham pena das crianças e
sempre lhe davam alguma coisa. Naquele dia, numa dobra do caminho deparou com
uma carteira. Era uma bela carteira de pele com iniciais gravadas a ouro. A
tremer Maria abriu a carteira e viu umas quantas notas. Cada vez mais assustada
tirou-as da carteira mirou-as e viu que era uma nota de mil escudos, uma nota de
500 escudos uma de 100, três de 50, e cinco de 10.
Uma fortuna. Ao metê-las de novo
na carteira qualquer coisa caiu no chão e Maria viu que era uma fotografia.
Reconheceu o homem. Um doutor de uma aldeia vizinha, homem rico e influente com
negócios em Lisboa e Porto. Maria pegou na carteira e foi a casa do tal
doutor. Lá chegada, puxou o sino do portão da quinta e uma mulher de idade, a "criada"
- naquele tempo chamavam-se assim, veio à porta. Maria disse que tinha
achado a carteira e vinha entregá-la. A criada pegou na carteira e foi para
dentro. Maria ficou à espera que ela voltasse. Quem sabe o homem, lhe daria
alguma comida para as crianças. Um palácio daqueles tinha com certeza mesa farta.
Porém o tempo foi passando e a criada não voltava. Impaciente e cansada com o
peso dos filhos e da barriga, a mulher puxou de novo a sineta do portão. E
então a "criada" voltou.
-Entregou a carteira ao seu
patrão? Perguntou Maria
- Entreguei - respondeu ela
- E o que ele disse?
-Guardou-a e não disse nada.
- Por favor, diga-lhe que eu
estou aqui, que tenho as crianças com fome, se me pode dar alguma coisa para
elas comerem.
-Espere um pouco que eu vou
dizer-lhe.
A mulher virou costas e voltou
pouco depois com uma corda. Com lágrimas nos olhos estendeu-a a Maria
dizendo.
- Eu fui falar com o senhor Doutor
e ele disse que era para eu lhe trazer esta corda. E quando eu perguntei o que
lhe ia dizer, ele disse que se enforcasse, porque uma pessoa que tem os
filhos com fome, encontra uma fortuna e vai entregá-la, não merece viver.
Desculpe, dói-me tanto, mas foi o que ele me disse.
Maria engoliu as lágrimas, pegou
os miúdos e virou costas pensando:
-Que raio de País é este, onde
ser honesto merece pena de morte?