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13.3.23

CICATRIZES DA ALMA - PARTE XXIX

 

O tempo que passou no Hospital, não foi só de cirurgias e tratamentos. Foi também, depois que recuperou a consciência, de muita reflexão, sobre a sua vida passada e futura, embora principalmente se interrogasse, sobre que futuro podia haver para ele, se realmente não fosse apenas o uso das pernas que tinha perdido. Ele podia aprender a viver numa cadeira de rodas, mas não conseguia pensar em viver o resto da vida sexualmente morto.  

Quando recebeu alta hospitalar, recusou o encaminhamento direto para a fisioterapia de reabilitação e refugiou-se na quinta, para desespero dos pais e do tio, que não parava de lhe mandar enfermeiras, com quem ele era deliberadamente mal-educado, para que o deixassem em paz. A penúltima enfermeira que o tio lhe trouxera, era uma mulher de rara beleza, que podia sem desprimor adornar a capa de qualquer revista de moda. Porém, ela era uma prova viva, daquilo que ele tinha perdido com aquela maldita explosão. Por isso a mandara embora imediatamente.

Como médico, sabia que estava deprimido e sabia também que estava num ponto critico da sua vida. Pela frente tinha dois caminhos. Ou aceitava o que pudesse acontecer, e lutava para que fosse o melhor, ou simplesmente desistia, entrava numa depressão grave que acabaria certamente no suicídio. Sim, ele sabia isso, mas precisava de algo que lhe desse o empurrão para entrar no caminho certo, pois nessa manhã, sentira que estava a um passo, de entrar na via da autodestruição.

Mas então o tio aparecera com outra enfermeira. Como é que ele dissera que ela se chamava? À sim, Anabela. Pois, esta era diferente das outras. Embora tivesse a certeza de que o tio a tinha advertido para o seu mau génio, ela não o olhou com pena, nem como se ele fosse um monstro. Ela olhou-o como se ele não fosse um inútil, mas uma pessoa normal e com firmeza mostrou-lhe que ali mandava ela e fizesse ele o que fizesse não conseguiria amedrontá-la.

Em vez de se exasperar, Tiago ficou curioso. Onde seria que o tio a tinha ido buscar? E quanto tempo, ela seria capaz de manter aquela pose? Será que ia medir forças, com ele, dia a dia? Quando anoiteceu, sem ter voltado a vê-la, surpreendeu-se, por, pela primeira vez, depois que saiu do hospital, ter levado a tarde a pensar noutra coisa, que não o futuro negro que o aguardava. Não esperava voltar a vê-la antes da manhã seguinte. Mas eis ela que voltara surpreendê-lo.

Dez minutos depois, Anabela voltou a entrar no quarto. Poisou o jarro e o copo sobre a mesa e disse:

-Pronto aqui tem a sua água. Vai tomar algum medicamento? Antiálgico, ansiolítico, ou quer que lhe traga um chá?

- Não, obrigado.

Ela retirou a bacia que levou para a casa de banho. Depois dobrou a toalha e guardou-a no espaço por baixo da gaveta, na mesa de apoio.

-Devia tentar dormir. Uma boa noite de descanso, vai ajudá-lo amanhã com a dureza dos tratamentos, - disse dirigindo-se para a porta.

 

Nota: Não sei que se passa mas todos os dias tenho no spam uma série de comentários da Isa Sá, Francisco Manuel Carrajola Oliveira e Teresa Silva. Desde 2016 para cá. Tenho a certeza que estes comentários estiveram publicados na altura e não entendo porque carga de água agora aparecem no spam. E são sempre os mesmos. ontem foram 5 anteontem 7 e por aí fora.

21.5.21

COMEÇAR DE NOVO - PARTE IX

 


- E a mim, que sou seu tio e padrinho. Bem sei que não é a mesma coisa que um pai, mas sabes que estarei sempre aqui para ele, e para vocês. O Miguel precisa conviver com outras crianças da sua idade. Sabes tão bem como eu, como isso é importante para o seu desenvolvimento. E tu também precisas voltar ao trabalho o mais rápido possível. Não podes continuar fechada para a vida. Sei como amavas o Quim e que a sua perda te causou uma dor enorme.

Não te peço que o esqueças, sei que ele vai ter sempre um lugar no teu coração, mas não deixes que o ocupe na totalidade. Tens dois filhos amorosos, tens que pensar neles. Tenho a certeza que um coração generoso como o do Quim não ia gostar de te ver assim.

Ele ia gostar que seguisses com a tua vida. Meu Deus, Laura só tens trinta e dois anos, és uma mulher inteligente e linda. Tens que dar uma nova oportunidade ao amor e a ti própria. Mereces isso.

- Fala a voz da experiência, Gonçalo? Quantas oportunidades deste tu ao amor? A Inês Rodrigues andava atrás de ti, como cachorro atrás do dono, a João Guerreiro era capaz de correr uma maratona por ti e a Amália Roque vendia a alma ao diabo, por uma saída contigo? Deste uma oportunidade a alguma delas?

-Um médico não tem grande disponibilidade para relações, mana.

-Não me convences. Quando dava aulas no colégio tinha vários miúdos, cujos pais eram médicos. Mal estava o mundo se ser médico impedisse o homem ou a mulher que o é, de viver uma história de amor e formar uma família. Se assim fosse, decerto seria mais fácil encontrar uma agulha num palheiro do que um médico.

- Mãe, o Miguel cheira mal, - gritou Sara da sala.

- Está bem, a mãe já vai. Desculpa Gonçalo, tenho de ir. De qualquer modo já acabámos a refeição. Se tiveres de ir não levo a mal. Entre mudar a fralda ao Miguel e conseguir que adormeça, vou demorar um bocado.

-Não faz mal. Vou pôr a loiça na máquina e ver se a Sara precisa de ajuda com os TPCS. Como te disse, hoje só vou para o hospital à noite.

Meia hora mais tarde, com Miguel adormecido e Sara no quarto, a estudar para o teste do dia seguinte, os dois irmãos encontravam-se sentados na sala, quando Laura retomou a conversa anterior.

- Não acredito que um homem inteligente e bonito como tu, se sinta feliz sozinho. Estás em Lisboa há mais de dois anos, e passas o teu tempo onde?  Ou no hospital, ou aqui.  De certeza não há no hospital uma médica, ou uma enfermeira com quem gostasses de passar algumas horas fora do hospital?

- E diz isso quem passa o tempo metida em casa, e até as compras faz pela Internet?

- É diferente Gonçalo. Ir às compras com um bebé não é tarefa fácil.

- Acredito. Mas diz-me, quantas vezes vais ao parque com ele? Não devias aproveitar o tempo em que a Sara está na escola para o fazeres? O teu desgosto, não pode estar a atrasar o desenvolvimento do teu filho. Procura uma creche e pelo menos aí ele aprende a conviver com outras crianças.

- Palavra que ainda um dia, descubro como o fazes?

-O quê?

- Cada vez que tento falar da vida que levas, dás um jeito de falares da minha, e não responderes.

-Prometo que da próxima vez, não o faço, se quando o Miguel acordar, formos os quatro ao parque.


3.3.21

CASAMENTO POR PROCURAÇÃO - PARTE V

  


E dava gosto vê-los, tão sérios, tão compenetrados da solenidade em que se inseriam.
Sofia seguia a procissão, rezando com fervor a Nossa Senhora, pedindo proteção para a nova e desconhecida vida que a esperava, ao mesmo tempo que sentia já no peito um pouco de saudade.

No dia seguinte, entrou no avião com o coração apertado. 
Nunca sonhara andar de avião, e sinceramente sentia um certo receio. 

Considerava que o comboio era o transporte mais seguro e gostaria de ter feito assim a viagem. Era longa, teria mais tempo para se preparar para o encontro com o marido. Mas ele quisera que ela fosse de avião, fizera a reserva e mandara o bilhete e agora ali estava ela, o coração apertado, as pernas a tremer e chamando-se a si própria palerma, pelo medo que sentia.

A viagem foi rápida. Durante ela, olhou várias vezes a foto que o marido lhe tinha enviado antes do casamento, memorizando cada traço, a fim de saber reconhecê-lo no aeroporto. Ela não era boa fisionomista, mas tinham trocado fotografias antes do casamento, e esperava que o marido, fosse melhor que ela nesse aspeto, ou correriam o risco de passarem um pelo outro e não se reconhecerem.

Apesar dos seus medos, não foi difícil localizá-lo, mal desembarcou.
Quim era um homem bonito. Alto, magro, cabelo e olhos castanhos.
No rosto moreno, sobressaía o seu queixo quadrado, as sobrancelhas cerradas e a boca carnuda. Bem diferente do adolescente que ela conhecera em miúda.

Enquanto ele se aproximava, passou-lhe pela cabeça uma interrogação.
 “Como é que se saúda um desconhecido, que os papéis dizem ser o nosso marido?”
Não teve que esperar muito para saber.
-Olá, - ele saudou-a com um breve beijo no rosto. – Fizeste boa viagem?
- Sim. Com um pouco de receio, não via a hora de me sentir em terra firme, - disse ela com um tímido sorriso.
Ele agarrou na mala, deu-lhe o braço e disse:
- Vamos. Deves estar cansada.

20.11.20

CILADAS DA VIDA - PARTE LXI

 


- Porque embora eu espere viver muitos anos, para desfrutar da família que vamos criar, ninguém sabe o dia de amanhã, “para morrer, basta estar vivo” como costumava dizer a falecida dona Hortense, mãe da Olga. E eu quero que se me acontecer alguma coisa, tu e os meninos estejam legalmente protegidos pelo casamento, e sobretudo que eles não sejam considerados bastardos. Também quero que me prometas, que se me acontecer alguma coisa, lhe dirás sempre que  eles foram concebidos com muito amor, e não saibam nunca a maneira fria e mecânica, como foram gerados. Prometes-me isso?

-Prometo.

E aceitas que o casamento seja o mais rápido possível?

-Visto por esse ângulo sim, muito embora  me custe a entender que penses nisso. Afinal de contas és um homem jovem e saudável.

-Aos vinte anos era mais jovem e também me julgava saudável e sabes o que aconteceu. Claro que eu espero viver ainda muitos anos, mas sempre ouvi dizer que mais vale prevenir do que remediar. Mas, deixemos de lado pensamentos tristes e diz-me. Como sonhaste o teu casamento?

- Nunca sonhei que me casaria a não ser na adolescência, e nessa altura,  penso que como todas as jovens, sonhava com um casamento de princesa. Depois cresci e a vida se encarregou de me mostrar que os príncipes só existiam nas histórias infantis. Na vida real, os homens estavam mais para sapos, do que para príncipes. Desculpa…

-Não tens que pedir desculpa, não me sinto nem uma coisa, nem outra. Quero que saibas, que devido à minha situação profissional, sou um homem que está habituado a tomar todas as decisões. A ser sempre eu a decidir, o que se faz e o que não se faz.  Sei que aquilo que eu quero e penso, não tem de ser forçosamente aquilo que tu pensas e queres. Então promete-me, que sempre que isso acontecer mo dirás. Para que cheguemos a bom porto, sem  que tenhas que te anular, em função do que eu penso ou desejo. Esclarecido este ponto, vou dizer-te o que pensei em relação ao nosso casamento. Com a certeza de que mudarei, aquilo que não te agrade. 

Pensei que dado o teu estado, podemos realizar uma cerimónia íntima, aqui mesmo, lá fora no átrio, que é um espaço bonito. Poderás escolher o vestido e tudo o mais que precisares pela Internet, e a Olga ou a Inês poderão tratar do assunto. Ou, o que eu penso ser bem mais prático, eu telefono para uma loja da especialidade e eles mandam alguém com vários modelos para escolheres e experimentares, até porque dada essa barriguinha,  decerto terão que fazer alguns ajustes no modelo que escolheres. 

Convidaríamos os padrinhos e alguns familiares deles;  como por exemplo, Helena, a noiva do meu irmão, e Sandra a tua enfermeira, ou as três se preferires. Do teu lado creio que também não são muitas pessoas.

- A Inês e família, incluindo os pais dela, pois já te falei, do quanto os pais dela, têm sido importantes para mim.

- Claro que sim. Depois da cerimónia, teríamos aqui uma pequena comemoração.  Após o nascimento dos bebés, poderemos então realizar o teu casamento de sonho,  uma cerimónia na Igreja, e uma festa num hotel, para alguns dos meus melhores clientes e colaboradores. E até fazer uma festa no refeitório para todos os outros empregados.

 A lua-de-mel, é que é mais complicado, acredito que nem eu, nem tu, vamos querer viajar e deixar três bebés ao cuidado de amas; e uma lua de mel com três bebés e três amas, no mínimo seria muito estranho.  De modo que penso que a lua de mel terá que ser protelada por um ano ou dois, até que os meninos estejam mais crescidos e depois quem sabe, podemos deixá-los com a Olga e as amas. Estás de acordo?

- Sim - disse ela, recostando-se e procurando mudar a posição do corpo.

- Meu Deus estás cansada. Vem, - disse estendendo-lhe a mão para a ajudar a levantar - se. Tens que te deitar um pouco, esqueci que as emoções também cansam. Mais logo ao jantar acabamos a conversa.

Abriu a porta e logo Sandra saiu da sala e se preparou para acompanhar Teresa ao quarto.

20.3.20

DIVIDA DE JOGO - PARTE XIII


Uma lágrima desceu silenciosa, até desaparecer no canto da sua boca. Ele estendeu a mão e apertou a dela.
- Que é lá isso? Uma mulher de coragem, não chora. Levanta a cabeça, sorri, e vai em frente. És ainda uma menina, Eva. Não pareces mais velha que a minha sobrinha Isabella, e ela só tem dezasseis anos. Tens uma vida pela frente. Queres um conselho? Tira essas alianças do dedo. Esquece que foste casada, e prepara-te para desfrutar o que a vida ainda tem para te dar.
- Falar é fácil. Mas seguir em frente quando tudo à nossa volta ruiu, é muito mais difícil. Como posso não me inquietar, se não sei o que me vai acontecer quando passarem os seis meses e deixar esta casa? Sem o amparo de pai ou mãe, o que me resta? Voltar para o orfanato?
- Daqui por seis meses, “cara mia”? Quem sabe o que pode acontecer até lá. Vive o dia-a-dia, desfruta o presente e esquece as angústias a longo prazo. Em seis meses pode acontecer um terramoto, cair um meteorito, acabar o mundo.  Olha, porque não vamos amanhã até à outra banda, talvez Setúbal, ou Sesimbra, almoçamos por lá, aproveitamos um pouco de praia, ou simplesmente passeamos pela Arrábida? Não trabalhas ao Sábado, pois não?
- Não. Mas queres mesmo sair comigo?
- Porque não havia de querer? Não sou homem de fazer uma coisa quando quero outra. Ou, se preferires, podemos ficar por aqui, ir até Sintra, ou Ericeira. Dizem que é muito bonito, e provavelmente será melhor por causa do trânsito na ponte. Não sei, tu decides. Gostava de conhecer um pouco dos arredores de Lisboa. Até agora sempre que estive em Portugal, foi no norte, junto da família da minha mãe.
Sentia-se tentada. Afinal tirando a viagem em lua-de-mel, à Madeira, o que é que ela conhecia do país?
- Está bem. Deixemos a Arrábida e Sesimbra para outra altura. Prefiro ir a Sintra. Há muito tempo, que ando a pensar ir até lá.
Começou a passar a loiça por água e a metê-la na máquina. Ele levantou-se.
- Bom, só falta combinar a hora. Dez horas, é tarde?
- Por mim, qualquer hora é boa.
- Dez horas, então.
E saiu deixando-a só. Meia hora mais tarde saía de casa, despedindo-se com um simples até amanhã, deixando a jovem cada vez mais perplexa. Devia haver ali qualquer coisa que lhe escapava. Aquele homem, era demasiado bom para ser real. E ela já passara da idade em que acreditava no Pai Natal.


E o calendário assinala hoje o dia  da Felicidade. É uma ironia que o dia da felicidade, seja assinalado,  quando a doença grassa e mata por todo o lado.
E como hoje começa a Primavera, O meu desejo é que ela renove não só a natureza, mas também a própria vida, acabando com o maldito vírus.  


21.2.20

OS SONHOS DE GIL GASPAR - PARTE XLI


- Hoje é doze de Dezembro, - respondeu ela.
-A minha filha faz um ano no dia catorze. Devias vê-la. É o bebé mais bonito do mundo. Meu Deus, preciso ligar para casa. Devem estar numa aflição.
Com o coração mais triste que dia de chuva, mas esforçando-se por não dar parte de fraca, Luísa estendeu-lhe o telemóvel dizendo:
- Liga-lhes. Conta-lhes o que te sucedeu, mas por favor não lhes digas onde estás, nem lhes fales de mim.
- Porquê? – perguntou ele franzindo o sobrolho.
- És um homem famoso. Se a imprensa sabe, que estiveste aqui durante todos estes dias, vão acampar aí à porta, tirar fotografias e encher-me de perguntas. Vão encher as páginas de jornais, inventar histórias, espionar a minha vida, até ao berço, e eu não quero perder o meu sossego.
- A minha família tem o direito de saber que só estou vivo, graças a ti.
-Poderás contar-lhes tudo o que quiseres, quando voltares a casa, mas pede-lhes que não o revelem a ninguém. Tenho direito ao anonimato e não quero ver a minha privacidade  invadida.
- Respeitarei a tua vontade, fica descansada.
- Podes telefonar do quarto estarás mais à vontade. Pede à tua mulher que avise a polícia, para que interrompam as buscas no rio. Não se justificam os gastos de dinheiro público, em buscas desnecessárias.
- Vou telefonar à minha irmã. Sou viúvo.
-Lamento, - respondeu, virando-lhe as costas, embora no íntimo tivesse gostado de saber que era um homem livre, que não tinha uma esposa à sua espera. Saiu da sala e foi para a cozinha. Meteu a loiça suja do almoço na máquina, e depois refugiou-se no seu atelier.
Estava desolada. Ela sabia que não podia ter-se apaixonado por ele. Era um desconhecido, podia até ser casado, a sua razão avisara-a todos os dias, mas o seu coração, não lhe dera ouvidos.
"Não se domina um coração sedento de amor." - murmurou para si mesma.
- Luísa!
- Estou aqui no atelier, - respondeu apresando-se a secar as lágrimas.
- Estás triste – disse estendendo-lhe o telemóvel. - Pensei que ficavas feliz por eu ter recuperado a memória.
- E é claro que fiquei. Mas habituei-me à tua companhia, vou sentir saudades.
Ele pegou-lhe nas mãos e puxou-as fazendo-a levantar-se. Abraçou-a.
-Antes mesmo de ter recuperado a memória, já tínhamos combinado esta manhã que eu partia hoje. As razões porque parto agora são totalmente diferentes das que te expus esta manhã, porque  agora sei, que não há nada nem ninguém que nos impeça de ter uma relação, se os teus sentimentos forem tão fortes quanto os meus. É verdade que nos conhecemos há poucos dias, mas sinto-me como se te conhecesse desde sempre. Também é verdade que não sou só. Tenho uma filha que amo de todo o coração e que terás de saber, se és capaz de  aceitar e amar, como a primeira dos nossos filhos, se me aceitares a mim. Conhecendo a generosidade dos teus sentimentos, acredito que a amarás como merece. Mas também sei, que os muitos anos que vives em solidão, podem confundir o teu coração, pelo que a minha ausência servirá para conheceres a força daquilo que sentes.

4.1.20

QUANDO OS ALCATRUZES DESCEM AO FUNDO DO POÇO



A minha avó costumava dizer que a vida era como uma nora com os seus alcatruzes. Ora estava cá em cima ora lá no fundo. E que a sabedoria estava em festejar quando se estava nos píncaros e aceitar com alegria quando se estava no fundo porque a partir dali era sempre a subir.
O  alcatruz da minha vida, desceu o ano passado até ao fundo, com o meu problema nos olhos e as três cirurgias que tive de fazer, a tendinite no ombro direito que me impediu de mexer o braço durante algum tempo, os AVC, do meu cunhado em Maio e do meu marido em Julho, a queda da minha sobrinha, que sofre de Esclerose Múltipla e fraturou bacia e colo do fémur, o que a obrigou a internamento e cirurgia, e a morte de quatro amigos que me eram muito queridos. Um ano de muito sofrimento,  que levou os alcatruzes da minha vida até ao fundo do poço. Mas tal como dizia a minha avó eles começaram a subir,  depois do meio do ano. A cirurgia da minha sobrinha correu bem e ela já recuperou a pouca mobilidade que tinha anteriormente, o meu marido, recuperou muito bem, apenas com um mês de internamento, tivemos a alegria do nascimento de mais uma neta; e o meu cunhado também está a recuperar embora esteja longe de conseguir fazer uma vida normal, sem ajuda. Espero e desejo que o transplante de córnea me dê alguma visão no olho esquerdo, até porque tem dias que quase não consigo ler, escrever, ou estar  no pc, porque o olho direito põe-se vermelho, começa a chorar e a arder e só estou bem com os olhos fechados.
Essa é também a razão porque eu não comento como merecem os vossos artigos.
Termino agradecendo a compreensão e apoio que me dedicaram ao longo de todo o ano.
Que Deus vos abençoe.

    

12.11.19

INSÓNIA.

Reedição                                                  

                                             INSÓNIA

A noite vai alta.

No céu, sem nuvens, as estrelas observam curiosas. Num prédio igual a tantos outros, alguém abre lentamente uma janela. Angustiada a figura masculina,  interpõe-se por momentos, entre a luz da rua, e as sombras do quarto. Perpassam-lhe pela memória os acontecimentos daquele sábado. Como se estivesse no cinema, assiste ao filme da sua vida. Na verdade, ela, a Vida nunca fora fácil para ele. Tudo o que era e o que tinha arrancara dela à força.
O tempo passa, o filme chega ao fim. O sono não veio. Um carro passou rápido, quebrando por momentos o silêncio quase religioso em que a noite mergulhara. Abanando a cabeça, como quem sacode pensamentos dolorosos, o homem deu meia volta e afastou-se da janela. Um raio de luar, veio qual amante atrevido, pousar no corpo da mulher, que nua, na cama, dorme docemente...
Como atraído por um íman, o homem  olha-a. E sobressalta-se. Como se só naquele momento desse pela presença feminina. Ou talvez quem sabe, vê-la assim, nua, banhada pelos raios lunares, qual deusa adormecida, tivesse despertado o Amor, que as preocupações diárias, tinha sepultado no seu subconsciente. A paixão incendiou-lhe o peito, o desejo adormeceu-lhe as preocupações.
Naquele momento deixou de existir o mundo lá fora. Nada além daquele quarto, daquela mulher, e do amor que sentia por ela lhe importava. Ansioso, caminhou para a cama. As suas mãos, frenéticas perderam-se naquele corpo tão conhecido, reinventando carícias, ansiando perder-se nele.
A mulher acordou. Soltou um gemido, e enlaçou o corpo masculino. Não sabia que horas eram, mas que importava isso? O momento era aquele. E deixou-se submergir no mar de paixão, que a envolvia.
Pela janela, a lua enlaçou os dois amantes, como protegendo aquele Amor.




Fim

Enquanto eu ando às voltas com os sucessivos problemas de saúde continuam por aqui as reedições. Aos que já conhecem peço desculpa



8.8.19

LONGA TRAVESSIA - PARTE XIX






Nessa noite, enquanto deitava o menino, pensou que se esquecera de avisar Rui, que na semana seguinte entrava de férias. Desde que entrara na firma, sempre deixara metade das suas férias para o fim do ano. Aquela era a época de menos trabalho, e para ela era importante pois o filho entrava de férias e não tinha ninguém de família na cidade, onde deixá-lo. Aquelas férias estavam marcadas desde o princípio do ano. De qualquer modo, a lei diz que em caso de necessidade, as férias podem sofrer alteração e com a restruturação da empresa, isso podia acontecer.
Mal o filho adormeceu, telefonou à amiga.
- Luísa, esqueci-me de avisar o Rui que entro de férias segunda- feira. Crês que vai haver problema?
- Caramba Tê, devias tê-lo feito. Esta tarde, ele disse que no ritmo em que estão as coisas, tudo estará pronto na próxima semana, o mais tardar quinta-feira e depois vai dar férias coletivas ao pessoal até ao início do ano. E tu vais faltar segunda-feira sem avisar?
-São as minhas férias. Estão marcadas desde o início do ano.
- Eu sei. Mas as condicionantes são outras, devias ter-lhe dito.
- Mas não posso ir. Não tenho com quem deixar o Martim.
- O Tiago pode levá-lo para a oficina. O André vai com ele e adora o ambiente da oficina. Pelo menos na segunda, até falares com ele. Depois logo vês.
- E o Tiago não se importa?
- Não mulher. Até vai agradecer. Os dois brincam juntos e deixam-no mais livre para trabalhar. E depois se entrarmos de férias quinta-feira, são poucos dias.
- Obrigada. Não sei que seria da minha vida sem ti.
Disse-lho a meio da manhã de segunda-feira, depois de terem falado com os dois trabalhadores, que tinham em opção para o lugar de chefe da secção B.
- Era para não ter vindo trabalhar. Oficialmente estou de férias até ao fim do ano.
- Como assim? Não me disseste nada.
- Por isso, estou aqui. Esqueci-me de te avisar na sexta-feira.
- Não podes ir de férias agora. Estamos a trabalhar em velocidade supersônica para acabar tudo dentro de três dias. Depois vai tudo de férias,
- Mas assim eu fico prejudicada. Não gozei as férias para as deixar para o fim do ano. São as minhas férias, não és tu quem mas dá.
- Sabes que te daria muito mais do que umas férias, não sabes? – Disse fitando-a muito sério. 
- Ela corou e baixou o olhar incapaz de ver as promessas que os olhos masculinos exibiam
Procurando aparentar uma serenidade, que não existia, disse:
- Voltemos ao trabalho. Já decidiste?




26.3.19

UM HOMEM DIVIDIDO - PARTE IX




-Não pai, não insistas. Não vou casar com um homem que não conheço, para te salvar da ruína.
Não te preocupa o facto de deixares a tua família na miséria?- perguntou o progenitor, levantando a voz alterado.
-Tenho algum dinheiro. Não muito, mas dá para recomeçares a tua vida. Ainda és um homem novo. Deixa que execute a hipoteca.
- Estás doida? Que sei eu fazer que não seja gerir a empresa?
- E pelos vistos não muito bem. Antigamente era uma empresa próspera, - retorquiu a jovem. - E não me venhas falar em crise. Esse homem começou com uma pequena imobiliária e em poucos anos é a maior do país.
- “Esse homem”, como tu dizes está determinado a deixar-me na miséria. Se eu fosse sozinho não me importaria muito, mas tenho mulher e um filho menor que precisam de mim.
Paula sentiu vontade de lhe dizer que o facto de ele ter bastante dinheiro quando ela era criança, não contribuiu em nada para que tivesse sido um pai atento e amoroso. Ela teria preferido menos brinquedos e mais carinho do pai. Mas pensou que não era hora de recriminações e limitou-se a perguntar.
-E o que tu lhe fizeste para que ele te queira arruinar?
- Pensas que é preciso ter feito alguma coisa para isso? Esta gente não precisa de motivo para que pise todos os que estão abaixo deles e se apoderem daquilo que podem. Ou talvez quem sabe, se tenha apaixonado por ti e pense que é a melhor maneira de te vir a ter como esposa.
- Não sejas ridículo, nem me tentes enganar. Se esse homem quisesse uma mulher bastava estalar os dedos. Com a sua posição social, não lhe faltarão candidatas. Também não se pode ter apaixonado por mim, nem sequer nos conhecemos. E na remota hipótese de que isso tivesse acontecido, não usaria de tal subterfúgio. Trata-se como é evidente de uma vingança, por alguma coisa que lhe fizeste. Eu sei e tu também sabes embora nunca venhas a admiti-lo. De qualquer modo a minha decisão está tomada. Não contes comigo para isso. E agora se me dás licença, tenho muito trabalho para fazer. Porque embora o que eu faço, não tenha qualquer valor para ti, eu trabalho e muito. Dá um beijo por mim à Cidália e ao Miguel. Diz-lhe que no Domingo o vou buscar para ir ao cinema.
Dito isto sentou-se à secretária e começou a ler o documento que tinha na frente. Jorge permaneceu uns momentos calado, visivelmente desconcertado. Depois dirigiu-se para a saída, pôs a mão no puxador da porta, mas antes de a abrir, virou-se e disse:
- Pensa bem, filha. Não aconteça que mais tarde te arrependas, e carregues com o peso dos remorsos a vida inteira. Garanto-te que não é nada agradável, viver com isso.
Paula levantou os olhos e olhou o pai em silêncio, Depois sem pronunciar palavra voltou a concentrar-se nos papéis que tinha na sua frente.
Jorge rodou sobre os calcanhares, abriu a porta e saiu fechando-a com estrondo.

NOTÍCIAS
. Estive esta tarde a fazer exames médicos por causa do olho e as notícias não são de modo algum aquelas que eu gostaria. A retina mantém-se colada, mas a córnea continua muito maltratada. O Professor, diz que eu tenho um suporte de silicone que será para retirar numa nova cirurgia, se a córnea recuperar o suficiente para colocar a lente. Se isso não acontecer, só com transplante da mesma posso ter esperanças de voltar a ver como deve ser. Entretanto como há apenas um mês que fiz a segunda cirurgia, vamos ter esperanças que a córnea recupere até ao dia 14 de Maio, altura em que vou voltar a fazer exames e à consulta. Entretanto mandou parar com as gotas de antibiótico que estava a fazer e mudou para gotas de cortisona.


30.11.18

UMA HISTÓRIA DE AMOR - PARTE XX


Durante um longo minuto, o silêncio caiu sobre eles. Por fim Ana falou.
- Eu queria sentir esse amor. Queria que me ensinasses a ser feliz, e a fazer-te feliz. Mas tenho medo Simão. Um medo irracional, que me sufoca.
- E de que tens medo, querida?
- De não ser capaz de corresponder às tuas expectativas. De não conseguir fazer amor contigo, porque de repente me lembro, que somos irmãos.
- Tu sabes que não é verdade, Ana.
 – Por favor, não me interrompas. Deixa que te exponha todos os meus receios. Supõe que não dá certo. Vou perder-te para sempre, magoar os nossos pais, e isso aterroriza-me.
Com imensa ternura, contornou os olhos brilhantes, numa carícia suave.
- Já chega. Não te atormentes. Eu não tenho medo. Acredito em nós, e na força do amor. Vieste ter comigo. Sabes o que sinto e o que desejo. Só tens que decidir se vieste para ficar, e viver este amor que tenho para te oferecer, ou se te vais embora agora, e dás outro rumo à tua vida. 
Era o momento derradeiro, a última hipótese de virar costas e procurar um caminho que lhe parecesse mais seguro, ou fechar os olhos e saltar o abismo em que o medo se transformara. Lembrou-se da mãe. “Às vezes é preciso correr riscos”
Prendeu-lhe o rosto entre as mãos, e  disse baixinho:
- Fico.
Ele engoliu em seco. A emoção era um garrote que lhe sufocava a garganta. Apertou o corpo tremente nos braços, e começou a beijá-la. Lentamente, como quem saboreia um doce, foi-lhe beijando os olhos, e o rosto, até aflorar os lábios femininos. As suas mãos pareciam ter vida própria. Percorriam-lhe os braços, as costas, infiltravam-se sob a blusa, em suaves caricias que a enlouqueciam.
O beijo, tornou-se mais intenso, atrevido e urgente. Simão concentrava toda a sua energia, todo o seu amor,  toda  a sua experiência e conhecimento do corpo feminino, na tarefa única, de a levar pelos secretos labirintos da paixão, até à mágica saída, na apoteose final.
As roupas desapareceram, como por magia, e os corpos livres, uniam-se, na mais famosa dança de todos os tempos, num reconhecimento que vinha desde os primórdios da humanidade.
Mais tarde, apaziguada a loucura que os envolvera, num gesto cheio de ternura, ela tocou com a ponta dos dedos, o rosto masculino. Ele segurou-lhe a mão e beijou-os.  Simão, era um homem experiente, sabia reconhecer quando a mulher que tinha nos braços, estava com ele na entrega sublime do amor. Ana tinha estado. Tinha-se entregado de corpo  e alma. Ele sentiu-o. Mas precisava ouvi-lo da sua boca. Saber até que ponto ela tomara consciência do que acabara de acontecer, saber se conseguira matar todos os seus fantasmas. 
- E, então, querida?- Perguntou num sussurro 
- Amo-te.
- Sem medos, nem fantasmas?
- Sim
-Tens a certeza?
- Nunca tive tanta certeza de nada na minha vida. É… incrível. Sei que é um lugar-comum, mas não me ocorre outra maneira de to dizer. Sinto-me a mulher mais feliz do mundo.

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26.11.18

UMA HISTÓRIA DE AMOR - PARTE XIV


Aproximou-se perigosamente dele.  
-Que se passa contigo, Simão? O que foi que eu te fiz? Porque me odeias? Desde menina, sempre foste o meu irmão preferido. Aquele em quem confiava de olhos fechados. Depois já adolescente, eras o meu ídolo. Ficava tão feliz quando nos ias buscar à escola e nos trazias para casa. Imaginas o que choramos, eu e Matilde quando foste para Paris? O quanto nos sentimos desamparadas sem ti?
A Marta não. A Marta era muito extrovertida, tinha muitos amigos, uma legião de admiradores, primeiro na escola, depois na Universidade. Ela não deve ter sentido a tua falta. Eu e a Matilde éramos diferentes. Mais tímidas. Tínhamos um certo receio de nos juntarmos aos outros. Tu eras a nossa tábua de salvação. E deixaste-nos à deriva.
As últimas palavras foram como um lamento. Simão amaldiçoou-se em silêncio. Queria consolá-la e não o podia fazer. Se lhe tocasse, não ia resistir. 
Ela revoltou-se. Porque não dizia nada? Sentiu vontade de lhe bater:
- Porquê, Simão? Porque o fizeste? E porque o fazias hoje? Fala pelo amor de Deus. Desde quando começaste a odiar-me?
- Eu não te odeio.- A sua voz soou rouca. Pelo esforço em se conter, ou pela emoção? Ele não sabia. Do que tinha a certeza é que estava utilizando todas as suas forças para resistir à tentação de a apertar nos braços e a beijar até aquietar a angústia que lhe amargurava o coração.
- Não? Então o que é? Desprezas-me? É isso? Porquê?
“Meu Deus fá-la calar. Não aguento mais” – implorou ele mentalmente
- Não sei de onde tiraste essas ideias absurdas, Ana. Porque não vives a tua vida e me deixas em paz?
- Vês? O Simão de antigamente, nunca me falaria assim.
Ia começar a chorar. E ele não ia conseguir conter-se.
- Por Deus Ana. Deixa de remoer o passado. O tempo não passa incólume por ninguém. Todos mudamos.
Semicerrou os olhos. Não queria que ela surpreendesse aquilo que ele teimava em esconder.
De súbito ela voltou-se para a janela. Estava cansada. E muito triste. A sua vida era um desastre. Precisava de se ausentar rapidamente. Ver outras terras, conhecer outras gentes. Para não sentir aquele terrível vazio no peito.
Deixou escapar um soluço.

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20.11.18

UMA HISTÓRIA DE AMOR - PARTE II






Foi direta à sala, onde sabia que encontraria a mãe a ler. Era o seu lugar favorito. Sentou-se a seu lado. Francisca fechou o livro e olhou para ela na expectativa. Não fez perguntas, e Ana teve a certeza de que a mãe sabia o que lhe ia dizer. A mãe sempre sabia o que se passava com ela:
- Mãe, já não vai haver noivado, muito menos casamento. Acabei tudo com o Paulo.
Se esperava que a mãe dissesse alguma coisa, enganou-se. Francisca levantou a mão, acariciou o rosto da filha, e esperou.
-Eu queria, mãe. Começo a desejar estabilizar a minha vida emocional. Ter a minha casa, marido, filhos. Pensei que com o Paulo, isso ia acontecer. Mas não é assim. Na intimidade, a chama não se acendeu, senti-me estranha nos seus braços. E não quero um casamento assim. Não me basta ter um homem apaixonado ao meu lado. Eu quero alguém a quem eu ame com intensidade.
A mãe abraçou-a como fazia quando ela era criança. Ana deitou  a cabeça no seu regaço, e deu largas à sua desilusão, deixando correr as lágrimas. Francisca sentiu um nó na garganta. Apesar dos anos, tinha bem presente o que fora o seu casamento com Jorge. Sabia bem o que era rolar na cama, depois de ter feito amor, pensando que devia estar feliz, mas sentindo apenas que cumprira uma obrigação, que a envergonhava e lhe deixava um aperto no peito que não a deixava adormecer. De forma nenhuma queria isso para a sua menina. Dos seus filhos, Ana era aquela que mais se identificava com ela. A mais sensível. Sentindo que se acalmara, afastou-a um pouco e olhou-a com ternura.
- Se assim é, fizeste bem, Ana. Um casamento é uma coisa muito séria. Bem sei que na atualidade, o divórcio está na ordem do dia. Mas acarreta sofrimento. Deixa cicatrizes. Já contaste ao pai?
- Eu sabia que me ias entender. No fundo, o que eu queria, era um casamento como o vosso. Essa felicidade que transportam no olhar, esse amor visível em cada gesto. Foi sempre assim, ou isso aprende-se com o tempo?
Francisca sorriu: Continuava a ser uma linda mulher apesar de já ter ultrapassado os cinquenta anos.
-No amor, nada se aprende Ana. Ele é espontâneo e avassalador. O tempo não lhe acrescenta, nem tira nada. Somos nós, com as nossas atitudes que o engrandecemos ou o matamos. Compara-o a uma fogueira. Quando começa, as labaredas são altas, o calor intenso. Mas se não fazes nada, à medida que a lenha vai ardendo, as labaredas vão diminuindo de tamanho, o calor vai enfraquecendo até que da fogueira inicial só restam cinzas.
- E é impossível uma fogueira arder só de um lado, - murmurou a jovem desalentada. Para depois acrescentar.
-Contei ao pai, e ficou furioso. Tenho a sensação de que sentia vontade de me bater.
- Está preocupado contigo. É natural. Não te preocupes. No fundo o que nós queremos é que sejas feliz. Estás com muito trabalho? Devias pedir-lhe que te desse umas férias. Precisas espairecer. Porque não fazes uma viagem?
- Agora? E a vossa festa de aniversário?
- Faltam cinco dias. Podias, aproveitar para pôr em ordem algum assunto que tenhas pendente e partir depois da festa.
-Não tinha pensado nisso. Obrigado mãe, fazes com que os meus grandes problemas se tornem menores e menos dolorosos.
Francisca sorriu quando a jovem se inclinou para a beijar murmurando:
-És um anjo.

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1.9.18

FOLHA EM BRANCO - PARTE XL






 Entretanto no  estúdio, Miguel acendeu um cigarro. Estava nervoso. Não conseguia deixar de pensar que em breve, Mariana ia embora, da sua casa. E na mudança que isso ia trazer à sua vida. Ele podia voltar à sua antiga vida de  boémio, mas sentia-se cansado e começava a questionar-se sobre a finalidade dessa vida.
Ultimamente já nem as saídas à noite lhe interessavam. A busca do prazer, pelo prazer, já o cansava. "Estou a ficar velho" ,- pensava.
A estadia da jovem lá em casa, tinha sido uma lufada de ar fresco na sua vida. Por causa dela, contratara Luísa, e passara a fazer as refeições em casa, coisa que não fazia, desde que os pais morreram. Ela enchia a casa, com seu jeito suave, os seus silêncios, os seus sorrisos. Aquecia-a com a sua presença. Agora a casa ia ficar vazia. E fria.
Começava a pesar-lhe a solidão. Tinha-se afeiçoado à jovem, gostava dela como se fosse seu pai. Mas não era, e portanto era natural que a jovem quisesse voltar à sua casa, e viver a sua vida longe dele. Mas doía-lhe. E como doía.
Como seria a vida dela, quando se fosse embora? Teria o pai, deixado à jovem, meios suficientes para a sua sobrevivência?  E se assim não fosse? Do que ia  ela viver, se não tinha mais ninguém no mundo? Talvez tivesse 
 que abandonar os estudos e ir trabalhar. Mas em quê, se não tinha experiência de coisa nenhuma? E depois cada vez havia menos empregos e mais desempregados. Por outro lado, não lhe agradava que abandonasse os estudos. Ele  podia pagar-lhos. Mas, ela aceitaria? Uma coisa era a jovem desmemoriada, carente  e totalmente dependente dele. Outra bem diferente a jovem que ele tivera à pouco, na sua frente. A segurança com que ela dissera. “Deixemos isso para depois das festas” quando ele sugerira que teriam de ir ao Algarve, era prova evidente que a jovem se libertara e  já não precisava dele.
Estava irritado, inquieto.
Não sabia o que se passava com ele, mas ficava sempre assim, quando pensava que um dia a jovem ia recuperar a memória e partir.  
Ouviu as jovens conversarem em baixo, sinal de que já tinham regressado. Relaxou. Ficava mais calmo, quando a sabia por perto.
Na tela, exposta no cavalete, a jovem, deitada na relva, parecia querer perguntar-lhe alguma coisa.

6.8.18

FOLHA EM BRANCO- PARTE VIII


                                      


Enquanto a jovem arrumava a cozinha, na sala, Miguel foi testando as telas e juntando as que já estavam secas, tentando libertar um pouco o espaço. Nunca se tinha preocupado com isso, pois nunca levava ninguém lá a casa, e ele próprio pouco parava por lá. Agora era diferente.
Tinha de sair. Esquecera de comprar roupa para a jovem dormir. 
Se ela quisesse sair, podiam ir às compras.
Minutos depois apareceu na cozinha.
- Quando acabar, podemos sair. Quem sabe se recorda de alguma coisa algum lugar.
- Não,- quase gritou a jovem. Depois mais calma acrescentou:
Se não se importa, eu prefiro ficar. Pelo menos hoje. Tenho medo do que posso encontrar. Por favor!
-Você é que sabe. Mas não pode encerrar-se num casulo e ficar a hibernar. Mais cedo ou mais tarde terá que enfrentar o seu medo, e procurar encontrar o seu passado.
- Eu sei. Mas como fazer isso se não me lembro de nada?
- Pode encontrar alguém que a conheça. Que lhe diga quem é.
- E terei que viver segundo o que me dizem, sem saber se é verdade ou mentira? O senhor mesmo, disse que não me conhece e não sabe quem sou. Mas, eu estava sozinha consigo, quando acordei. Como fui lá parar? Quem me levou? E como é que o senhor não viu nada?
- O que lhe disse é verdade, mas parece-me que não confia em mim. A única coisa que posso acrescentar, talvez sirva para a pôr mais confusa ainda. Por isso não lho disse antes. Mas talvez o devesse ter feito. Você preparava-se para saltar da falésia. Eu impedi que o fizesse, desmaiou e quando acordou foi o que sabe. Não há mais nada que eu saiba, ou que esteja a esconder.
Ante a palidez da jovem, calou-se, ajudou-a a sentar-se e preparou-lhe um copo de água com açúcar.
-Eu… eu, ia matar-me? - Balbuciou incrédula.
- A menos que tivesse algum paraquedas escondido, -brincou Miguel tentando desanuviar a tensão da revelação.
- Mas porquê? O que é que eu fiz de tão errado, para querer acabar com a vida?
- As vezes, não fazemos nada. A vida é alegria e dor, e às vezes a dor é tão grande que acaba com a própria existência. Um dia saberemos o que aconteceu, não se martirize mais.
 - O senhor é um anjo.
-Longe disso, menina, longe disso. E por favor, o meu nome é Miguel.
A jovem levantou para ele os olhos rasos de água, e murmurou
- Obrigado Miguel.