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10.7.17

ROSA - PARTE XII



                     O posto médico da Seca do Bacalhau
                            A foto é minha.

De Setembro a Março, Rosa trabalhava na Seca do Bacalhau. Trabalho duro e não muito certo pois, quando o Inverno era rigoroso e não se podia pôr o bacalhau na rua para secar, não havia trabalho. Às vezes, ficava-se uma semana inteira sem ganhar um tostão. Mas, ainda assim, vivia-se melhor que no Verão, pois sempre eram dois a ganhar. E depois era a oportunidade dela ver gente da sua aldeia e de outras aldeias vizinhas, de rir, cantar e esquecer um pouco a miséria que tinha em casa. Ali, naquele mundo maioritariamente feminino, não havia segredos. Todas sabiam quando alguma levava “porrada” do marido, quando não tinham que comer ou quando punham “um filho a estudar”.a)  Muitas vezes, sem dinheiro para procurarem uma parteira, faziam – no elas próprias sem quaisquer condições. Por causa disso, não raras vezes, alguma morria com uma infecção. Algumas, trabalhavam na seca com os maridos, outras, os maridos trabalhavam nas fábricas de cortiça, ou na C.U.F. mas todas viviam irmanadas na mesma vida difícil e contudo aparentavam uma alegria difícil de explicar, pois passavam muitas horas de trabalho sempre cantando, ou contando anedotas como se o trabalho fosse leve e a vida lhes sorrisse lá fora. Então quando tocava a lavar o bacalhau nas grandes tinas de água, que levavam seis mulheres de cada lado, era ouvi-las cantar o tempo todo, ora como um só coro de muitas vozes, ora desafiando-se umas às outras em quadras repentistas que pareciam não acabar nunca. Algumas faziam graça com a própria fome, como a Rosalina, que enfiava um dedo no meio do pão e comia à roda do dedo, dizendo que comia pão com chouriço, ou a Virgínia que dizia estar a almoçar um cozido à portuguesa, enquanto emborcava uma sopa deslavada.
Por esses dias, a Ti Urbana perguntou-lhe:
-Ó Rosa, tu já estás prenha outra vez, mulher?
- Não! - A resposta foi quase um grito. Pela sua saúde, não me diga isso, que me desgraça.
- Eu não te digo mas que estás é verdade. Basta olhar as tuas pernas. Ó mulher mas tu não tens juízo?
- Ai Ti ‘Urbana, se for verdade, tenho que dar um jeito. Não quero ter mais filhos. O meu Alberto ainda não fez os sete meses.
- Vai ao posto médico. Mas olha que eu nestas coisas nunca me engano.
Na Seca, havia um posto médico, com um enfermeiro, e às quintas-feiras ia lá um médico.
Nessa semana, Rosa foi ao médico que confirmou as palavras da Ti' Urbana .  Mais uma vez estava grávida!
Pediu ajuda a algumas mulheres mais velhas. Nunca fizera um aborto mas, desta vez, tinha que ser. Estava decidida a não ter mais filhos. Mas não tinha dinheiro para ir à parteira. A Adélia ensinou-lhe a fazer escalda-pés com grãos de mostarda. Fez durante três dias mas não resultou. Depois foi fazendo tudo o que as outras lhe diziam já ter feito até terminar por picar o útero com um talo de aipo até sangrar. "Resulta sempre", tinham-lhe dito. E resultou. Numa grande hemorragia, seguida de infecção, que a ia matando. Acabou numa sala de cirurgia, no hospital de Almada, onde sofreu uma histerectomia total.  "Caparam-na" como ela costumava dizer. E nunca mais engravidou.


Continua

a) pôr um filho a estudar, era na linguagem das mulheres da Seca, a designação para aborto, que nessa época em Portugal,  era ilegal e podia até dar cadeia.



14 comentários:

Cantinho da Gaiata disse...

Coitada da Rosa, por momentos pensei que ia morrer, uuufffaaaa!
Passando para ler esta linda história, podia ser mais umas linhitas,Elvira.
Beijinhos grande e boa noite.

AvoGi disse...

Estive a pôr-me ao corrente da Rosa... Tão real
Kis :=)

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
parece que tudo de mal lhe acontece . coitada da Rosa, que mais virá por aí !!
JAFR

Tintinaine disse...

Pobrete, alegrete, não era assim que se dizia?
Ou então, como diz a cantiga, quem canta seu mal espanta!

AFlores disse...

Histórias do passado, do presente e de sempre...
Boa semana, tudo de bom.

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Continuo a acompanhara a historia.
Um abraço e boa semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros

António Querido disse...

Esse pão com chouriço e o cozido à portuguesa, fez-me lembrar o meu almoço do passado dia 29, com os familiares à mesa a comerem leitão e eu a comer um caldo de poucos legumes triturados que me soube a leitão, vê-los a comer sobremesas deliciosas e eu a comer maçã cozida, enfim, coisas da vida.
O meu abraço

Edum@nes disse...

Semanas inteiras sem se ganhar um tostão. Quem sofria era o estômago, que todos os dias tinha de ser alimentado!
Ainda há por ai quem diga que esse tempo é que era bom? Quem não trabalhava não recebia carcanhol, e mantinham o bico calado! Hoje mesmo sem trabalharem recebem o subsídio de desemprego. Portanto, houve ou não houve melhoria nas condições de vida das populações em geral?

Tenha um bom dia amiga Elvira, um abraço,
Eduardo.

Anete disse...

Quanto desespero e a solução drástica para a pobre Rosa!
...Os sorrisos, brincadeiras nos trabalhos sempre aliviam as realidades...

Uma boa semana, Elvira. Bj

Os olhares da Gracinha! disse...

Abortar é uma decisão bem difícil e dolorosa!
Bj

Os olhares da Gracinha! disse...

Abortar é uma decisão bem difícil e dolorosa!
Bj

redonda disse...

Não sabia dessa designação, que histórias de vida mais difíceis a destas mulheres e que incrível conseguirem cantar e brincar, talvez por se apoiarem umas às outras


um beijinho

Rui disse...

Claro que sim ! Ilegal praticar aborto, mas pior que isso era a mortalidade quantas vezes provocada por isso, quando feito sem as mínimas condições, o que era mais que vulgar. Raramente havia dinheiro para o fazer com profissionais, que isso era caríssimo, até por ser proibido por lei ! :)
...Mas até há males que vêem por bem e neste caso, a estereotomia total acabou por ser um bem !

Berço do Mundo disse...

Bem dizia eu que ela ia acabar por resolver o assunto com outras mulheres, mas pensei que arranjasse uns chás para evitar e não para abortar.

P.S. Voltei para terminar a história da Rosa