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30.8.18

FOLHA BRANCA - PARTE XXXVII


Acordou cerca das dez. Curiosamente sentia-se bem. Como se a catarse que se seguiu à recuperação da memória, tivesse expurgado do seu espírito, toda a culpa que não tivera forças para carregar, e a levara a tentar o suicídio.
Enquanto tomava o duche matinal, recordava o que acontecera durante a noite. Como acordou assustada com a trovoada, e como de repente o som do trovão, já não era da trovoada, mas do choque entre os dois carros, e como num momento a morte do pai e tudo o que se seguiu, lhe surgira nítido na memória. 
Era como se estivesse vendo um filme, no qual, ela era a protagonista. Lembrou dos longos meses que passou no hospital, primeiro  em choque, depois perdida entre pesadelos e ataques de pânico. De quando teve alta. Dos dois dias que passou quase por inteiro no cemitério, junto da campa do pai. Da boleia que a levou até Faro. E da outra que a deixou em Lagos. Da decisão de não voltar para casa, onde sabia que não ia encontrar o pai, do  peso da culpa, do medo da solidão, do hostel onde deixara as suas coisas, naquela tarde em que procurara uma falésia mais escondida para acabar com o sofrimento, que a devorava por dentro.
Vestiu umas calças de lã cor de mel, e um camisolão branco. Prendeu a farta cabeleira, numa trança e olhou-se ao espelho. Gostou de se ver. Olhava com firmeza, a figura que o espelho lhe devolvia, sem medos, nem mudas interrogações. Tinha largado a pesada carga que há meses carregava. E agora?
Agora tinha que retomar a vida, que ficara lá atrás em suspenso.
Aprender a viver sem o pai, e sem culpas. Sentia que as sessões de psicoterapia a iam ajudar a ultrapassar, e quem sabe esquecer, aqueles meses em que a sua mente fora uma folha em branco.
Não. Esquecer, não. Esquecer, seria olvidar Miguel, a sua presença, o seu carinho, o seu riso, o seu cheiro. Os dias passados juntos, os passeios, os conselhos. Tudo o que tinha gravado para sempre no coração. Decididamente, o que mais lhe doía neste momento, já não era a ausência do pai, mas a eminente separação de Miguel.
E como doía pensar nisso.
Aos poucos enevoaram-se-lhe os olhos e uma lágrima deslizou pela face.
Porque tinha de ser assim? Era como se a vida estivesse sempre montando armadilhas no seu caminho. Porque tinha de se separar das pessoas que amava?








9 comentários:

Jaime Portela disse...

Infelizmente, a vida é assim mesmo.
Uma história intensa e muito interessante. Para além de bem contada. Estou a gostar imenso.
Elvira, bom fim de semana.
Beijo.

chica disse...

Sentimento bem claro o dela👏👏👏bjs chica

Rui disse...

Esclarecida a situação de momento com a recuperação da memória falta-nos saber "quem era ela" antes do acidente !
O que fazia, como vivia, se tinha mais família e amigos que não a puderam ainda contactar por lhe terem perdido o rastro,... muita coisa haverá ainda para se saber.
De uma coisa me parece estar certo : o amor entre ela e o Miguel irá manifestar-se, daqui em diante, não só como uma simpatia mútua, mas sim um verdadeiro e duradouro amor e casamento ! :)

Abraço :)

Larissa Santos disse...

Penso que o Miguel não a vai abandonar. Está muito bom:))

Bjos
Votos de uma óptima noite

noname disse...

Tanto este, como o episódio anterior, tiveram uma forte componente emotiva. Gostei muito, vamos ver o que a Elvira nos mostra em seguida :-)

Beijo

esteban lob disse...

Lo reflejas muy bien, Elvira. La vida se pasa tendiéndonos trampas en el camino. En el de ella y en el de todos. Lo principal es que en cada caso, sepamos superar esas trampas.

Cariño austral.

Gaja Maria disse...

Agora que já sabemos o que aconteceu, vamos ver como vão ultrapassar o impasse :)

Ailime disse...

Boa noite Elvira,
Intensa e bela a história.
Um capítulo que já nos elucidou sobre o que se passou com a jovem. Como deve ter sofrido.
Agora Miguel, seu Anjo da Guarda, não a abandonará.
Beijinhos e ótimo fim de semana.
Ailime

Pedro Coimbra disse...

Será que vai haver separação??
Abraço, bfds