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19.8.19

LONGA TRAVESSIA - PARTE XXVII






-Muitos anos mais tarde, vi estes numa sapataria, e comprei-os. São semelhantes embora de muito melhor qualidade. Acompanharam-me desde aí como um estímulo, para cumprir a jura que fizera a minha mãe naquele fatídico dia. Mas deixa que te conte tudo.
Os anos foram passando, eu ia crescendo e o ódio que sentia pelo meu pai ia crescendo comigo. Por volta dos dez anos, comecei a tentar enfrentá-lo sempre que ele batia na minha mãe. Consequência direta, foi que passamos a apanhar os dois. 
 Uma noite, tinha feito onze anos há poucos dias,  acordei com os seus gritos, e o choro da minha mãe. Saltei da cama e dirigi-me à cozinha. A mãe tentava proteger o rosto já ferido, de nova pancada. Tentando evitar que continuasse a bater-lhe arremeti contra ele. Como estava bêbado, desequilibrou-se, caiu para trás e bateu com a cabeça na esquina da mesa. Teve morte imediata. A minha mãe assumiu a culpa. Disse a toda a gente que foi ela e proibiu-me de dizer o contrário.
Foi presa, e eu só não fui parar a uma instituição estatal porque os meus tios me foram buscar.
Calou-se, a voz embargada pela emoção, o rosto pálido, todo o corpo terrivelmente tenso. Teresa sentia a dor dele, no seu próprio coração. 
 -Tivéssemos nós dinheiro para um bom advogado, e a minha mãe não teria sido presa. Teria aguardado julgamento em liberdade.  Afinal como o tribunal provou mais tarde, tratou-se de um acidente e em legítima defesa. Mas nós não tínhamos dinheiro para pagar um advogado e assim a mãe esteve em prisão preventiva até ao julgamento. 
Os meus tios coitados fizeram o melhor que podiam enquanto lá estive, mas tinham três filhos, que viam em mim,  uma boca mais a roubar o pouco que tinham. Percebes agora a minha ambição desmedida?
Com catorze anos comecei a trabalhar. E a estudar à noite. Foi uma época muito difícil, a mãe já estava doente. Nunca mais foi a mesma, depois que foi presa. Quase a terminar o secundário, tive que contratar uma pessoa para cuidar dela, e o dinheiro que ganhava não dava para tudo. Durante um ano, tive que interromper os estudos. Depois ela morreu, e voltei a estudar.
Quando nos conhecemos, já eu estava com a vida organizada. Compreendes porque nunca te falei de mim, nem deles?  Queria esquecer o passado e cumprir a jura que lhe fizera em menino, de ser um homem muito rico. Tinha já umas boas economias, além do trabalho no banco, fazia traduções para uma editora,como te deves lembrar. O que tu não sabias, é tinha feito algumas aplicações que me renderam um bom dinheiro, mas na minha louca corrida para a fortuna, o que tinha não me bastava. Queria mais, muito mais.
Quando me convidaste para ir conhecer os teus pais, e passar com eles o Natal, comecei a pensar que me estava a afastar do meu objetivo, e que se fosse contigo estava a assumir um compromisso que me impediria de cumprir o que me propunha. Queria libertar-me, mas não tinha coragem de te deixar. Então disse-te que fosses tu, e aproveitei a tua partida para te abandonar.  Hoje sei que foi uma cobardia, um ato digno do filho do meu pai.
Mas na altura estava cego de ambição. E decidi partir para a Inglaterra.




Notícias.
Hoje o marido vai recomeçar a fisioterapia. Graças a Deus ele está melhor, mas não tanto quanto gostaríamos, embora saibamos que estas recuperações nunca são tão rápidas como desejamos. O meu olho está aparentemente na mesma mas o braço está melhor. Já consigo fazer várias coisas sem aquela dor que me punha maluca.

11.7.17

ROSA - PARTE XV




Naquela manhã do dia 25 de Abril de 74, Rosa olhava-se no espelho e não se reconhecia. Apesar de não ter ainda cinquenta anos, Rosa estava cada dia mais velha, a face enrugada, os cabelos embranquecidos, o corpo magro e alquebrado, resultado de ser toda a vida, saco de pancada da própria vida. Pensava que já não tinha forças para se aguentar muito mais tempo. A sua família tinha-se desagregado.
Do marido, não sabia há muito, talvez estivesse preso, ou, quem sabe, tivesse morrido em qualquer prisão. As filhas casaram e embora não vivessem longe, estavam cada dia mais desligadas da casa materna, divididas entre o trabalho, o cuidarem da casa e dos filhos.
Dos dois rapazes mais novos, um conseguiu realizar o sonho de ser fuzileiro e encontrava-se num destacamento no Lungué-Bungo, no leste de Angola, enchendo de saudade e preocupação o seu coração de mãe. O outro, que era contra a guerra, fugira de salto para a França. Restava-lhe em casa um filho, cada dia mais doente, e uma filha adolescente.
Sacudiu a cabeça, como se quisesse abandonar todos os seus pesares, e dirigiu-se a casa do Sr. Doutor, onde ultimamente trabalhava a dias, sem sequer sonhar que no seu País estalara uma revolução que ia mudar toda a sua vida. Ela não sabia, mas a sua família não era muito diferente da maioria das famílias portuguesas pois, nessa altura, o País via-se sangrado da sua juventude. Uns partiam para a guerra do Ultramar, sem  nunca saber se voltavam, ou ficavam por lá, vítimas de uma mina ou de alguma bala emboscada. Outros fugiam para não serem obrigados a partir para uma guerra que não queriam nem entendiam.
Foi com surpresa e medo que Rosa ouviu da boca da patroa, a notícia da Revolução. Medo porque a "doutora"- era assim que ela gostava de ser tratada, embora o médico fosse o marido - lhe deu a entender que a revolução era muito má para o País e para eles, patrões, que talvez não pudessem continuar a dar-lhe trabalho. Rosa ficou muito preocupada. Se ficasse sem trabalho, como ia pôr comida na mesa? Mas quando chegou a casa, o filho explicou-lhe o que significava a revolução de uma maneira diferente. Falou-lhe do fim da guerra colonial, da abertura das prisões, do fim da PIDE, e do sonho dum País mais igualitário. E o seu coração sofrido encheu-se de esperança.
Dois dias mais tarde, quando Rosa chegou a casa, no fim de mais um dia de trabalho, teve uma grande surpresa ao encontrar o seu João. Muito magro, o cabelo todo branco e o ar macilento, em nada se parecia com o homem com quem casara. Apenas o brilho nos olhos encovados, lhe lembrava o João de antigamente. Apesar da alegria do reencontro, Rosa estava preocupada com a saúde do marido. E tinha razão, porque se ele recuperava aos poucos das mazelas físicas,  as psicológicas continuariam a persegui-lo durante muitos anos.
Dias depois, Rosa e João comemoravam pela primeira vez na sua vida o 1º de Maio em liberdade. E dois meses depois, podiam abraçar o filho António, que regressara da França, ao saber que o novo governo estava a negociar a independência das colónias e que, por isso, não teria que ir para a guerra.


Continua