GRAÇA
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Passou por mim. Ia a chorar e nem me viu. Estranhei. Conhecemos-nos desde sempre e sempre nos falamos com a cordialidade duma amizade cimentada nos anos. Interpelei-a:
- O que aconteceu Graça?
-Foi o meu filho, -respondeu num soluço.
Peguei-lhe no braço e perguntei:
- Queres falar?
Ela não respondeu. Mas eu percebi que sim.
-Vem comigo. Vamos tomar um café.
Enquanto nos dirigíamos ao café, recordei desde quando conhecia Maria da Graça. Desde que me lembrava, sempre a conhecera. Somos mais ou menos da mesma idade. Nos anos cinquenta os pais dela vinham todos os Invernos trabalhar para a Seca do Bacalhau. Era um trabalho sazonal, mas vinha muita gente do norte do país, para trabalhar na safra. Chegavam nos últimos dias de Setembro, quando os barcos bacalhoeiros regressavam da Terra Nova e da Gronelândia, e partiam em fins de Março, quando os navios voltavam para a pesca. Maria da Graça vinha com os pais. E brincava comigo e com as outras crianças cujos pais trabalhavam na Seca. Todos os anos era a mesma coisa até que fez os 14 anos. Depois já vinha para trabalhar.
A Graça -eu sempre a chamei assim -nunca foi uma moça muito bonita. Mas era uma jovem vistosa. Alta, forte, bem proporcionada, mas com um rosto um tanto rude e uma voz demasiado forte, o que lhe dava um ar um tanto ou quanto masculino. Boa moça, boa amiga, não tinha muita sorte com os namorados. Talvez que eles se assustassem com ela. Os homens gostam de mulheres de aspecto frágil, porque isso os faz sentir mais fortes, e lhes dá a oportunidade de se armarem em protetores. Com a Graça, isso era impossível. Com 1,75m de altura e 72Kg de peso, assustava a maioria dos rapazes casadoiros.
Tinha dezanove anos quando conheceu Armindo. Armindo era um bom rapaz, trabalhador, e ainda mais rude que ela. Tinha começado ainda menino no monte a guardar gado e não sabia uma letra do tamanho dum comboio como costumava dizer. Mas encantou-se com ela e daí ao casório, lá na igreja da aldeia, foi só o tempo de correrem os "papéis". Até porque ele já tinha ido às "sortes" e estava prestes a começar o serviço militar.
Pouco mais de um ano de casado, morria numa emboscada em Cabinda, enquanto a mulher segurava uma gravidez de sete meses, apesar do desgosto.
Quando o filho nasceu, Graça voltou à vida anterior. A vir fazer a safra do Bacalhau, até porque agora precisava criar o filho, e se a vida era muito difícil naquela época, por cá, lá na aldeia ainda era pior. Pouco tempo depois da morte do marido, Graça perdeu a mãe, e dois anos mais tarde o pai também se foi. Nessa altura ela decidiu que não ia mais lá para a aldeia. Quando o Bacalhau acabasse havia de arranjar uma casa ou duas para trabalhar a dias. Queria que o filho fosse à escola e estudasse. E se bem o pensou, logo o pôs em prática no fim da safra.
Começou por ajudar no trabalho do campo, numa das quintas da Seca, e assim conseguiu ficar a morar com os caseiros, e não pagar renda. Trabalhava na Seca do Bacalhau desde que os navios chegavam até que voltavam a abalar, e depois na quinta, até que voltavam a chegar. Assim foi ficando por aqui, e criando o filho que mandou para a escola logo que fez sete anos.
Tinha o filho dez anos, quando se juntou com aquele que ela diz ter sido o homem da sua vida. Fernando era um vizinho que conhecia há muito. Casado, pai de dois filhos, bom marido, bom pai. Graça admirava-o pelas qualidades que todos lhe reconheciam. Um dia porém, a mulher de Fernando enrabichou-se, por um mariola, com pinta de artista e lábia de bom malandro. E de tal forma se apaixonou que desapareceu com ele deixando para trás o marido e os dois filhos. Com pena do vizinho, Graça, começou a tratar-lhe da casa e dos filhos. Mas a pena e a admiração que sentia depressa se transformaram num sentimento muito mais forte. Como Fernando era casado e naquela altura não havia divórcio, juntaram os trapinhos como se costuma dizer. E formaram uma nova família, mas Graça não conseguiu ter mais filhos. Anos mais tarde, depois da revolução de Abril, a mulher de Fernando apareceu a pedir o divórcio, e os filhos.
E então ela pôde realizar o sonho de voltar a casar, embora apenas no registo. Mas nessa altura já Maria da Graça tinha um novo e mais grave problema na sua vida. O filho com 18 anos tinha-se ligado a uns amigos esquisitos, abandonara os estudos, não trabalhava, cada vez que saía, voltava estranho, agressivo e depois levava a dormir um dia ou dois seguidos. Droga, começaram a murmurar as vizinhas. O rapaz metia-se na droga. E a mãe levava os dias a chorar, e à noite mostrava um sorriso forçado ao marido, para não o apoquentar. Uma noite, estava ela na cozinha a "fazer horas" a ver se o filho chegava, quando o marido gritou por ela do quarto. O grito da morte, pois quando ela chegou ao quarto estava caído, meio atravessado na cama, como se tivesse tentado levantar-se e não conseguisse. E morto. Maria da Graça, nem queria acreditar. Nem deu pela chegada do delegado de saúde, nem pela ambulância que lhe levou o marido para autópsia. Era como se o espírito se tivesse ausentado do corpo.
Mais tarde soube que tinha sido um ataque cardíaco fulminante. Maria da Graça nunca mais foi a mesma mulher. Mudou de casa, perdeu a alegria, tornou-se uma mulher seca, amarga. Pouca gente sabe que se chama Maria da Graça. Toda a gente a conhece por Maria.
Chegamos ao café e sentando-nos numa mesa mais afastada. Perguntei-lhe então o que se passava.
- Tu sabes -respondeu-me, - que o meu filho é um drogado. Ninguém sabe o que eu tenho sofrido com ele. Por causa da droga roubava-me todo o dinheiro, batia-me, levou-me as coisas de valor de casa e vendeu tudo. Para sobreviver fiz de tudo, até cheguei a ir aos contentores do lixo em busca de comida. Depois arranjei cartões de jogo para vender. Ele ficava-me com a pensão e com o dinheiro que eu ganhava a lavar escadas. E eu ia-me governando com o dinheiro dos cartões. Até ao dia que ele descobriu. E levou-me o dinheiro que eu tinha com a ameaça de que me ia denunciar à polícia por vender jogo clandestino. Desisti. Por medo dele, um dia, mudei a fechadura da porta. Quando chegou fez um escarcéu para entrar e eu fingi que não estava em casa. A ver se ele se ia embora. E sabes o que ele fez? Deitou-se no chão e ali ficou caladinho.
Quando passado largo tempo abri a porta para ir ao pão, ele agarrou-me as pernas e com um puxão forte fez-me cair. E depois bateu-me. Eu gritei, gritei e os vizinhos chamaram a polícia. Ele foi preso e da esquadra, meteram-no numa casa de recuperação. Esteve lá um ano. Chegou anteontem. Pousou as coisas em casa, saiu e chegou tarde da noite, drogado. Está a dormir há quase dois dias e eu tremo de pensar que ele vai acordar a qualquer momento.
Que Deus me perdoe, mas penso que era uma sorte se ele morresse.
Olhou para mim e disse:
- Ficaste escandalizada? Achas que sou um monstro?
Sem palavras que servissem de consolo, apertei-lhe o braço e abanei negativamente a cabeça.
reedição
Elvira Carvalho
Porque em Portugal há uma média de 40 mulheres que morrem todos os anos vitimas de violência doméstica, porque todos os anos aumenta em algumas dezenas o número das que ficam estropiadas, física ou psicologicamente para o resto da vida.