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27.5.20

ISABEL - PARTE XI



Acordou tarde e com a cabeça pesada. O sono fora povoado de sonhos esquisitos, em que via um homem com o rosto encoberto, envolto em neblina. Ela sabia que o homem era Fernando era o seu corpo, o seu jeito, mas quando o rosto se tornava visível era um desconhecido com uns profundos olhos cinzentos. Depois o rosto ia-se esfumando e ficava de novo encoberto e ela voltava a ter a certeza de que era  o falecido, mas então a neblina desaparecia e ela via uma figura masculina com um pé em cima de uma muralha, o corpo inclinado para a frente e o rosto voltado para o lado contrário. Era o mesmo desconhecido? Ou era outro? Ela não sabia. Mas de uma coisa tinha certeza. Não era Fernando. Mas então o homem endireitava-se e afastava-se e embora ela não lhe visse o rosto, sabia que era o falecido marido.
Levantou-se, tirou uma mala que estava em cima do armário e colocou-a  sobre a cama. Depois abriu o roupeiro e escolheu umas calças de ganga e um top sem mangas para a viagem. Dobrou cuidadosamente o resto da roupa e meteu-a na mala.
Abriu uma gaveta separou duas peças de roupa intima meteu as restantes num saquinho de algodão florido, atou com a fita de cetim rosa e guardou-a igualmente na mala.
De seguida dirigiu-se à casa de banho e meteu-se no duche. Deixou que a água lhe resvalasse pelo corpo esbelto durante alguns minutos tentando afastar da mente a recordação do sonho esquisito que tanto a inquietava. Inutilmente. A água acalmava o corpo mas não o espírito.
Pensou em Paulo. Que diabo lhe teria acontecido para pedir transferência? Paulo era o director comercial de uma grande superfície. Era também o encarregado das campanhas publicitárias da empresa e fora o seu primeiro cliente. Ele acreditara no talento de uma jovem inexperiente, e dera-lhe a oportunidade que a maioria dos jovens não tem. Foi um risco para ele e uma bênção para ela. 
Graças a esse primeiro trabalho bem sucedido viera uma boa carteira de clientes. Paulo era um homem a rondar os cinquenta anos, completamente apaixonado pela esposa. Tinha uma única filha. Maria uma jovem que ia agora entrar para a Universidade. Ele era além de um bom cliente, também um grande amigo. E agora? Decerto a empresa continuaria a trabalhar com ela. Pelo menos até ao fim do ano, data em que terminaria o actual contrato.
O telemóvel tocou. Isabel fechou a água enrolou-se na toalha e dirigiu-se ao quarto. A meio do corredor o aparelho calou-se e ela pensou que quem quer que fosse ligaria de novo, e voltou para a casa de banho.
Espalhou pelo corpo uma camada de creme hidratante com gestos automatizados pelo hábito, enquanto o pensamento lhe fugia para o sonho. Que grande confusão. Seria um aviso do seu subconsciente? E se era, o que quereria dizer-lhe? Porque é que o rosto de Fernando não era visível como em sonhos tantas vezes aparecera ao longo de muitos anos? E porque é que no fim ele se ia embora? E aqueles olhos cinzentos? Porque é que lhe apareciam no sonho, se apenas os tinha vislumbrado durante segundos?
"Esquece Isabel", murmurou sacudindo a cabeça e começando a vestir-se.
Depois olhou-se no espelho do roupeiro. Por momentos ficou indecisa entre uns ténis brancos e uns sapatos rasos, azuis, tipo sabrinas. Acabou por escolher estes e juntou os ténis ao restante calçado, num saco de lona azul com riscas brancas.
Fechou a mala e colocou o saco com os sapatos em cima.
O telemóvel tocou de novo.
- Bom dia. Está tudo bem? – perguntou Amélia
- Bom dia. Sim, está. E contigo? Alguma coisa urgente? Vi que ligaste quando estava no banho.
- Queria saber a que horas chegas. O Paulo telefonou-me. Quer que vamos a um jantar de despedida esta noite em sua casa.
- Está bem. Chego cedo. E ele? Disse se já tem substituto?
- Diz que sim, mas que o substituto ainda não chegou. Parece que é um filho de um amigo dele.  Mas diz que não conhece, parece que há muitos anos vive fora do país. 
- Está bem. Logo falamos. Estou a acabar de arrumar as coisas. Dentro de uma hora mais ou menos, estou a caminho.
- Então até logo. Boa viagem.
-Obrigado.




E estamos a duas dezena dos 47000 comentários. Quem será que vai virar o milhar?

3.4.20

DIVIDA DE JOGO - PARTE XXIII

Epílogo

Giovanna, acabara de prender o véu nos cabelos de Eva, quando Isabella entrou para dizer que a limusina já tinha chegado. Eva  ainda não sabia onde ia ser o casamento. André fizera questão de manter o segredo para surpreendê-la, e ninguém na família quisera quebrar a ordem.
Nunca, nem nos seus sonhos mais românticos, ela sonhara viver, como vivera aqueles dez dias. Dois dias antes, chegara o resto da família, que viera de Itália, bem como toda a família portuguesa, que vivia em Braga. E todos sem exceção a acolheram com todo o carinho. Na última noite, André fora dormir no hotel, donde seguiria para a igreja, com a família. Com ela ficaram a futura cunhada Giovana e Isabela, a sobrinha mais velha, filha de Pietro, para a ajudarem a preparar-se para a cerimonia. Agora, seguiam a caminho do local onde o casamento se  realizaria.
Quando a limusina parou junto do portão do orfanato, e viu os portões abertos, guardados por dois seguranças, e o grupo de meninos, rigorosamente vestidos, segurando folhas de palmeira formando um arco para ela passar, a emoção foi tão grande que quase não conseguia andar.
O sogro aproximou-se e deu-lhe o braço para a conduzir à capela, em cujo altar André aguardava ansioso.
Para Eva tudo era um sonho. As meninas todas vestidas a rigor, (saberia mais tarde que tinha sido o noivo e os seus pais, que tinham oferecido as roupas às crianças do orfanato) aguardavam-na perto da capela, muito compenetradas do seu papel de damas de honor, a Irmã Maria interpretando Avé – Maria, de Schubert. André, no altar, de olhos brilhantes e sorriso rasgado, ladeado pelo irmão e cunhada, que iam ser os seus padrinhos, a capela engalanada, a Irmã Madalena no altar, acompanhada de um tio de André, que se seriam os  padrinhos dela. 
A cerimonia decorreu de forma muito emotiva. Quando o padre, os declarou marido e mulher e disse ao noivo que podia beijar a noiva, o beijo foi tão intenso, que todos os presentes aplaudiram. O copo-de-água, no refeitório do orfanato, totalmente engalanado, a alegria das crianças, tudo contribuiu para um dia excecional que ela não esqueceria nem que vivesse várias vidas. Por fim, a emocionada despedida da Irmã Madalena, que só voltaria a ver quando viessem de férias a Portugal e da sua nova família, que iria reencontrar na Toscana, quando voltassem da lua-de-mel, cujo destino ela ainda desconhecia, mas a julgar pelo que vivera até ao momento, seria a continuação de um belo sonho, disso não tinha dúvidas.



 Fim 

Elvira Carvalho

                                      INFORMANDO

Para quem me lê há pouco tempo, devo dizer que as minhas histórias quase todas partem de um assunto que não me agrada, e para o qual quero chamar a atenção, nesta por exemplo, o tema era os malefícios do jogo (lembro-me da minha avó contar uma história de um homem que perdeu a casa e a mulher numa mesa de jogo, nos anos trinta do século passado) e do branqueamento do dinheiro, de atividades ilícitas, através do jogo. À volta desses dois temas criei esta história. Noutras o tema foram a fome, a guerra e os mutilados por bombas em África, a guerra no Afeganistão, a traição entre casais, a inseminação através de esperma de um dador anónimo, a violência doméstica, e as suas consequências na vida adulta das crianças que a sofreram, os acidentes por alcoolismo, etc. 
 As exceções são a "Rosa", retrato de uma época entre 1945 e 1975, que tentei retratar o mais fiel possível, (assisti a muitas das situações lá descritas), bem como em "As Cores do Amor," uma história romanceada entre 1973/1975 onde se descreve o antes e depois do 25 de Abril e o despoletar da guerra em Luanda, que vivi nesse tempo. O "Casamento por Procuração", retrato de uma época entre 1960/1974  cheia destes casamentos, e onde se lembram as fugas de salto para França e as condições quase sub-humanas em que viviam os emigrantes portugueses nos Bidonville, e "Renascer," 1971/1974 todas elas parte da nossa história no século passado. 
Posto isto, resta-me acrescentar que desta vez exagerei no romantismo. Na verdade agi como a fada madrinha para Eva.
Afinal, dizem que quando a idade pesa mais do que nós, ( e eu já estou nessa fase) voltamos a ser crianças. E elas acreditam em fadas.
Agradeço a vossa compreensão.


A nova história tem apenas um capítulo pronto e eu não gosto de fazer publicações antes de entrar na reta final. Por isso e como alguns me pediram "À Média Luz", escrita na mesma época de Dívida de Jogo" será essa que entra para a semana.


15.12.19

CONTOS DE NATAL - O AVÔ








Estava frio, daquele frio que trespassa  a roupa e penetra nos ossos. É tempo dele, pensava. No Inverno, arranjar clientes é mais difícil. Os homens estão mais dedicados à família, pensam nos presentes para os filhos, por amor e convicção de que o devem fazer, pois que nada é mais magnânimo do que amar um filho. É tempo de desviar a máscara que trazem durante o resto do ano, a esposa merece isso, merece alguma atenção e algumas manifestações de carinho. Se os prazeres da cama se tornam mais esporádicos, se o rosto cansado dela, ao fim do dia, lhes tira o desejo de a procurar como no início, enfim compreende-se. Na verdade,até é bom para ela, que precisa de descansar, e o sexo já não tem o mesmo encanto. Se ele a deixa dormir, ela agradece.Dirá, até, que o marido é uma pessoa compreensiva, que respeita o seu ritmo de afetos, que não lhe faz a vida negra como tantos outros de que tem conhecimento pelas confidências das colegas de trabalho.

Enquanto anda pelas ruas da cidade, Vai pensando assim Carolina transida de frio. A saia curta, os saltos altos, os joelhos gelados, os pés doridos, a cabeça a latejar trazem-lhe uma palidez ao rosto capaz de levar qualquer homem a desprezá-la. Carolina tem vontade de chorar e de desistir, de ir para casa. Casa? - pensa. Casa?, um quartinho alugado nas traseiras de um velho prédio de Alfama. O que ganhava não dava para mais. A maior fatia era para pagar a ama do menino e a percentagem ao Quincas. Tinha logo de se afeiçoar ao Quincas, o proxeneta que diz protegê-la. Ela acha que precisa mesmo dessa proteção.  Servir homens é perigoso, vêm cheios de taras, têm exigências que não lembram ao diabo, são sádicos - esta palavra arrepia-a, ela sabe do que fala. Quincas anda por perto, vai rondando os seus passos, e, assim, ela sente-se mais segura. O pior vem depois, a percentagem, como ele lhe chama. E neste pé, Quincas é intransigente. "Carol querida, mostra lá o que rendeu hoje, mostra, não te atrevas a enganar-me!Vê lá se queres que te deixe por aí entregue à vida! Olha que estão muitas à porta, resmas delas, à espera. Vamos lá a contas!" Quando lhe chamava "Carol querida" ela estremecia de medo, não podia enervá-lo, zangado era uma fera, perdia a compostura, era bem capaz de lhe dar umas bofetadas. E isso era tudo o que não queria,  ao fim de um dia de 'trabalho' que a deixava extenuada. Lembrava-se do seu menino e escorria-lhe pela alma e pelo corpo uma tristeza e um remorso sem fim. Pensava que não poderia aguentar esa vida por muito mais tempo, mas não via saída,  quem lhe daria um trabalho honesto? Era lixo social, era assim que se sentia: lixo social. Mas, no dia seguinte, tudo recomeçava e o tempo impiedoso pedia-lhe mais e mais. E ela labutava mais e mais, mais e mais. Aquela noite parecia a pior de todas; as luzes davam um ar de honestidade festiva às ruas, as senhoras sérias passavam com os últimos embrulhos adornados de laços e brilhos, e ninguém a convidá-la para aquilo, nenhum carro a parar e a perguntar por quanto ia. Ninguém. E o Quincas, logo, a pedir-lhe contas. E ela não tinha nada guardado no seio. Ele era gajo para lhe meter a mão na blusa e de a rasgar, para a intimidar. Raio de vida! Merda de vida! Encostou-se ao poste de iluminação, na Avenida.Ali, na penumbra, às vezes, conseguia clientes. Oxalá tenha sorte, nem que seja um coxo, um sem-abrigo, um bêbado. Já está por tudo. Era só suster um pouco a respiração, fechar os olhos e deixar as coisas acontecerem.  Rápido, que seja rápido. Rápido, até podia fazer um abatimento... Era urgente um homem com necessidade do seu corpo, que tivesse pressa e que não regateasse o preço da tabela imposta por Quincas. Pensava na mãe: se ela soubesse a vida que a filha levava em Lisboa... quando deixou a aldeia, vinha com a mochila carregadinha de sonhos, Ia ganhar dinheiro, ia ter um emprego de cabeleireira, talvez com sorte pudesse abrir em breve o seu próprio salão.  Então, casaria e teria dois filhos, o primeiro dos quais se chamaria Afonso Henriques, em honra do primeiro rei de Portugal. Na escola, gostava tanto de História! Interessava-se sobretudo pelas vidas dos heróis. O professor tinha um jeito especial para compor as histórias que narrava: os casamentos, as intrigas, os sofrimentos das rainhas, as traições, os adultérios... Registava tudo. Pensava que,  se não fosse cabeleireira e se a mãe tivesse meios, seria professora de História. Tudo tão distante no tempo e na vida! Dantes, ainda ia passar o Natal à terra (como se diz em Lisboa); levava presentes e inventava sucessos e alegrias. Construía um mundo à semelhança da sua capacidade de criar mundos, tomando como modelo o seu antigo professor de História. E a mãe acreditava e ficava muito feliz por ver a filha tão feliz e tão bem sucedida. Agora, invoca o muito trabalho, que não lhe dá tréguas e não a deixa ter férias. E nisso não mentia, era a mais pura das verdades.  E a noite a avançar e nada de clientes. Bolas! Estarão os homens de Lisboa tão apaziguados, tão assexuados que não vêm cá fora à procura de uma pequena aventura ou de uma facadinha no casamento? E ela não dispunha da noite toda, tinha de ir buscar o Afonsinho, a ama avisara que queria estar livre para a consoada com a família.  Que noite de consoada tão azarenta! Parece que estava tudo a seu desfavor.  Estariam a moral e os bons costumes a castigá-la por ousar desafiá-los? De repente, alguém para, Uma sombra, um avozinho, que dá uma escapadela para comprar as últimas prendas para os netos, pensa.
"Quer vir comigo? Está livre? Tenho um espaço reservado. Venha" E foi, num misto de alegria e curiosidade, estranhando o tratamento diferente do dos outros clientes. A sala era enorme,  de um conforto requintado. O 'avozinho´tira-lhe delicadamente o casaco e manda-a sentar. Acende a lareira e vai buscar uma bandeja com chá e rabanadas. Estranho: geralmente oferecem-lhe vinho, e tratam-na por tu, o que é mais consentâneo com o seu estatuto social. Este não a tratava assim, chamava-lhe "senhora dona Carolina" e servia-lhe o chá numa chávena Limoges. De repente pensou que seria bom viver naquela casa, usufruir daquele conforto doce e morno, que sossega os corpos. Carolina pensava: "quando tiro a roupa? O homem não ata nem desata; e o tempo a passar, e nada" Mas o senhor começa a falar, calmamente, respeitosamente: " Carolina, desculpe, sei que deve estar a pensar que nunca mais me decido, não é? Mas, olhe, eu tenho-a visto algumas vezes na Avenida, tenho observado a sua ansiedade e a sua repulsa por aquilo que faz. Teci algumas conjeturas a seu respeito: esta mulher não é lisboeta, detesta a prostituição, deve ter filhos, é infeliz, coitada..." E hoje atrevi-me a aproximar-me. Sou viúvo há dez anos: a minha mulher também se chamava Carolina e era um anjo. Nunca a traí. Mas estou só. Tenho tudo o que o dinheiro pode comprar, mas estou só, e a solidão é algo demolidor para o ser humano. Então tenho uma coisa a propor-lhe: passe o Natal comigo como se pertencêssemos à mesma família. Tem um filho? Não há problema: vamos buscá-lo. Vai ser bom para todos. Se gostar, quem sabe se deixará de procurar clientes e poderá passar a gestora da minha casa?".
Carolina chora lágrimas quentes que não consegue estancar do seu rosto macerado e precocemente envelhecido. Afonsinho acabara de ganhar um avô.  Haverá milagres em véspera de Natal?


Albertina Fernandes

in  lugares e Palavras de Natal

Editora  Lugar de palavras

2.11.19

2 DE NOVEMBRO - DIA DE FINADOS


Dia de Finados

Passam tristes em romagem piedosa
Levam nos ramos as mais belas flores
Veste-se a natureza de sombrias cores
Porque também ela está triste e chorosa.

Também vou nesta romagem atormentada
pois já morreram os meus sonhos e amores
De tudo que eu tive, hoje só restam as dores
sepultadas na minha alma amargurada


Curvada, ante mim própria sou a campa
A minha ilusão de viver era tanta
Que um dia a própria vida a matou.
Agora em cada dia de finados
Levo aos meus sonhos, mortos e chorados
pétalas de uma flor que já murchou.


Elvira Carvalho

2.4.19

UM HOMEM DIVIDIDO - PARTE XV





Eduardo terminara o seu dia de trabalho. Antes de sair perguntou a Susana se o cunhado estava no escritório. Após a confirmação da secretária, abriu a porta e perguntou:
- Posso entrar?
- Entra e senta-te. Queres alguma coisa?
- Eu e o Júlio marcámos a escritura para o dia vinte e seis. Espero que possas ir connosco. Dia trinta é o aniversário do nosso casamento, e prometi à tua irmã que estaria cá nessa altura para uma comemoração especial.
- Bom, a respeito disso temos que conversar. Quero que essa data seja memorável para os dois. Tira uma semana de férias para poderem ter a lua-de-mel que não puderam ter na altura. É o meu presente, uma bonita festa, com renovação de votos, seguida de uma semana de lua-de-mel, no sítio que escolhas. Só gostava que não dissesses nada à Gabi, a fim de que fosse uma surpresa.
- Isso seria maravilhoso, mas e o Pedro? Não pensaste nele?
- Claro que sim. Pode ficar com a avó. Tenho a certeza de que a minha mãe ficaria encantada, e eu me encarrego de o levar e ir buscar à escola.
- É um sonho, mas um sonho muito caro.
-E para que serve o dinheiro senão para realizar os nossos sonhos? Quando vocês casaram, a minha ajuda não passou de uma ninharia. Nem sequer pude vir assistir ao casamento. Vou fazer de conta que se casam agora. Quero ver a vossa felicidade. Amanhã sem falta, traz-me a lista das pessoas que gostarias de ter presente. Decerto terei de acrescentar algumas com quem privamos mais a nível profissional, pois não seria de bom-tom ignorá-las. Não te esqueças, pois fiquei de enviar a lista para a Paula Maldonado amanhã.
- A Paula Maldonado? Meu Deus António, isto faz parte da tua vingança? Porque se assim é, não quero festa nenhuma.
-Não sejas tonto. Contratei-a, ela aceitou. Sou um cliente como qualquer outro.
- Mas arruinaste a sua família. E fizeste uma exigência absurda. Quando ela souber não quer saber de ti.
- Ela sabe. O pai contou-lhe. E disse-me na cara que não está à venda, e que um casamento sem amor é uma espécie de prostituição.
-Santo Deus. E ainda assim vai fazer a festa? Só se for para se vingar de ti, e não nos metas nisto por favor. Quero uma data feliz, não um motivo de sofrimento.
-Fica descansado que tudo correrá bem. A Paula é acima de tudo uma grande profissional, nunca faria nada que lhe arruinasse a carreira.
- Espantas-me. E o pai dela? Sabes que o Jorge Maldonado tem um filho da idade do Pedro?
- Claro que sei, investiguei a vida dele, lembras-te? Mas como sabes tu disso.
-O Pedro apresentou-mo, no dia em que fui buscá-lo à escola. Parece que é o seu melhor amigo.
- Realmente o mundo é uma aldeia. Bom vai-te lá embora, senão a minha irmã acusa-me de te escravizar. E não esqueças a lista amanhã.
-Não vens?
-Não. Ainda tenho trabalho para acabar.



15.3.19

UM HOMEM DIVIDIDO - PARTE II





Assim que ficou só, António levantou-se e caminhou até à janela. Precisava esticar as pernas, libertar a tensão em que estivera, durante a reunião com o seu inimigo.
António nem sempre fora um homem rico. Seus pais vinham de famílias pobres, não tinham grandes estudos. O pai trabalhava nas obras, a mãe, nas limpezas em várias lojas no bairro. Ainda assim queriam dar aos filhos os estudos que eles não puderam ter. António terminara o Secundário com boas notas e preparava-se para entrar na Universidade, quando o pai adoeceu gravemente. Se o seu ordenado não era grande coisa, o subsídio de doença era bem mais pequeno. Por outro lado a mãe para poder tratar do pai, não podia sair de casa, e deixou de poder trabalhar, limitando-se a aceitar alguns trabalhos que podia fazer em casa, como levantar umas bainhas, ou pôr um fecho numas calças. Como filho mais velho, António viu-se obrigado a abandonar os seus sonhos de entrar para a faculdade e a procurar um trabalho que lhe permitisse ajudar a sustentar a casa. Foi assim que conheceu, Jorge Maldonado em cujo escritório se empregou. Tinha dezanove anos.
Um ano mais tarde, António foi assaltado quando voltava à empresa, depois de ter efetuado uma venda e ter recebido a importância que sinalizava o negócio.
O patrão não acreditou no assalto e acusou-o de ter simulado o roubo para ficar com o dinheiro.
Despediu-o e denunciou-o à polícia. O jovem foi interrogado pelos agentes de autoridade vezes sem conta, mas nunca se  desviou um milímetro do que contara a primeira vez, pois isso fora o que acontecera, essa era a verdade.
Entretanto, o pai sofreu uma violenta recidiva do AVC anterior e faleceu três meses depois. A mãe levava os dias a chorar, e os amigos deixaram de lhe falar. Por mais que António, procurasse um trabalho que pudesse ajudar na sobrevivência da família, não conseguia. Ninguém dá trabalho a uma pessoa, quando essa pessoa está a ser investigada por roubo. Desesperado, António jurou a si mesmo que um dia ainda ia ter poder suficiente para se vingar do homem que lançara sobre ele aquele estigma.
Seis meses depois, o processo foi arquivado por falta de provas.
António despediu-se da mãe e da irmã partiu para o Alentejo, onde foi trabalhar na apanha da azeitona.Quando a safra acabou, deu parte do dinheiro à mãe e com o resto partiu para a França.

Bom fim de semana

9.3.19

PORQUE HOJE É SÁBADO





                                           A Gaivota



A gaivota
ferida
caíu.

A gaivota
caída
morreu
embalada
pelas ondas
que foram
seu berço.

Ah! gaivota
como eu queria
não ver
que contigo
morreram
afogados
os sonhos que trazia
no imenso mar
que é o meu peito

Elvira Carvalho

26.7.18

O DIREITO À VERDADE - FIM




Mais tarde, ela descansava a cabeça no peito forte do marido, enquanto ele, lhe contornava o rosto numa terna carícia. Ela suspirou. Preocupado ele perguntou:
-Estás bem? 
-Sim, - murmurou
-Foi incrível! Nunca experimentei nada assim, senão em sonhos.
Ela levantou a cabeça e olhou-o.
-Sonhavas que eu estava contigo, neste quarto e fazíamos amor.- Não era uma pergunta, era mais uma afirmação, como se ela soubesse
- Muitas vezes, Mas... como sabes? Não me digas que também sonhavas o mesmo, - disse rindo
- Quem julgas, que me ensinou a ser assim tão desinibida? Acreditas que a primeira vez que tive esse sonho, ainda nem sabia quem eras, e vi nele, este quarto tal qual é, sem nunca ter estado na quinta?
- Mais uma razão para nunca duvidares do amor que nos une. Somos almas gémeas, minha querida. Percebi-o desde o primeiro momento que nos vimos. Mas agora é tempo de nos levantar e vestir, já anoiteceu.
-Meu Deus! - Exclamou ela saltando da cama. Daqui a pouco chegam os nossos pais. Que vergonha.
Ele seguiu-a para a casa de banho rindo.
-Querida; estamos casados, lembras-te? E os nossos pais sabem o que é ser recém-casado.
Meia hora mais tarde entravam no carro e dirigiam-se para Coimbra.


Epílogo

Vinte e três de Abril do ano dois mil e dezoito. Cláudio e Helena, estão casados, há quase trinta meses. Durante aquele tempo muitas coisas tinham acontecido nas suas vidas. A casa deles ficara pronta, Cláudio conseguira enfim aquele tal vinho especial que tentava criar há anos, e que acabara de lançar no mercado com o nome de Quinta dos Milagres. Carmo recuperara a saúde e o seu vigor, e até o tio Alberto, estava de novo apaixonado, depois de doze anos de viuvez.
Helena terminara o Curso de História Contemporânea, e já estava a lecionar no Colégio da Imaculada Conceição em Viseu. A sua vida era agora muito diferente daquela que tinha tido em Lisboa. E a maior diferença operara-se nela. A Helena de hoje, era uma mulher feliz e segura de si, do seu amor e das suas capacidades como mulher. Daquela mulher, triste, insegura, que fugia de qualquer relacionamento. por não acreditar ser merecedora, de viver um grande amor, não ficara nem resquício.
Hoje o casal está em Lisboa. Para apadrinharem o casamento de Paula, a amiga de Helena, que foi sua madrinha de casamento, e Sandro o jovem  namorado de há mais de quatro anos.
Tal como a amiga fizera com ela, Helena ajudou Paula a aprontar-se para a cerimónia. E acabava de lhe prender nos cabelos a tiara com o véu, quando a mãe da amiga, entrou no quarto.
- Filha o carro para te levar, acaba de chegar. A noiva deve chegar um pouco atrasada, mas não tanto que desespere o noivo. Lena é melhor vocês irem andando. Os padrinhos já devem estar no altar quando a noiva entrar na igreja.
Helena deu um beijo na amiga, e saiu do quarto. Encontrou o marido na sala com o dono da casa, que parecia mais nervoso do que a filha.
-Vamos, amor? Temos que chegar à igreja antes da noiva.
Cláudio despediu-se do anfitrião, e saíram em direção ao carro. O trajeto até à Igreja de S. Paulo onde se ia realizar a cerimónia era curto.
Quando chegaram ao altar, a igreja já se encontrava cheia. Cumprimentaram o noivo, que se mostrava bastante nervoso, e os padrinhos dele e ocuparam o seu lugar no lado esquerdo do altar. Ouviu-se a marcha nupcial e a noiva entrou no templo, sendo conduzida ao altar pelo braço do pai.
Na hora em que os noivos fizeram os seus votos de amor e fidelidade, Cláudio apertou a mão da esposa entre as suas e olhando-a nos olhos, repetiu num murmúrio, os votos que fizera quando casara, deixando-a emocionada.
E enquanto o padre declarava os nubentes, marido e mulher, e eles se beijavam, Helena inclinou-se e murmurou:
- Eu e o nosso filho, amamos-te hoje e vamos amar-te para toda a vida.
Surpreso, ele olhou-a interrogativo. Ela limitou-se a acenar com a cabeça afirmativamente, enquanto o sacerdote derramava sobre os nubentes, a bênção final.
Cláudio estava por demais emocionado. Apenas teve tempo para lhe segredar, enquanto os noivos se beijavam de novo, antes de serem submersos, por familiares e amigos, num mar de abraços e felicitações.
-Mulher, tu sabes quando dar uma notícia! Prepara-te, a minha vingança vai ser terrível.
Ela riu com malícia, e apressou-se a ir abraçar a amiga.


FIM




23.7.18

O DIREITO À VERDADE - XLIV



Chegaram à quinta, quando o sol, acabava de desaparecer no horizonte mas a noite ainda não se fazia presente. Eram dezanove horas do dia quatro de Outubro do ano da Graça de dois mil e quinze. Durante a viagem, Helena falou de si, da faculdade que se vira obrigada a abandonar com a doença e morte da sua progenitora, Falou da sua infância, de como lhe custou o facto de não ter o pai a seu lado quando era menina, da surpresa que foi achar aqueles documentos no armário da mãe. E do seu amor por ela, por todos os sacrifícios que fizera para a criar e educar. Apesar da desilusão que teve ao  descobrir o que a mãe fizera, nada apagava os anos de amor incondicional que a mãe lhe devotara. Abriu o coração para ele, como ele fizera com ela quando chegou.
Com a aproximação da quinta, fora ficando cada vez mais nervosa. Apesar de Cláudio lhe garantir que a mãe, era uma excelente pessoa, e que mesmo sem a conhecer já gostava dela, por saber que era a mulher que ele escolhera, ela estava receosa. Sempre ouvira dizer que sogras e noras não se amam, porque ambas competem pelo amor do mesmo homem, A mãe sempre teme que a nora afaste o filho dela, e a nora receia que o marido faça comparações, entre as duas, com desprimor para ela. Acresce que no caso, ela era também filha do marido da futura sogra. E para uma mulher que não pôde dar ao homem que amava, um filho, de repente, ele aparecer com uma filha, de outra mulher, devia ser doloroso. Helena vinha pensando nisso, e cada vez estava mais nervosa.
Cláudio estacionou o carro em frente da casa. Saiu do veículo ao mesmo tempo que a jovem. Jorge e a esposa, que estavam sentados no alpendre, levantaram-se para os receber.
Cláudio pegou na mão da jovem e apertou-a carinhosamente, enquanto dizia baixinho.
-Tem calma. Vai correr tudo  bem.
-Boa noite, -disse saudando os pais. Depois falando apenas para a mãe acrescentou:
-Mãe aqui tens Helena, a mulher que eu amo.
As duas, cumprimentaram-se beijando-se, enquanto Jorge perguntava ao filho:
- Foi difícil de convencer?
Ele respondeu sorrindo.
- Achas? Com todo o meu charme?
Todos riram e aquela pequena brincadeira contribuiu para quebrar a tensão de um primeiro encontro. Depois, Jorge beijou a filha e disse:
- Vocês devem estar cansados e talvez queiram tomar banho antes do jantar. Os dias continuam muito quentes. Cláudio, mostra a casa à Lena e diz-lhe onde é o seu quarto. Esperamos que estejam prontos para começarmos a jantar.
O jovem assim fez. Começou pela cozinha, a sala, os dois quartos de hóspedes, o quarto dos pais e por fim o seu.
Helena, não conseguiu reprimir a surpresa, ao ver o quarto de Cláudio, a grande cama de ferro pintada de preto, o armário, a posição da janela, tudo. Como era possível, que sem nunca ali ter entrado, se visse naquele quarto nos seus loucos sonhos?



Gente, agora até acabar vão ter dois episódios por dia.  Para acabar Sexta-feira. Pode ser?


17.7.18

O DIREITO À VERDADE - XXXIII







Cláudio, levantou-se antes do nascer do sol. Foi à cozinha, tirou um café, que bebeu e de seguida saiu para os vinhedos. O sonho que tinha tido perturbava-o. Claro que ele já tinha tido, sonhos eróticos. Como qualquer jovem teve a sua fase de sonhos eróticos e de molhar o lençol. Mas era um adolescente. Era normal. O que não era normal era isso acontecer-lhe aos trinta anos. E o que lhe fazia mais confusão, é que a cena fora tão real, que ainda agora, passadas tantas horas, lhe custava a encará-la como um sonho. Procedeu à recolha dos cachos para a análise que levou para a adega, onde encontrou o Manuel Carreto a tratar dos barris de carvalho, que eles iam usar para a maturação do próximo vinho. Cumprimentou-o, trocaram umas palavras sobre o processo e despediu-se entrando em casa para tomar o pequeno-almoço.
-A mãe já se levantou?- Perguntou à empregada.
- A enfermeira está a cuidar dela. Ainda vai levar muito tempo a ficar bem?
- Segundo sei, está tudo a correr bem, mas é preciso cuidado para a costura não reabrir. E o pai já saiu?
- Já sim menino, - disse pondo em cima da mesa um jarro de sumo de laranja, um cesto com pão fresco, queijo e doces.
Cláudio cortou uma fatia de pão, espalhou sobre ela, uma fina camada de manteiga, e uma fatia de queijo. Colocou sobre o queijo outra fatia de pão, e iniciou a refeição.
Quando acabou de comer, foi ver a mãe. Encontrou-a sentada na cama, recostada sobre várias almofadas.
- Bom dia, mãe. Como te sentes hoje, - perguntou inclinando-se para a beijar.
- Farta de não fazer nada, -respondeu ela levantando a mão para lhe acariciar a face.
-Tem paciência. As pressas às vezes dão mau resultado. E se não queres problemas tens que seguir à risca o que te dizem. Tenho de ir. Se precisares de mim, manda a Rosa chamar-me.
Ia a sair de casa quando o seu telemóvel tocou. Atendeu.
-Estou…
- Doutor Cláudio, estou a ligar para informar que acabou de chegar a nova bomba de trasfega que encomendou. Pode vir buscá-la quando quiser.
- Obrigado. Vou agora mesmo.
- Muito bem. Então até já.
Voltou ao quarto, Mudou de roupa, avisou a mãe de que ia a Viseu buscar a bomba e saiu. Tinha acabado de colocar a bomba no carro, quando ao levantar a cabeça, viu o pai sair de um prédio no passeio contrário umas três portas mais à frente. Preparava-se para ir ter com ele, quando viu a jovem que saía do mesmo prédio. Ficou sem ação ao reconhecer a jovem, e ver como o pai lhe passava um braço pelos ombros e assim seguiam pelo passeio. Entrou no carro, ligou o motor e seguiu muito lentamente, na mesma direção.  Uns bons metros adiante, viu-os entrar no hotel Avenida.
Parou o carro tentando acalmar-se. Tremia de raiva. Ele tinha percebido que o pai lhe escondia alguma coisa. Até pensara numa aventura. Mas o hipócrita, afirmara que amava a mulher e nunca seria capaz de a trair. Mentira. Um homem vai buscar uma mulher e leva-a para um hotel para outra coisa que não seja irem para a cama? Uma miúda! E ela? Fugira dele, fingira ser muito ingénua, e afinal… Claro deve ter percebido que ele era o filho do amante. Por isso fugira quando ele disse que a ia levar ao hospital para lhe apresentar os pais. Maldita. E o pior é que ele, o idiota, estava apaixonado por ela. A vontade que tinha, era ir ao hotel e mostrar-lhes toda a sua raiva. Mas não podia fazer semelhante coisa. Não podia armar um escândalo que mais dia, menos dia chegasse aos ouvidos da mãe. Ligou de novo o motor e arrancou. E já não viu que o pai e a jovem Helena voltavam a sair do hotel.




28.10.17

A RODA DO DESTINO - PARTE XLIII






Acordou já passava das nove. Tinha dormido mal. Levara imenso tempo para adormecer, e o sono fora povoado por vários sonhos, onde Salvador era sempre o protagonista.
O que ele lhe tinha dito na noite anterior, não era uma declaração de amor, embora pudesse soar como tal.  Desde que o vira, o seu coração ficara preso no seu sorriso, na profundidade do seu olhar. O seu corpo reagira com intensidade ao toque da sua pele, e o desejo apareceu pela primeira vez no seu corpo e na sua vida. Contudo esforçara-se para ver nele apenas um amigo, um familiar. Não lhe passava pela cabeça, que ele se pudesse interessar por ela como mulher.
O que ele lhe propunha, era muito arriscado. Porque ela sabia que se começasse a conviver amiúde com ele, se trocassem carinhos estava perdida. E se depois de tudo,  ele chegasse à conclusão que era apenas amizade o que sentia por ela? Como é que ia conseguir sobreviver? Por outro lado se não tentasse, ia viver toda a vida lamentando a sua cobardia. Pensando no que podia ter vivido.
Saltou da cama, foi até à janela e abriu a persiana. O vento acalmara. Já não chovia, mas o céu mantinha-se bastante nublado. Abriu o vidro e deixou que o ar húmido lhe viesse beijar o rosto. Na casa paterna fazia sempre aquilo após uma noite de chuva. Adorava o cheiro a terra molhada. Na cidade não cheirava a nada. Pudera, Por todo o lado, só havia alcatrão, e a calçada dos passeios.
Voltou a fechar a janela. Foi levantar as persianas da sala e da cozinha, organizando mentalmente o seu dia. Precisava fazer umas compras. Já não tinha iogurtes, e o leite só daria para os cereais do pequeno-almoço.
Foi à casa de banho, lavou o rosto, escovou os dentes e os cabelos, que prendeu num rabo-de-cavalo. Vestiu o robe, e voltou à cozinha para preparar os cereais. A seguir iria limpar a casa, depois às compras. De tarde ia ver a irmã. Estava a precisar de um conselho. Ana Clara tinha outra experiência da vida, conhecia Salvador há anos. Talvez até soubesse como era a tal mulher de quem ele lhe falara um dia. Sentia a necessidade de saber quem e como era.Talvez assim conseguisse avaliar as suas hipóteses.
Acabou de comer, passou a taça de cereais por água e meteu-a na máquina que se encontrava quase cheia. Como vivia sozinha, tinha que juntar a loiça de vários dias para encher a máquina. Ligou-a e pôs mãos à obra, na limpeza da casa, começando pelo quarto.
O apartamento era pequeno, mas mesmo assim já passava das onze quando deu a tarefa por terminada.
Tomou um duche rápido, vestiu-se e preparava-se para secar o cabelo quando o telemóvel tocou.
- Estou…
- Bom-dia. Como está a minha Princesa? 
A voz de Salvador, provocou-lhe um arrepio, como se ele estivesse sussurrando no seu ouvido.
- Sou…?
- Tens dúvidas?
-Muitas.
- Não tenhas. Tens programa para hoje?
- Pensava ir esta tarde a casa da minha irmã.
- Passo aí a apanhar-te às duas. É boa hora para ti?
- Sim.
- Então fica combinado. Até logo, querida.

1.7.17

ROSA - PARTE II





Durante anos, Rosa não teve outra vida que sair todos os dias para o monte com o rebanho. Nele cresceu e nele nasceram os primeiros sonhos de mulher. E fizera-se uma linda mulher. Tinha um corpo esbelto que as roupas grosseiras não conseguiam esconder, um rosto moreno no qual os enormes olhos negros brilhavam como faróis em noite sem lua. Os cabelos escuros, primorosamente entrançados, chegavam quase à cintura.
As longas horas de solidão passavam rápidas, entretida entre sonhos e desejos. Um dia, um príncipe, encantado ou não, de alguma cidade distante havia de chegar… e nesse dia a sua vida ia mudar.
Naquela tarde, quando recolheu o rebanho, a Ti‟Zefa, convidou-a para vir à noite à desfolhada. Todos os anos era convidada mas, devido ao facto de se levantar antes de o sol nascer para apascentar o rebanho ela nunca lá fora. Naquele dia, sabe-se lá porque tentação do demo, aceitou ir. 
A desfolhada era na eira do Sr. António, não muito longe do alpendre da casa. O Sr. António era o patrão da maioria dos habitantes na aldeia. Tinha feito fortuna no Brasil, mas isso fora muitos anos antes de ela nascer. 
Foi uma noite inesquecível. Rapazes e raparigas, alguns de aldeias vizinhas, sentavam-se numa grande roda à volta da eira. No meio desta, uma pequena montanha de espigas que iam descascando com perícia, pondo atrás de si o folhelho, e a seu lado em grandes cestos de vime a maçaroca loira. Mais tarde o folhelho seco seria usado para encher os colchões e as espigas seriam malhadas pelos homens, ali mesmo na eira. De vez em quando, soltavam-se as gargantas em afinadas quadras ao desafio, quase sempre entre um rapaz e uma rapariga, que faziam rir quem os ouvia, ora apoiando um, ora apoiando outro.
Para descansar a garganta, ou quem sabe para germinar nova leva de cantorias, preenchia-se o intervalo com histórias que, de tão antigas, já haviam virado lendas, conhecidas de todos. Mas, como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, as histórias eram sempre diferentes dependendo do narrador.
As histórias masculinas eram quase sempre de bruxas e almas do outro mundo, onde não faltava nunca o próprio demo disfarçado de bela dama, com pés de cabra. As mulheres, regra geral, talvez por medo, contavam histórias  mais reais. Gracinhas dos filhos, ou dos sobrinhos, eram sempre bem recebidas, mas às vezes também vinha à baila uma ou outra história de “lobisomens”.
Por vezes, alguém gritava: - Milho-rei! E levantava-se exibindo no ar uma espiga de milho quase cor de vinho como se fora um troféu. Os rapazes eram mais exuberantes. As moças, especialmente as solteiras, tentavam esconder o seu entusiasmo que o brilho do olhar denunciava.
Então, como diz a cantiga, cumpria-se a lei e rapaz ou rapariga a quem ela saísse, tinha que percorrer a roda abraçando todos os participantes da desfolhada, novos ou velhos, casados ou solteiros. Era a oportunidade para os namorados trocarem um carinho na frente dos pais, coisa que de outro modo era absolutamente proibida naqueles tempos.



29.5.17

JOGO PERIGOSO - PARTE IX


David pôs de lado o catálogo da nova coleção que acabara de sair, e pôs-se de pé.
Alto, deveria rondar o metro e noventa, de um corpo bem musculado, e bastante moreno, de olhos cinzentos, a que as emoções escureciam tanto,   que quase pareciam negros. O cabelo negro, ligeiramente ondulado, cortado muito curto, o nariz retilíneo, o queixo quadrado. Era um daqueles homens que não passam despercebidos onde quer que se encontrem.  Foi até à janela, e por minutos pareceu interessado no movimento da rua.
Ouviu que batiam à porta e sem se voltar, mandou entrar.
A mulher que entrou, rondaria os quarenta e cinco anos. Era alta, loira e vestia rigorosamente de acordo com o seu lugar de secretária, de um homem que dirigia um dos negócios mais florescentes do momento. A moda feminina.
Voltou-se
- Que se passa, Rita? Não tinha dado ordens para não me interromperes?
- Desculpa, mas a Glória, não aceitou a tua ordem. Está no meu gabinete, e diz que nem que durma aqui, não se vai embora sem que a recebas.
Fez uma careta de aborrecimento.
- Fá-la esperar mais meia hora. Inventa uma desculpa qualquer. Pode ser que acabe por desistir.
Com a confiança adquirida ao longo dos muitos anos que era sua secretária, Rita, sorriu
- Não acredito. Mas farei os possíveis, chefe.
Ele arqueou a sobrancelha e o seu olhar escureceu. Ela sabia que ele não gostava quando lhe chamava chefe.
- Pronto, não te zangues, saio já.
E saiu fechando a porta. Ele esboçou um sorriso. Gostava dela. Era sua secretária desde que ele começara o negócio, num pequeno armazém, quando não era nem um décimo do que é hoje. A sua experiência, fora uma grande ajuda, para o jovem com a cabeça cheia de sonhos, e uma vontade férrea de triunfar, que ele era na altura. E tinha-o conseguido. Hoje, além da fábrica de confecções, tinha ações noutras empresas, e a ideia de continuar a expandir os seus interesses, tinha-o levado a adquirir ao amigo a metade da fábrica de tecelagem. Claro que era seu desejo acabar por ficar com a fábrica na totalidade. Pensava fazer uma boa oferta à jovem. Pensara que ela, tal como o irmão estaria desejosa de vender. Surpreendera-o a garra da jovem. Enfrentara-o. E ele não estava habituado a que mulher alguma o enfrentasse. Antes pelo contrário. Estava habituado a ter que dispensá-las com mais ou menos custo, quando começavam a aborrecê-lo. Como pensava fazer agora com aquela que aguardava na sala.



24.5.17

JOGO PERIGOSO - PARTE III


Quando o pai morreu, já havia mais de um ano que Daniela estava à frente da empresa. O irmão desistira da sua ideia de ir para África por causa da saúde precária do seu progenitor. Mas quando ele partiu, voltou à ideia de deixar tudo e ir para África.
Uns meses antes tinha realmente tentado vender-lhe a sua parte da empresa. Ela recusara pensando que assim mantinha o irmão por perto. Era o único familiar que tinha, a mãe morrera ainda eles eram pequenos, e o pai fora pai e mãe dos dois. Daniela casara aos vinte e quatro anos completamente apaixonada. Mas para o marido, uma mulher apaixonada não chegava. Ele queria perpetuar-se na descendência. Ela não engravidava. Então começou a andar de médico em médico, de tratamento em tratamento, num calvário que durou quatro longos anos, ao fim dos quais todos os médicos eram unanimes em dizer que ela era estéril, e que o casal deveria procurar a adoção, como solução para o seu desejo de serem pais. O problema foi que Felipe não queria ser pai adotivo. Ele queria ser pai biológico. E assim resolveu pedir-lhe o divórcio, descartando-a como coisa sem préstimo.
Daniela ficou arrasada. Sofreu a desilusão, chorou a morte dos seus sonhos. Chorou dia e noite tudo o que havia para chorar. E depois levantou a cabeça e decidiu levar a vida pra frente. Dedicou-se inteiramente à empresa. Tinha trinta anos quando o pai adoeceu e deixou tudo nas suas mãos.
Um ano mais tarde o pai morreu deixando a empresa em quotas iguais para os dois filhos. E ela assumiu a direção e continuou o trabalho do pai, enquanto o irmão continuava a exercer a profissão, de médico. A medicina, e os seus doentes era tudo o que lhe interessava. Não se importou. Mergulhava no trabalho, era uma boa forma de esquecer a sua tragédia pessoal, e a sua descrença nos homens e no amor.
Uns meses atrás, o irmão tentara vender-lhe a sua parte do negócio. Precisava dinheiro para ir para África e montar um pequeno consultório, onde pudesse atender os mais necessitados.
Ela não levara muito a sério a proposta e tentara dissuadi-lo dessa ideia. Desde aí nunca mais soubera dele, até aquela manhã, quando o advogado do novo sócio a procurou com toda a documentação relativa à transação. 

24.3.17

CASAMENTO POR PROCURAÇÃO - PARTE XXVII


Lembram-se da crónica feminina? Pois é, procurei uma noiva de 1979, e olhem o que encontrei.




EPÍLOGO

Três anos depois o casal está estabelecido em Aveiro. Quim tinha ajudado os pais, e sogros, na recuperação das velhas casas de família, para lhes dar uma vida de maior conforto, mas a aldeia era demasiado pequena para os seus sonhos. Ele queria montar um bom restaurante, numa cidade,  mas ao mesmo tempo, queria uma zona relativamente perto da aldeia, de modo a que os pais e sogros, pudessem ter uma certa relação de proximidade com os netos.
Dentro desses parâmetros surgiram dois nomes. Aveiro e Viseu. Estudadas as características das duas cidades, o casal optou por Aveiro, pois tinha, segundo a sua lógica, mais condições para atrair o turismo, pela beleza dos seus canais. E passados três anos, o Restaurante Tipico da Beira, é um grande sucesso. 
Catarina tem sete anos e já está na escola, Maria tem dois anos e é o encanto da irmã, pais e avós.
Mas naquele dia o casal está na aldeia. E é Setembro de novo.
Sofia, está em casa da mãe, no seu antigo quarto de solteira, às voltas com um vestido de noiva.  

Fim


Elvira Carvalho

3.3.17

CASAMENTO POR PROCURAÇÃO - PARTE III


Aviso a quem me reconhecer. A foto é minha só porque eu casei no mesmo ano da protagonista. A estória não tem nada a ver comigo.





Agora, passados quase dez anos, o rapaz decidira casar. E queria fazê-lo com uma mulher da terra. Escreveu aos pais, dando conta dos seus desejos.
O pai dele, era amigo do pai de Sofia, e fez-lhe saber que gostaria da rapariga para nora. E quando o pai lhe falou nessa possibilidade, ela só quis saber, se era para ir viver com o marido, ou se tinha que aguardar na aldeia pelo seu regresso. Quando o pai lhe disse que era para ir para França, aceitou na hora. 
Ia fazer vinte anos, tinha a cabeça cheia de sonhos e a alma presa à submissão do regime de então que tirava às mulheres todos os direitos que não fossem o de procriar para manter a espécie. E mesmo com os filhos, eles só eram realmente seus enquanto estavam no ventre materno, porque uma vez paridos, era o pai que detinha sobre ele, todos os direitos.