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30.9.18

DESILUSÃO



DESILUSÃO


Quando eu tinha vinte anos
Sonhava construir,
Um mundo melhor
Com as minhas próprias mãos.

Queria acabar com a miséria
Abraçar a Felicidade.
Acabar com a guerra
Abraçar a Paz.
Estrangular a hipocrisia
Abraçar a Verdade.
Derrotar a opressão
Abraçar a Liberdade.
Sepultar o ódio
Abraçar o Amor.

Quando eu tinha vinte anos
O mundo era terra fértil
Onde plantava
Os sonhos dum mundo
Paradisíaco.


Agora que já passei dos setenta
Tenho as mãos estragadas
De tanta luta inglória.
Tenho os ombros curvados
Do peso das desilusões.
Os olhos sem brilho
De tanta lágrima derramada.
E o futuro cheio de pesadelos


E o mundo?
Esse continua a girar
Na roda
Da fome
Guerras
Drogas
Corrupção
hipocrisia.

E já não há sonhos que me valham!


29.9.18

OS AMANTES




Os amantes

Quando eles nasceram
uma rosa floriu
o mar serenou
suas mães sorriram.

Quando se encontraram
o sol brilhou
a vida encheu-se de cor 
e o amor nasceu.

Quando se amaram
o mundo parou
os pássaros cantaram. 
Os jardins floridos
encheram-se
de alegres crianças.

Hoje são velhinhos
mas nos corações
existem paixões
que o tempo não apagou.
São como incêndio
em dia de vento.

O rosto enrugado
as mãos deformadas
os olhos cansados
procuram-se
minuto a minuto
com o mesmo carinho.

Morreram um dia
e àquela hora
uma nuvem chorou.
Na aldeia esquecida
os sinos dobraram.

 Elvira Carvalho

28.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE XIV



Deixou-se cair na cadeira, e ocultou o rosto nas mãos. As palavras de Clara foram como um punhal que se lhe cravara no peito. Doera-lhe. É claro que ele amava os filhos. Não em demasia, ninguém ama demais, simplesmente porque não existe medida para o amor. Ou se existia, ele desconhecia. Mas que importava isso? Ele nunca soubera muito de amor, o que sabia, era que daria a sua vida por qualquer um deles, se necessário. Apesar disso, tinha a noção, de que só o seu amor não lhes bastaria. Ele sabia que decisão tomar, para salvar a vida dos seus homens, em caso de perigo eminente, mas não sabia como cuidar de uma criança no dia-a-dia. Ele seria capaz de prestar os primeiros socorros a um dos seus homens que fosse ferido, mas ficava sem ação, quando um dos seus filhos caía e se feria.  No quartel, diziam que ele era um homem frio, a quem nada nem ninguém fazia perder o controlo. Não era verdade. Quantas vezes, apertou os punhos, e cerrou os dentes para não gritar, o que lhe ia na alma?
Aprendera de menino a amordaçar a dor, cada vez que a madrasta mandava para o lixo um brinquedo, só porque reparara que ele gostava muito dele, cada vez que o pai se ausentava do país, e ela o atormentava. Ele aprendera a odiar, numa idade em que as crianças não devem conhecer outro sentimento, que não o amor. A ida para casa da avó materna, fora um alívio, mas também nela não encontrou o amor que o fizesse esquecer o que ficava para trás. A avó perdera o marido e a filha, no curto espaço de um ano, e desde aí fechara-se no seu mundo de sofrimento, recordações e saudade, alheando-se de tudo o que se passava à sua volta. Ricardo crescera assim num mundo inóspito, onde o único oásis era Antónia, a empregada da avó. Ela fora o único ser, que gostara verdadeiramente dele. Ela e o Farrusco, um S. Bernardo escanzelado, que aparecera um dia na quinta e que por lá ficara. Mais tarde, quando ingressara no Colégio Militar, regressara à casa paterna, mas Ricardo nunca tivera coragem de contar ao pai, o que a sua mulher lhe fazia, quando ele não estava por perto. Nem mesmo depois da morte dela, quando ele já tinha vinte anos. Para quê atormentar mais o pai, se o mal já estava feito e era irremediável?
Tendo compreendido o ciúme doentio da madrasta, Ricardo afastara-se gradualmente do pai. Deixou de procurar a sua companhia quando ambos estavam em casa, e procurou estar nela o menos tempo possível. Quando Irene morreu, ele e o pai eram pouco mais que dois conhecidos de ocasião. Talvez por isso, o pai não lhe tivesse contado, quando descobriu que era portador de um cancro no Pâncreas. E como ele se sentia melhor no quartel que em casa, só se apercebeu quando era demasiado tarde. O pai já tinha morrido há onze anos e ele ainda se culpava, por não ter estado presente quando o pai mais precisara dele.
Clara tinha razão. Ele tinha que repensar toda a sua vida. Afinal, acabara por fazer o mesmo que o seu pai. Pusera a vida e o futuro dos seus filhos nas mãos de uma desconhecida, querendo que ela os tratasse e cuidasse como filhos. E se ela fizesse com eles o que Irene, fizera com ele? É certo que o relatório do investigador, dizia que era pessoa estimada por todos e que cuidara do irmão como todo o desvelo, e fora isso que o levara a contratá-la. Mas o irmão era do seu sangue, os seus filhos não lhe eram nada.
Não, Clara não era como Irene. Se o fosse não lhe tinha dito tudo o que lhe dissera minutos antes. Ou diria? Ricardo nunca se sentira tão inseguro.
Sossegou-se ao pensar que Antónia lhe diria se alguma coisa corresse mal. Ela estava com ele, desde que a avó morrera e Ricardo herdara aquela quinta. Na altura, Alfredo o marido dela, trabalhava numa herdade vizinha, e a pequena quinta estava abandonada. Ricardo mandara construir uma casa mais pequena, um pouco afastada da principal, contratara Alfredo como caseiro, e os dois ficaram a viver ali.
Antónia tivera um filho que morreu de meningite com dois anos de idade. Depois disso, ou por impossibilidade, ou por vontade própria, não voltara a ser mãe. Mas o seu instinto maternal era muito forte. Fora o mais parecido com uma mãe que ele tivera.
Ela adorava os seus filhos e tinha a certeza de que lhe diria imediatamente se notasse algum comportamento impróprio de Clara.
Essa certeza, fazia com que partisse mais descansado. Antónia, era a única mulher no mundo em quem ele confiava.


Esta história volta Segunda-feira. E ontem foi dia de novos exames médicos. Resultados só  a 7 de Outubro. Bom fim-de-semana

27.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE XIII



- Ou seja, estás a pensar partir de novo para uma dessas missões?
- Tenho esta semana de licença pelo casamento. Devo partir para a  semana. Por isso era tão urgente o casamento.
-E amas, os teus filhos?
-Como te atreves a fazer semelhante pergunta, depois de tudo o que te contei? Não ficou claro o grande amor que lhes tenho?- Perguntou zangado
- Para mim, o que ficou claro, foi o grande amor que tens pela tua carreira. Por ela, tu vais deixá-los entregues a uma desconhecida, que tu compraste através de um casamento maluco, que em nenhum momento desejarias, não só porque não há entre nós nenhum sentimento, como porque pensas que todas as mulheres são falsas e traidoras, e não confias em nenhuma.
- É a segunda vez que censuras este casamento. Devo lembrar-te que não pareceste ter esses pruridos de consciência, quando assinaste o acordo. Ou será que já te arrependeste - perguntou fuzilando-a com o olhar.
- Tens razão,- respondeu. - Do mesmo modo que foste capaz de mentir, e de moveres todas as influências por amor da Soraia, eu também faria qualquer coisa por amor do Tiago. Até hipotecar os meus sonhos e abdicar da minha liberdade por quinze anos, abdicando até do sonho de qualquer mulher. O casamento e os filhos, contentando-me com o arremedo que me ofereceste. Mas isso não me impede de analisar a questão com objetividade. E de dizer o que penso, gostes ou não. Não me sentiria de bem com a minha consciência, se o não fizesse.
Pergunto-me o que direi aos teus filhos, quando o tempo passar e eles me perguntarem, porque o pai, não está presente nos seus aniversários, nas festinhas escolares, ou em qualquer outro momento que eles considerem importante nas suas vidas. E se perderes a vida numa dessas missões arriscadas? O que é que eu faço? Digo-lhes que o seu pai foi um herói, porque trocou os seus abraços, a sua companhia, e o seu amor,  em prol da carreira e das missões ao serviço da Pátria? E que vão receber uma medalha, que vai ser a partir desse dia, tudo o que poderão esperar do homem que devia amá-los e protegê-los? Não, não me respondas, garanto-te que nunca mais mencionarei este assunto, apenas pretendo que penses naquilo que são as verdadeiras prioridades da tua vida. 
E agora que já nos conhecemos um pouco melhor, vamos falar da educação das crianças. Uma vez que não pensas estar presente a maior parte do tempo, educá-las-ei livremente, como os educaria se fossem meus filhos biológicos, ou deixarás expressa uma linha de conduta que terei de seguir à risca?
- Que sejam educados, no amor e respeito pelos seus semelhantes, pela natureza, e pelos animais. Essa é a base de educação que quero para eles.
- Nada mais?
- Não. Acredito que farás o melhor por eles.
- Se me permites gostaria de te dizer que aproveites ao máximo o tempo que possas estar com eles até à partida. Eles precisam de ti – disse pondo-se de pé e dirigindo-se à saída. Ao chegar à porta, voltou-se e disse:
-O meu noivado com o Júlio terminou, quando ele me disse textualmente: “Após o casamento, o teu irmão terá que se desenrascar sozinho. Já não é uma criança, e nós não temos obrigação nenhuma de sustentá-lo. A nossa obrigação será com os filhos que vierem”. E sabes que mais? O casamento nunca foi, uma prioridade para mim. O meu irmão, sim!


ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE XII





Ricardo contara tudo isto, de pé junto à janela, de costas para ela.
Sentia uma mistura de vergonha e raiva, por se ter deixado enganar, duma maneira tão infantil. Tinha sido um idiota.
Clara era uma mulher muito sensível. Teve a noção exata de quanto ele devia estar a sofrer, e resolveu interrompê-lo.
- Fala-me de Soraia. Costuma ter pesadelos com o desta noite?
- Durante uns meses teve-os diariamente. Agora já não são tão frequentes- respondeu voltando-se por fim
-Que aconteceu com ela?
-A aldeia onde nasceu foi palco de um bárbaro assalto. Como já te disse tenho estado quase sempre em missões no estrangeiro pois já por duas vezes fui destacado para o quadro da NATO e também já estive ao serviço da ONU. Há dezoito meses numa missão no Mali, encontramos uma aldeia em cinzas. Todos os habitantes da aldeia tinham sido chacinados. Quando íamos embora, um dos meus homens disse ter ouvido um choro. Não acreditei que alguém pudesse ter escapado com vida daquele inferno, mas podia ser algum animal que caísse nalguma armadilha. Ordenei-lhes que se separassem em dois grupos, e fizessem uma batida pelos arredores.
 Eu mesmo parti à frente de um dos grupos, o capitão Santos comandava o outro.
 Foi um dos meus homens que me chamou a atenção para o ruído que se ouvia por trás de uns arbustos ali perto.  Ela estava aí num buraco encoberta pelos arbustos.  Não sei a idade exata que teria na altura, mas calculamos que devia andar pelos dois anos. Também não  sabemos como fora parar naquele buraco, se alguém a escondera ali, ou se ela própria se afastara e caíra no buraco. O facto é que isso lhe salvou a vida. Quando a encontramos estava suja, faminta e desidratada. Quando lhe peguei, ela agarrou-se ao meu pescoço, como quem se agarra à própria vida. Penso que deve ter tentado sair do buraco, mas aterrorizada pelas chamas, acabou escondendo-se de novo. Isto porque ela ficava aterrorizada cada vez que via uma chama, mesmo que fosse de um fósforo, quando algum dos rapazes acendia um cigarro. 
Levei-a para o hospital onde esteve quase um mês. Ia vê-la todos os dias, e era tal a sua alegria, quando eu chegava que até o pessoal do hospital ficava impressionado. Deixei-me encantar por ela. Deves ter reparado que é praticamente da mesma idade do Bernardo. Um dia o pediatra disse-me que ela ia ter alta e iriam entregá-la às autoridades, a fim de ir para algum orfanato. Fiquei de rastos. Tinha criado com ela um vínculo de amor, não podia deixá-la para trás, abandonada à sua sorte. Perguntei ao médico, o que podia fazer para a tirar do país. "Nada - respondeu-me ele.- Só poderia fazer alguma coisa se fosse sua filha".  " E que tenho de fazer para declarar que é minha filha - perguntei".  "Com uma boa maquia, pode-se arranjar um registo de nascimento falso - respondeu-me". 
Dinheiro nunca foi problema para mim.  Não serei um multimilionário, mas tenho uma fortuna considerável. Disse-lhe que pagaria o que fosse preciso e ele mesmo me apresentou ao funcionário que arranjou o documento, inventando um nome e uma data de nascimento para ela, bem como um nome de mãe, falecida e claro o meu nome como pai. 
Portugal não tem embaixada no Mali. É o embaixador de Portugal no Senegal, que a partir da embaixada em Dakar resolve os casos de diplomacia no Mali. De posse do documento, recorri a ele, solicitando a sua mediação, para a trazer comigo. E assim  a menina foi-me entregue, e quando a missão terminou, trouxe-a comigo sem problemas já que toda a documentação dela diz que é minha filha e que a mãe já faleceu. 
- Está contigo há muito tempo?
-Como disse encontrei-a há ano e meio, e desde então estive sempre por perto, mas aqui, nesta casa, está há catorze meses. Por causa deles, estou há mais de um ano em Portugal, arranjando desculpas várias, movendo influências, para não sair  em nenhuma missão. Não podia ausentar-me e deixá-los com a Antónia. Mesmo sabendo que ela os adora. 
Tanto ela como o marido, têm uma certa idade e nenhum laço de parentesco com eles. A Segurança Social cair-me-ia em cima, e poderia perdê-los. 
Então Francisco, o meu advogado, deu-me a ideia do casamento,  para lhes dar uma mãe, que os protegesse quando eu me ausentar.

Respondendo à pergunta:
O que ando a ler? "A soma dos dias" de Isabel Allende. A seguir vou ler o último livro de Carlos Correia,  "Momentos para inventar o amor"
Filmes não vejo há bastante tempo.

26.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE XI



“Longe da vista, longe do coração” costuma dizer o povo e neste caso assim aconteceu. Ela cansou-se e trocou-me por um vizinho.
Não sei o que ficou mais ferido. Se o coração, ou o orgulho, mas o certo é que a minha fé nas mulheres que já tinha ficado abalada por causa da minha madrasta, ruiu por completo.
Durante os anos seguintes, tentei esquecer, voltando a dedicar-me de corpo e alma à minha profissão, oferecendo-me como voluntário para tudo quanto era missão no exterior. 
Há quatro anos, de volta a Portugal, fui ao casamento de um amigo, também militar. Na altura, andava meio deprimido, já tinha ultrapassado os trinta anos e era o único do grupo que ainda não tinha formado família.
Durante a festa do casamento, bebi demais, e depois quando a festa acabou, decidi ir acabar a noite num bar. Lembro-me de me ter sentado a beber, junto de uma ruiva muito atraente, mas não me recordo de nada mais, a não ser, de ter acordado no dia seguinte, num quarto de um hotel com a tal ruiva.
Um mês depois, ela procurou-me no quartel. Apresentou-me umas análises e disse-me que a engravidei naquela noite, e queria dinheiro para fazer um aborto. Não deixei que o fizesse. Em vez disso propus-lhe casamento. Mais tarde viria a descobrir, que nunca lhe passou pela cabeça abortar, só o disse para que eu tomasse a atitude que tomei. Parece que um homem embriagado, nas mãos de uma mulher experiente não despe só o corpo, desnuda também a alma. E Marisa tinha experiência de sobra. Foi um casamento rápido. Tão rápido como o nosso, embora muito diferente. Apesar de não amar Marisa, pelo bem-estar do meu filho, estava disposto a fazer tudo para que a união resultasse. Depois disso acabaram-se as missões, queria estar perto dela quando o bebé nascesse. 
 Porém quando Marisa estava no sexto mês, tive que substituir um oficial que fora ferido em serviço no Kosovo. Parti pois, e um mês mais tarde, recebi uma carta anunciando o nascimento do Bernardo. Nascera prematuro aos sete meses. Quase dois anos depois, vim a descobrir que me traía, e que utilizava o meu dinheiro para sustentar o seu amante. Expulsei-a de casa, afirmando que com as provas que tinha ela não só não veria um tostão com o divórcio, como ia requerer a guarda do meu filho. Ela riu-se na minha cara e afirmou que o Bernardo não era meu filho, e que mo tiraria quando quisesse.
Fiquei de rastos. Amo aquele menino mais do que a mim mesmo. Apesar de não ser parecido comigo, Bernardo era muito parecido com a mãe, e há milhares de crianças que se parecem apenas com um dos progenitores. Por isso não quis acreditar que tinha sido enganado, mas um teste de ADN provou que o tinha sido. Mais tarde, o médico dele, respondendo a uma preocupação minha, pelo facto do Bernardo ser prematuro, disse-me que ele, era um bebé normal, nunca fora prematuro. Fui duplamente enganado. Marisa já estava grávida de dois meses naquela noite, no bar. O pai da criança devia tê-la abandonado e ela andava à caça de um papalvo que a sustentasse a ela e ao filho.
No entanto esta descoberta, não beliscou em nada o sentimento que eu tinha pelo menino, e vivi na angústia constante de o perder, até ler no jornal a notícia daquele acidente. 
Segundo a mesma, um grupo de amigos, realizou uma festa num barco. Calcula-se que durante a festa, muito álcool tenha sido ingerido pelos participantes. Perto da meia-noite, foram surpreendidos por uma tempestade. Três participantes caíram à água e apesar de todos os esforços, os seus corpos só foram resgatados três dias depois. Um deles era o de Marisa.


25.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE X



 Horas mais tarde, Ricardo encontrava-se na biblioteca, que também utilizava como escritório, quando a jovem entrou.
- Bom, agora que as crianças dormem, podemos ter a tal conversa que deveríamos ter tido antes do casamento. Ainda me surpreendo como podemos chegar a esta situação, sem que eu saiba nada de ti e das crianças. Não é justo, tanto mais que tenho a certeza o relatório do teu detetive deve ter trazido até a data em que me caiu o primeiro dente.
-Foi bem detalhado, mas não chegou a tanto - disse ele com um esgar que pretendia ser um sorriso. - Por exemplo, não me disse porque terminou o teu namoro, depois de quase dois anos. Se vou ter de te confiar os meus segredos, porque não começas por me esclarecer esse ponto?
- Primeiro, porque ele não tem qualquer interferência na minha missão de educar as crianças. Segundo, não te pedi que me falasses de ti, mas delas, porque quanto melhor as conhecer, melhor será a minha relação com eles.
-Esqueces que as suas histórias estão ligadas à minha?
-Não. Mas foste tu que falaste em segredos. E eu não quero imiscuir-me na tua vida, senão naquilo que às crianças diga respeito.
O silêncio reinou na sala durante alguns segundos. Sério, Ricardo olhava-a fixamente. Ela sustentou-lhe o olhar. Por fim, ele levantou-se e aproximou-se da janela. De costas para ela, começou a falar:
Não tenho nenhuma memória da minha mãe. Era ainda bebé quando ela faleceu. Três anos depois meu pai voltou a casar, mas a minha madrasta, não gostava de mim. Tinha ciúmes, não sei se do amor que meu pai me tinha, se por lhe recordar que o meu pai já tivera outra mulher antes dela. Fez-me a vida negra, durante dois anos, até que influenciado por ela, meu pai enviou-me para casa da minha avó materna.
Clara engoliu em seco. Na voz rouca do homem, estava latente o sofrimento, que aquelas recordações despoletavam. Imaginou como teria sido a vida do seu irmão, se após a morte dos pais, ela não tivesse cuidado dele, e sentiu pena do menino que Ricardo fora.
-Na minha família - continuou Ricardo, - o filho varão sempre seguiu a carreira militar. Foi assim com meu pai, meu avô e bisavô. De modo que mal fiz o ensino primário entrei para o Colégio Militar. Não era o que eu queria, mas quem mandava era o meu pai e não havia nada a fazer.  A minha juventude não foi muito diferente da de outros da minha geração, talvez mais solitária pela falta de apoio familiar e mais rígida por causa da educação militar. Terminado o Colégio, ingressei, na Academia Militar e acabado o curso, fui integrado no exército, onde participei em algumas missões em África, mas nada de muito importante. Tinha vinte e seis anos e vivia apenas para a carreira. Contrariamente aos meus colegas, que ou estavam casados, ou iam a caminho do altar, eu nunca tinha encontrado uma mulher por quem sentisse outro sentimento que não fosse apenas a satisfação de um desejo momentâneo. Mas nessa altura, durante umas férias, conheci a Céu. Era muito  bonita, mas o que me seduziu foi a sua doçura. Apaixonei-me. Namorámos  durante catorze meses, e a ideia de nos casarmos em breve, estava a ser encarada seriamente, mas nessa altura, fui destacado para o serviço permanente da NATO, por dois anos. Decidimos protelar o casamento para o fim da comissão. Despedimo-nos com juras de amor eterno, e promessas de que íamos estar em contato diário.  Apesar dos meus quase vinte e oito anos, era tão ingénuo que ainda acreditava em amores eternos.
Parti então, mas nesses dois anos, participei em missões no Afeganistão, em lugares tão remotos, onde não havia Internet, e o correio só chegava uma vez por semana, quando o avião de abastecimento nos levava os alimentos.



ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE IX



Uma hora depois, Clara entrou na biblioteca com as crianças que correram para o pai, para o abraçar.
Ele beijou-os, e depois afastando os papéis que tinha à sua frente, ergueu-os e sentou-os na secretária.
- Olá. Parecem muito contentes hoje. Por onde andaram?
-Estivemos no jardim, - disse a menina.
-Andámos de baloiço, e brincámos à cabra-cega, e a Clara quase caiu na piscina, - acrescentou o irmão rindo.
- Muito bem. Mas vocês lembram-se da conversa que tivemos ontem? Antes de sairmos para a igreja,  quando vos disse que a Clara ia ser a vossa mãe?
- Eu lembro, - disse o rapazinho baixando os olhos
- E eu. Desculpa pai, - disse a menina meio envergonhada
Antes que ele dissesse algo mais, Clara adiantou-se e disse-lhes:
-Vá meninos, agora que já viram o vosso pai, dêem-lhe um beijinho gostoso e vão ter com a Antónia, que já deve ter o vosso lanche pronto.
Ricardo beijou as crianças pondo-as em seguida no chão. Elas saíram a correr e Clara fechou a porta atrás delas.
Então virou-se para ele e disse:
-Começo a pensar que cometemos um erro com este casamento precipitado. Não sei onde estava com a cabeça para aceder a isto. Ricardo, nós só nos vimos, três vezes antes da cerimónia. No dia da entrevista, quando assinámos o acordo no advogado, e quando assinamos os papéis no registo. Em nenhuma dessas ocasiões, as crianças estiveram presentes.  Nem quero acreditar que lhes ias pedir para me chamarem mãe. Como queres que o façam, se sou uma desconhecida? Por favor não os obrigues a isso. Deixa que me torne amiga deles, e que me tratem como a uma amiga, pelo nome. Eles mudarão de tratamento, quando  sentirem que os amo e que me porto como mãe.
-Tens razão. Devia ter começado por vos apresentar antes mesmo da cerimónia, mas a verdade é que foi tudo muito rápido.
- Agora vou ter com eles, mas gostaria de te pedir que disponhas do tempo em que irão dormir a sesta, depois do almoço, para que possamos conversar sobre eles, como são, do que gostam, do que já viveram. Não posso cuidar deles, se não estiver a par do que lhes aconteceu antes. O pesadelo da Soraia esta noite deixou-me muito preocupada. É costume tê-los?
- Uma vez mais estás certa. Teremos uma longa conversa, mais logo. Não vai ser fácil, reabrir feridas, mas compreendo que seja necessário, para bem deles.
Vendo que o rosto masculino se contraía, Clara voltou costas e saiu. Ricardo pousou os cotovelos na secretária e ocultou o rosto nas mãos.
Não lhe tinha passado pela cabeça, contar a ninguém os seus desenganos amorosos, muito menos a uma mulher. Isso fragilizava-o. Não gostava de recordar que fora tão idiota, que se deixara enganar com a mesma facilidade com que se engana uma criança. Mas como falar do filho sem contar toda a verdade? 
- Que se lixe - murmurou. Afinal que me importa o juízo que ela faça de mim?  
O que pretendo é que cumpra o contrato, cuidando bem deles, não  conquistá-la.

24.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE VIII



Dias depois assinaram o contrato e com a ajuda do advogado, o casamento pôde realizar-se rapidamente. Agora estava casado, já ninguém lhe podia tirar a guarda dos filhos. Como oficial superior do exército português, Ricardo comandara uma força de elite, ao serviço da NATO, por dois anos. Depois voltara à unidade em Portugal, mas em breve partiria de novo para missões no estrangeiro.  A companhia que comandava, era especializada em situações de conflito, não se justificava a sua permanência no país. Em serviço ele já estivera em vários pontos do globo, quase sempre em missões arriscadas. Se não tivesse casado, corria o risco da Segurança Social, considerar que as crianças estavam abandonadas, aos cuidados dos empregados, e que eles não teriam condições para as tratar com o cuidado que elas requeriam. Conhecia casos de pais que ficaram sem os filhos por essa razão. Os seus filhos, não tinham mais parentes. Os avós tinham morrido há muito, e ele fora filho único. 
Casado, já não corria esse risco.
Olhou o relógio. Quase duas da madrugada. Guardou a sua cópia do contrato, no cofre, e apagando a luz, subiu as escadas e encaminhou-se para o seu quarto.  Despiu-se e dirigiu-se à casa de banho, onde tomou um duche rápido, escovou os dentes e vestiu umas calças de pijama.
 Acabara de se deitar quando ouviu o grito de Soraia. Saltou da cama. e abriu a porta de comunicação com o quarto das crianças, mas ao entrar viu que Clara já tinha a criança ao colo, e a acariciava, enquanto lhe murmurava palavras tranquilizadoras. Aproximou-se. Ela sussurrou:
- Está tudo bem, deve ter sido um pesadelo. Podes ir dormir.
Ele assentiu. Inclinou a cabeça, deu um beijo na menina, e foi até à cama do filho onde se deteve alguns instantes, talvez para se certificar, que o menino não tinha acordado com o grito da irmã, e então encaminhou-se para a porta de comunicação com o seu quarto. Ai voltou-se, lançou um último olhar à mulher, que embalava a menina, e retirou-se fechando a porta atrás de si. Estava cansado, o dia fora longo e a incerteza sobre a decisão que tomara também fizera o seu estrago. O relatório do investigador sobre aquela mulher não podia ser melhor, mas em relação ao sexo feminino ele era muito cético. Doía-lhe a cabeça. Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, retirou duas aspirinas, e engoliu-as.
Deitou-se, mas teve dificuldade em adormecer, preocupado pelo facto da filha ter voltado a ter aqueles malditos pesadelos. Pouco tempo depois o silêncio envolveu por completo a casa, e Ricardo pensou que a menina estaria de novo a dormir. O seu corpo relaxou e acabou por adormecer.
Acordou, com um raio de sol no rosto. Olhou o relógio. Quase nove horas. Franziu o sobrolho. Os filhos costumavam acordar cedo. Normalmente pouco depois das sete iam ter com ele ao quarto. Saiu da cama, e abriu a porta de comunicação. Estava vazio.
 Vestiu umas calças de ganga, e uma camisa, e desceu. Encontrou-se com a empregada que levava um jarro vazio para a cozinha
- Bom dia, Antónia.
- Bom dia, senhor. Sirvo já o pequeno-almoço.
- A casa está muito silenciosa. Onde estão os meus filhos?
- Os meninos já comeram. Estão com a senhora no jardim.
- Obrigado.
Dirigiu-se à sala. Tinha acabado de se sentar, quando até ele chegou uma risada infantil. Levantou-se e foi até à janela. Os filhos andavam de baloiço empurrados pela sua jovem esposa.  As crianças pareciam  encantadas com Clara. Era um bom sinal.
Voltou para a mesa, quando Antónia entrou com a bandeja do pequeno-almoço.




21.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE VII





A casa estava em silêncio.
Provavelmente Clara já dormiria há horas.
No silêncio da biblioteca, Ricardo acabara de reler a carta que Clara lhe mandara em resposta ao anúncio. Decerto ela nunca saberia, mas fora exatamente aquele “Post Scriptum” que o levara a escolhê-la entre o monte de respostas que recebera. É evidente que ele tencionava investigar a vida das candidatas que pretendia entrevistar. Mas aquela nota final, fez-lhe pensar que aquela seria a candidata ideal, a por de parte todas as outras cartas e a pedir ao Francisco, seu advogado e amigo, se lhe arranjava um investigador de confiança para descobrir quem era e como era aquela mulher. Oito dias mais tarde tinha na sua frente num relatório pormenorizado, toda a informação sobre a vida dela, e não havia dúvida de que era uma boa escolha. Porém havia um senão. Durante mais de dois anos, ela tivera um namorado. Segundo o relatório, coisa séria, chegaram aos preparativos para o casamento. De repente seis meses atrás, zangaram-se e nunca mais foram vistos juntos.
No seu anúncio ele fora propositadamente dúbio, não especificando que se tratava de um anúncio de casamento embora o facto de mencionar, " o papel de mãe delas" pudesse ser tido como um anúncio de casamento. Mas ela poderia pensar que se trataria apenas de uma ama, e não achar que um namoro seria inconveniente. Tinha que esclarecer aquele assunto com ela, e para isso marcara uma entrevista.
Sorriu a lembrar-se da resposta que ela lhe dera, quando lhe perguntou se estava apaixonada. Era uma mulher de personalidade forte e isso agradou-lhe.
Então explicou-lhe em que consistia o tal “emprego”, disse-lhe quanto receberia mensalmente, falou-lhe do casamento que teria de durar até à maioridade dos filhos, do divórcio que lhe daria em seguida, e dos cem mil euros que receberia no final do contrato, quando se divorciassem. E perguntou-lhe se continuava interessada.
Ela ouvira-o com atenção, e quando ele se calou dissera.
Continuo interessada, mas com uma condição. O meu irmão deverá viver connosco, e terá pagos os seus estudos universitários, mesmo que a quantia que estipulou no final, seja substancialmente reduzida. Se aceitar estas condições, eu aceito as suas.
-Não tenho nenhum problema, em financiar os estudos do teu irmão, até à sua formação, desde que ele tire boas notas e não se meta em drogas. Se isso acontecer, retiro-lhe todo o apoio.
-Não acontecerá. O Tiago é um miúdo muito responsável.
- Mais uma coisa, - dissera ele. Não suporto traições. Se te apaixonares por alguém, deverás comunicar-mo. Darei por findo o contrato, tratamos do divorcio, mas claro que não receberás os cem mil euros a que terias direito se o contrato chegasse ao fim.
- Parece-me justo! A mim também não me agradam as traições. E se acontecer o contrário, e for o senhor interessado no divórcio?
-Isso não acontecerá. Mas se por hipótese eu rompesse o acordo, receberias na mesma o dinheiro, já que o incumprimento não seria teu.  Entendes que será um casamento apenas no papel?
-Claro, se assim não fosse não o aceitaria, mesmo querendo muito concretizar o sonho do meu irmão,- respondera.
-Então, vou falar com o meu advogado para redigir o contrato e logo que esteja pronto telefono-te para o assinarmos. E prepara o que for necessário, o casamento tem que ser muito rápido. Assim que assinares o documento dar-te-ei um cartão de crédito para que compres o necessário.
- Até ao momento em que oficialmente me torne sua mulher, não aceitarei nenhuma ajuda financeira.
-Mas um casamento implica despesas. Desde logo o vestido de noiva e o fato do teu irmão. Não são roupas baratas.
- Eu sei. Mas isso é problema meu.


Nota: Esta história regressa Segunda-Feira. Um sereno e feliz fim-de-semana



20.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE VI



Deixou um quarto para a mãe e dividiu o outro com o irmão que traumatizado com a morte do seu progenitor e o alheamento da mãe, não fazia outra coisa que não fosse chorar. Essa fora a principal razão que a levara a inscrever o irmão nos escuteiros da paróquia de São Pedro de Alcântara. Após a mudança e despedida a última empregada, Clara pensou que precisava de arranjar rapidamente trabalho, pois o dinheiro que sobrara, depois de pagar aos credores, escoava-se rapidamente nas necessidades básicas do dia-a-dia. Porém como fazê-lo se tinha de cuidar da casa, da mãe e do irmão, na época apenas com apenas com sete anos? Ainda restavam as jóias da mãe, mas de modo algum queria desfazer-se delas. Cada uma representava para a progenitora, um momento especial, seria decerto um choque fatal desfazer-se delas.
Infelizmente seis meses depois de terem mudado para a nova casa, a mãe morreu docemente enquanto dormia. Clara havia completado dezoito anos dois dias antes. Foi como se a mãe tivesse esperado que ela atingisse a maioridade para se reunir ao seu amado marido. Assim ela podia assumir a educação do irmão. Se fosse menor, a Segurança Social tê-los-ia separado, e provavelmente acabariam os dois nalguma instituição.
Com o pequeno Tiago na escola, podia enfim arranjar um trabalho, que lhes permitisse viver. E foi o que fez. Arranjou trabalho num café perto de casa. O salário não era muito grande, mas com o abono de família, e as gratificações dos clientes, dava para irem vivendo. Com a vida mais estabilizada, propôs-se terminar o décimo segundo ano à noite, coisa que levou a cabo com a ajuda das vizinhas que lhe tomavam conta do irmão, nas horas em que ela estava na escola.
Mais tarde, fora a uma entrevista e conseguira entrar como escrituraria numa empresa e o salário aumentou substancialmente. E assim foram vivendo os dois, os anos passando, Tiago crescia, sem lhe dar problemas. Tinha dezasseis anos, e ia iniciar o penúltimo ano do Secundário. Quando terminasse essa fase,  teria que entrar no mercado de trabalho, já que de modo algum, Clara conseguiria pagar-lhe a faculdade, a menos que vendesse as poucas jóias da mãe, que ainda lhe restavam, coisa que ela não desejava fazer.Eram a única recordação que tinham dos pais, e uma defesa para a eventualidade de uma doença. E foi então que no refeitório da empresa uma colega lhe chamou  a atenção para um anúncio, no jornal, que na altura considerou absurdo.

“Cavalheiro 35 anos, deseja conhecer senhora dos 30 aos 35 anos, que goste de crianças, meiga e competente, para possibilidade de desempenhar o papel de mãe delas. Assunto sério. Resposta ao apartado 1100 Rossio”

Porém o resto do dia, o anúncio não lhe saiu do pensamento. Ela gostava de crianças. Se o homem pagasse bem, e tendo em atenção que provavelmente iria viver lá para casa, talvez conseguisse pagar a Universidade ao irmão.
Assim, depois de uma noite em que quase não dormiu, decidiu responder ao anúncio. Nunca lhe passou pela cabeça que se tratasse de um casamento, pensou sim que se trataria de um emprego como ama.
Escreveu a seguinte missiva no trabalho durante a hora de almoço.

Exmo. Senhor.
Talvez não devesse perder tempo a responder ao seu anúncio, já que refere a idade entre 30 e 35 anos, e eu tenho apenas 26. Mas como gosto imenso de crianças, e tenho experiência no assunto já que há oito anos, venho criando sozinha, um irmão que tem atualmente dezasseis anos, penso que talvez a questão da idade não tenha uma importância muito grande, e eu possa ser escolhida para cuidar das suas crianças.
Estou na atualidade empregada na firma, Ramos & Ramos Lda em Alcântara, mas não teria problema em pedir a demissão.
Sem outro assunto, termino com os melhores cumprimentos.
Atenciosamente
Clara Mendes de Sá.

P.S. Não envio referências, pois acredito que o senhor não entregará os seus filhos ao cuidado de ninguém, sem antes fazer uma aturada investigação sobre essa pessoa. Pelo menos, era o que eu faria, se fossem meus filhos.

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE V


No seu quarto, Clara trocou a roupa que vestia por um pijama de algodão composto de calções floridos e t-shirt branca. Foi à casa de banho, escovou os dentes, soltou o cabelo e regressou ao quarto disposta a dormir. Tinha por hábito ler um pouco antes de adormecer, mas como se irritara com  Ricardo acabara por não trazer nenhum livro.
Foi até à porta que dava para o terraço. Afastou o cortinado, e olhou.
 No céu uma esplendorosa lua cheia iluminava toda a terra. “Boa noite para acampar”- murmurou pensando no irmão.
Teve vontade de sair para o terraço, mas pensou que todos os quartos deviam dar para ele, e não tinha vontade nenhuma de voltar a ver o dono da casa, naquela noite. Sim, porque apesar da aliança que ele lhe enfiara no dedo, ela nunca perdera a noção de que era apenas uma empregada, que por obrigação contratual, vivia em casa do seu patrão.
Talvez que a aliança lhe desse um estatuto especial, perante o mundo em que ele se movia, mas ali dentro daquelas paredes, era apenas a sua empregada. O contrato que ambos assinaram, era bem explícito. Ela devia proceder como sua esposa, em todos os eventos onde se fizessem representar, e deveria ser uma mãe para as crianças, acompanhando-as como tal até à sua maioridade. Depois assinariam o divórcio e ela era livre de fazer da sua vida o que bem entendesse. Aos quarenta e um anos. Era para todos os efeitos um contrato absurdo, mas tinha as suas contrapartidas. Desde logo tinha uma mesada mensal que era o dobro do que recebia no emprego anterior, tinha casa e alimentação para ela e para o irmão, que assim podia ir para a Universidade, tirar o Curso de Biologia, que era o seu sonho de menino e que ela nunca lhe poderia proporcionar. E o melhor de tudo, cuidar de crianças, era para ela que sempre as adorara, uma forma de realização pessoal. Fechou o cortinado, e deitou-se, mas o sono teimava em não chegar.
De algum recanto da sua memória, as lembranças começaram a sair em catadupa.
Viu-se bem pequenita, num baloiço do jardim, de uma grande moradia,  empurrada pelo seu pai, sob o olhar amoroso da mãe.
Tivera uma infância feliz. Seu pai era um empresário bem-sucedido, e sua mãe uma mulher muito apaixonada. Ambos se amavam muito e a amavam da mesma maneira.
Clara só tinha um problema. Era filha única, e o seu maior sonho era ter um irmão, com quem dividisse carinho e brincadeiras. Era a única menina da sua turma, que não tinha irmãos. Mas para sua felicidade até o irmão chegou, como o melhor dos presentes, três dias antes de fazer dez anos.
Porém antes de completar dezassete anos, a sua vida sofreu uma reviravolta inesperada. Por uma daquelas crises que de vez em quando assolam um país, varrendo a economia, os negócios do pai começaram a correr mal, e ele não foi capaz de travar a falência. Desesperado, sem saber como honrar os diversos compromissos com os credores, conduziu sem destino até que numa estrada montanhosa, não muito concorrida, fez com que o carro mergulhasse no vazio, acabando por morrer na explosão que se sucedeu ao embate.
Embora o coração da mãe ainda batesse, durante quase um ano, após a morte do marido, na verdade a mulher que ela fora, morrera no momento em que recebeu a notícia da morte do companheiro. Apesar da pouca idade, Clara chamou a si a tarefa de cuidar do irmão e da mãe, e ao mesmo tempo limpar o nome do pai. Começou por despedir duas das três empregadas, e por a esplêndida casa da família à venda, o carro topo de gama, que o pai oferecera à mãe pelo seu aniversário, no ano anterior, bem como algumas obras de arte onde o pai aplicara bastante dinheiro ao longo dos anos.
Claro que fora a mãe quem assinara os documentos, mas fora ela com a ajuda do advogado do pai, quem tratara de tudo.
Não foi fácil, a sua vida após a morte do pai. Com o dinheiro das vendas, pôde pagar as dívidas do pai e limpar o seu nome. Depois teve que procurar uma casa modesta para habitarem, o que não foi possível naquela zona onde os alugueres eram bastante caros.
Conseguiu arranjar um apartamento na zona de Alcântara, com dois quartos, sala, casa de banho e uma pequena cozinha.


19.9.18

ENTRE O AMOR E A CARREIRA - PARTE IV




Desceu as escadas e dirigiu-se à biblioteca. Abriu a porta, não sem antes bater com os nós dos dedos.
Ricardo estava sentado atrás de uma grande secretária. Tinha um bloco na sua frente onde escrevia algo.
Levantou a cabeça e olhou-a. Era um olhar amistoso? Indiferente? Clara não saberia dizê-lo.
- O teu irmão saiu há uns vinte minutos. Disse que ia acampar com o seu grupo de escuteiros e que te telefonava amanhã. Vai acampar muitas vezes?
- Entrou para os escuteiros aos seis anos. E desde essa data que acampa, amiúde, durante as férias. No tempo de aulas não. Porquê? Não te agrada?
- Porque não me agradaria? Perguntei por simples curiosidade.
- Por falar em curiosidade. Disseste que o Tiago e a Soraia não são irmãos?
-Não quero falar sobre isso.
- Como não? Temos um contrato, no qual eu me comprometi a cuidar deles, a educá-los e protegê-los até atingirem a maioridade, tal como se fossem meus filhos. O que são, mais ou menos quinze anos. Se vou ser a mãe deles, tenho todo o direito de saber o que lhes diz respeito.
Tinha levantado a voz, e ao dar-se conta disso, corou.
Ricardo pousou a caneta, e por largos minutos não disse nada. Depois…
-Talvez tenhas razão, mas de qualquer modo, hoje não é dia para falarmos disso. Antes quero apresentar-te as minhas desculpas. Devia ter-te dado as boas vindas à tua nova casa, coisa que não fiz. Sê bem-vinda.
-Obrigada. Disseste que a Antónia fazia o trabalho da casa e que eu só devia cuidar das crianças. Quero saber se estou proibida de fazer outras coisas.
- Que coisas? O teu trabalho é, cuidar das crianças.
- E durante o tempo em que dormem? Ou quando forem para a escola? Posso cozinhar, jardinar, ou fazer qualquer outra coisa que me apeteça no momento, ou tenho que me sujeitar a ficar no quarto como se estivesse de castigo?
- Que se passa, Clara? Porque não falaste nisso, antes de assinares o contrato? És mais esperta do que eu pensava. Aceitaste tudo, até estares casada e agora começas a mostrar as garras.
 Ergueu a cabeça e disse o mais serena que conseguiu, embora  os seus olhos estivessem mais brilhantes e a raiva lhe apertasse a garganta.
- Não sei com que espécie de mulheres, lidaste até hoje, mas gostaria que não me julgasses por elas.  Fui absolutamente sincera quando te disse o que me tinha levado a responder ao teu estúpido anúncio. Mas mesmo necessitando-o com toda a minha alma, eu não teria assinado aquele contrato, se não gostasse de crianças e não soubesse que era capaz de ser para elas a mãe que decerto precisam. Fui mãe do Tiago, desde que meu pai morreu e tu sabes isso, deve estar no relatório do detetive. A ideia do casamento foi tua. Eu faria exatamente a mesma coisa com um simples contrato de empregada. Por isso não me venhas dizer que fiz isto ou aquilo, até estar casada, como se te tivesse enganado. Sabes muito bem que até ao momento da cerimónia, vi mais vezes o teu advogado do que te vi a ti. E decerto não lhe ia fazer as perguntas a ele. E outra coisa, o facto de cuidar das crianças não me impede de fazer outras coisas que gosto de fazer, como cuidar do jardim, fazer um almoço especial quando me apeteça, ou até lavar os vidros da janela. 
Sei que tens uma boa empregada e que podes contratar quantas quiseres mais. Calculo que sejas um homem muito rico, mas que fique bem claro. Compraste os meus serviços, mas não há dinheiro no mundo que compre, a minha vontade, ou mude a minha maneira de ser.  Quando era criança, os meus pais tinham uma cozinheira e duas empregadas. Mas desde os oito anos que aprendi a arrumar o meu quarto e nunca mais deixei a empregada fazê-lo.
 Virou-se, saiu e subiu para o seu quarto sem esperar resposta.