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22.7.20

CILADAS DA VIDA - PARTE IX






Afastou a cadeira e pôs-se de pé. Era um homem alto, de corpo atlético. Moreno, e o cabelo que usava com um curto muito curto, era escuro, já grisalho nas têmporas, apesar de ainda faltarem três meses, para fazer trinta e cinco anos; os olhos cinzentos, um tanto oblíquos, que davam ao seu rosto um ligeiro ar oriental, contrastavam fortemente com o rosto moreno e o cabelo escuro. Testa alta, nariz retilíneo, queixo quadrado e boca grande de lábios cheios, que raramente se abriam num sorriso. Os quase um metro e noventa, de altura, os ombros largos, a cintura estreita, as pernas longas e poderosas, davam-lhe uma imagem  de força que intimidava os seus opositores.
Desde muito novo teve que aprender a sobreviver sozinho.  Ainda não tinha três meses, quando a mãe fugiu de casa, com um artista de um circo que acampara num local próximo. Fora deixado para trás como algo sem préstimo, e isso desde muito cedo o marcou. O pai era um homem calado, de carater seco, de quem nunca ouviu uma palavra carinhosa. Às vezes ele pensava que o pai o culpava pela traição da mãe.
Era verdade que nunca lhe faltara com a parte material, que qualquer criança precisa para crescer. Roupa, comida, assistência médica, livros, uma bicicleta, bolas, computador etc. Tudo ele teve. Tudo menos o essencial, o afeto necessário para um crescimento sem traumas. João acreditava que o pai não gostava dele, e depois que ouviu várias vezes a frase “és igualzinho à tua mãe” pensou que o pai o odiava porque ele lhe lembrava a traição da mulher que amara. Teria uns treze anos, quando decidiu que também ele não gostava do pai, e nunca na vida seguiria a vida do progenitor, apesar de nas férias, o pai sempre arranjar maneira de o levar para a sua oficina de automóveis e tentar que ele aprendesse o ofício de mecânico.
Os computadores, sim, fascinavam-no. Todo o dinheiro que conseguia poupar da mesada que o pai lhe dava, empregava-o em livros sobre o funcionamento dos mesmos. Por causa dos computadores, muitos sermões paternos, teve que aturar, mas aos dezasseis anos era um expert em programação e aos dezassete iniciava o seu primeiro jogo de computador.
Quando via o pai mais zangado, refugiava-se em casa da dona Hortense, mãe de Olga, a sua assistente. Eram vizinhos, e a senhora tomara conta dele, até aos quatro anos, altura em que o progenitor decidira que estava na hora de  entrar para o infantário. E já crescido, cada vez que lhe batia à porta, dona Hortense, tinha sempre um pedaço de bolo e um afago com que tentava acalmar a sua solidão e fome de amor.  Por outro lado, Olga, doze anos mais velha, sempre se mostrara muito protetora, era como uma irmã mais velha, ajudava-o nos problemas escolares, aconselhava-o e incentivava-o, a prosseguir nos seus sonhos, de um dia ser alguém importante no mundo informático. Podia dizer-se que João tinha encontrado em Olga e sua mãe, a estabilidade familiar que nem pai nem mãe lhe deram. 
Depois que a sua vida se tornou um sucesso, comprou uma casa e mudou-se. Não suportava mais viver com o pai. De vez em quando, Olga lembrava-lhe apesar de todas as mágoas que tinha, o progenitor era a sua única família, devia ir vê-lo e tentar um entendimento entre eles, todavia ele nunca o fez, até saber que se encontrava muito doente e fora internado no hospital. Foi vê-lo, falou com o médico, soube que o pai tinha um cancro no pâncreas e que se encontrava em estado terminal. E ele, que já tinha passado por uma fase semelhante, embora com desfecho positivo, entendeu o sofrimento físico e moral do progenitor, e pela primeira vez sentiu que talvez devesse ter tentado entender o pai, em vez de o ter abandonado. Todavia se era tarde demais para voltar atrás, não o era para lhe dar, o apoio e carinho que nunca lhe dera desde que se conhecia,  e tornar mais doces os últimos dias da sua vida. Era hora de apagar mágoas, e lhe mostrar com a sua presença constante e o seu apoio, que o passado fora relevado.
Na véspera da sua morte, talvez sentindo que o fim estava próximo, o pai tivera uma conversa franca com ele.Falara-lhe do imenso amor que dedicara à esposa, e de como,  depois que ela o abandonara, ele se sentira morto por dentro, e, incapaz de albergar outros sentimentos, que não a raiva e o desespero. Talvez por isso, - disse - não tivesse sabido ser um bom pai, preencher as tuas necessidades de afeto,  pelo que te peço perdão. 
Emocionado, ele abraçara o pai, acabando os dois a  chorar abraçados até que uma enfermeira  entrou e o expulsou do quarto. Foi o único e último abraço. Na manhã seguinte o hospital informou-o de que o pai partira durante a madrugada.


17 comentários:

noname disse...

Homem duro esse, vamos ver como se portará quando encontrar a mulher que sem saber, tem um filho seu.

Boa noite, Elvira

Pedro Coimbra disse...

Um homem marcado por uma infância triste.
Abraço

Isa Sá disse...

A passar por cá para acompanhar a história!
Isabel Sá  
Brilhos da Moda

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Gostei de ler este capitulo.
Um abraço e continuação de uma boa semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros

Tintinaine disse...

Fico a torcer para que ele encontre a Teresa depressa!!!

chica disse...

Tantas ele passou e sofreu... Vamos esperando...beijos, chica, lindo dia!

Cidália Ferreira disse...

A Vida dá muitas voltas! Amei ler :))
**
"Um coração entre tantos"

Beijo e um excelente Dia. :)

Maria João Brito de Sousa disse...

A falta de amor na primeira infância deixa marcas invariavelmente irreversíveis.

Fico à espera de ver o que a vida reserva a este homem emocionalmente desnutrido.

Forte abraço, amiga.

Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Um homem que já sofreu tanto, sem o amor dos pais merece ser feliz.
Vamos ver o que o destino lhe guarda.
Um beijinho,
Ailime

teresa dias disse...

Não foi fácil a vida do João.
Por certo encontrará a amor junto da Teresa.
Será?
Beijo

Teresa Isabel Silva disse...

Continuo a acompanhar e a gostar!
Espero que esteja melhor dos olhos!

Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

Edum@nes disse...

Mais vale tarde do que nunca. Pai e filho deram o último abraço, com um adeus para sempre.

Tenha uma boa noite amiga Elvira. Um abraço.

Alexandra disse...

Com uma infância dessas como será o desenrolar desta história?!

Um abraço e, saúde Elvira. :)

Os olhares da Gracinha! disse...

Momento emocionante sem dúvida!!! Bj

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Apesar da amargura, da falta de afeto, ele tem bom coração e um filho abrandará seu coração!
Abraços fraternos!

aluap disse...

Incrível como as crianças se apercebem das justiças ou injustiças!

Um abraço.

João Santana Pinto disse...

E voltamos a ter mais um grande momento, com a solidificação do personagem João no seu perfil físico e psicológico .

Penso que a história já deverá ter quase todos os dados que os leitores necessitam saber antes de crescer e avançar.

Foi também o meu texto preferido deste conto (até aqui), em especial dos primeiros parágrafos pela qualidade descritiva.