Seguidores

31.3.22

PENSAMENTO DO DIA


 Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito. 

Um se chama ontem e o outro se chama amanhã.

Portanto hoje é o dia certo para amar. 

acreditar, fazer e principalmente viver


Dalai Lama

30.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXX



Muito tempo depois, Nuno acariciava com o polegar o contorno do rosto feminino.
- Estás feliz? – perguntou
- Sim. Tão feliz que tenho receio de que isto não passe de um sonho do qual vou acordar a qualquer momento. E tu?
- Tenho nos braços a mulher que sempre amei, que acabou de me demonstrar, que me quer com igual intensidade, sem se importar nada, com a minha deficiência. Como não hei de estar feliz? A sensação que tenho, é que andei à deriva durante longos anos e acabo de chegar a um porto seguro.
A mão dela, pousou no peito dele, iniciando uma carícia que o fez estremecer. Nuno pousou a sua mão sobre a dela:
- Pára. Assim não consigo raciocinar e preciso de te perguntar uma coisa.  Achas que serias capaz de viver aqui?
Fez uma pausa, para um breve beijo e continuou:
- Ouve-me com atenção. Tens que saber que há um determinado número de coisas que nunca vou conseguir ultrapassar. Por exemplo, não podes contar comigo para ir contigo à praia, ou para te carregar ao colo, para a cama.
 Sabendo isso, aceitas casar comigo?
- Agora mesmo se fosse possível. Não preciso de que me carregues ao colo para a cama, já o fizeste há muitos anos, quando eu era uma menina sonhadora.  A praia não me fez falta até agora, também não me fará no futuro. Podemos sempre passear pelo campo, pela cidade. Compreendo que ainda estejas traumatizado, o acidente é relativamente recente. Com o tempo vais encarar essa tua limitação com naturalidade e vais arranjar maneiras de rodear as dificuldades, e eu estarei sempre a teu lado, com todo o meu amor. E sim viveria feliz nesta casa, ou em qualquer outro local, porque o lugar não me importa desde que esteja a teu lado.
Em resposta, ele beijou-a apaixonado. As mãos perdendo-se no corpo amado em carícias, cada vez mais ousadas, que ela retribuía com igual paixão, cada um desfrutando do corpo do outro, no ritual mais antigo do universo



Epilogo



Um ano mais tarde, Nuno apertava a mão de Luísa, pronunciando palavras de amor e incentivo, quando de súbito se ouviu o choro de um bebé.
- É um rapagão, - disse a médica que fizera o parto, entregando o bebé à enfermeira que o colocou nos braços maternos, sob o olhar embevecido do pai.
- É lindo, o nosso filho, não é verdade?- perguntou Luísa olhando amorosa o marido.
- É o bebé mais bonito que vi em toda a minha vida, meu amor, - sussurrou ele emocionado.
Uns minutos mais tarde, a enfermeira interrompeu-os.
- Pronto, mãe, preciso levá-lo agora, o pediatra vai examiná-lo, e precisamos cuidar dele e vesti-lo, - disse tirando-lhe o recém-nascido dos braços. – Já lho trago, daqui a pouco.
- Está tudo bem, podem levá-la para o quarto, - disse a médica retirando as luvas. E voltando-se para Nuno, acrescentou. Parabéns colega. Acompanha a sua esposa ao quarto, ou quer ir até à sala onde o pediatra examina seu filho?
-Vou com a minha esposa. Confio plenamente no colega que o vai examinar. Gostaria que no-lo trouxessem logo que tenham acabado.
Pouco depois no quarto, quando a enfermeira os deixou a sós, enquanto esperavam pelo filho, Nuno beijou a esposa com ternura.
- Descansa querida, deves estar cansadíssima. Dez horas a sofrer, é uma tortura muito grande. Esquece os nossos sonhos de três filhos. Nunca mais te quero ver a sofrer assim.
Cansada,  mas feliz, ela respondeu:
- Nunca se desiste dos sonhos, amor. E sabes de uma coisa? Quando a enfermeira me pôs o João nos braços esqueci tudo, exceto que nos amamos e que aquele pedacinho de gente era o fruto do nosso amor.
Emocionado ele murmurou com devoção
-Minha vida! Meu amor!



Fim

Elvira Carvalho


29.3.22

POESIA ÀS TERÇAS - ÁLVARO DE CAMPOS - TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS






Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos  

28.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXIX




- Vamos guardar as tuas coisas? - perguntou Nuno estacionando o carro uma hora mais tarde frente a um moderno edifício. 
Pegou na maleta, entraram no átrio e subiram no elevador, até ao primeiro piso. Nuno abriu a porta, e deu passagem à jovem fechando a porta atrás de si.
Encostou a mala à parede, e pegando-lhe na mão, disse:
- Vem conhecer a casa. Aqui temos a sala, é aqui que passo algum do meu tempo livre, ouvindo música ou vendo televisão.  Ali ao canto é a zona de refeições não tenho uma divisão específica para elas, como nunca recebo visitas, acabo sempre por comer na cozinha.
Voltaram ao vestíbulo onde ele apanhou a mala dela e abriu a porta em frente  mostrando um quarto, onde a enorme cama de casal se destacava..
-Aqui é o quarto principal, - disse pousando a mala dela  ao lado da cama - É o único com casa de banho integrada.   Mandei fazer-lhe  algumas adaptações na cabine do duche, para me facilitarem a vida. Agora vem conhecer o resto da casa. No vestíbulo abriu outra porta.
- Aqui, é o escritório e biblioteca. É aqui que tenho os meus livros de medicina, que leio ou estudo, e que comunico com médicos de outros países, sobre as mais recentes descobertas científicas. Tenho mais duas divisões,- disse fechando a porta do escritório. Abriu outra em frente - Este como vês, é um ginásio, com os aparelhos necessários ao tipo de exercícios que preciso, - fechou a porta e abriu a seguinte, - e aqui o quarto de hóspedes  que nunca foi usado, vivo aqui há pouco tempo.  A porta ao lado é uma casa de banho, e a porta mais à frente, é o meu laboratório como verás em seguida. 
- E não tens cozinha? - perguntou Luísa espantada
- Claro que sim, -  disse ele rindo. Chamo-lhe o laboratório porque gosto de me entreter a inventar receitas, nos meus tempos livres.
Abriu a porta e Luísa entrou na cozinha, maravilhada com o seu tamanho e funcionalidade.
- A casa é toda ela muito bonita. Mas  esta cozinha então, é o sonho de qualquer mulher. A minha casa como sabes é muito antiga. Fiz obras e modernizei a cozinha, mas é pequenina como viste.
Voltou-se e ficou presa nos braços dele, que estava mesmo atrás de si. Nuno inclinou a cabeça e os seus lábios aprisionaram a boca feminina, num beijo que se queria doce, mas que a paixão transformou num beijo intenso. A sua língua invadiu a boca feminina, com a mesma paixão de outrora. Ela levantou os braços, acariciando-lhe a nuca. As mãos de Nuno passeavam pelo corpo feminino, ora acariciando-lhe os seios através do fino tecido do camiseiro, ora descendo às ancas. Os seus corpos, procuravam-se como atraídos por um íman. Por fim, Nuno largou-a e voltou-se. Luísa percebeu que tinham voltado os seus receios. Pegou-lhe na mão e disse:
- Se tens algum carinho por mim, se ainda me desejas, vamos para o quarto. Agora. Acabemos de vez com esta agonia, que nos consome. Porém se não me queres, se não me desejas, diz-me e eu vou-me embora agora mesmo.
- Se não te quero? És a única mulher que amei em toda a minha vida. Meu Deus, nunca desejei nada com tanta intensidade na minha vida, como te desejo.
-Então vem.
Entraram no quarto, entre beijos apaixonados, Nuno começou a despi-la, sempre procurando nos olhos femininos algum sinal de medo ou rejeição. Porém Luísa, não sentia medo, sabia que o homem que a acariciava era incapaz de lhe fazer mal.
Completamente nua, deitou-a na cama dizendo:
- Dá-me uns minutos, enquanto vou à casa de banho, retirar a prótese.
Recostada nas almofadas, Luísa viu-o regressar uns minutos mais tarde, apoiado nas duas canadianas, o rosto pálido, os belos olhos escrutinando o rosto feminino, temeroso do que ela pudesse estar a sentir. Ela sorriu-lhe. Um sorriso terno, amoroso, de quem acolhe alguém que ama, e lhe dá as boas-vindas. Mais confiante, ele retribuiu o sorriso. 


25.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXVIII

Afastou-se deixando-o só. Nuno olhou à sua volta. Nervoso, sem vontade de se sentar, dirigiu-se para a janela, de onde podia observar o movimento na rua. Ensimesmado, nem se apercebeu do tempo decorrido.
-Demorei? - perguntou Luísa, à entrada da sala.
- Não.
Caminhou até ela, olhando-a com admiração. Passou um braço ao redor da sua cintura, atraindo-a suavemente.
- Penso que podíamos passar o fim-de-semana, juntos. Queres?
- Sim,- respondeu trémula, sem deixar de o olhar.
- E não queres ir buscar algumas coisas pessoais?
- Não queres ficar aqui?
- Não. Prefiro o meu apartamento.
- Então vou pôr algumas roupas numa maleta.
Ele soltou-a e ela dirigiu-se ao quarto, voltando pouco depois, com uma pequena mala, que pousou no chão. Foi à cozinha fechar a torneira do gás, enquanto Nuno pegou na maleta e encaminhou-se para a porta da rua.
Saíram. Ele colocou a mala na bagageira, enquanto ela fechava a porta e se dirigia ao carro. Entrou e colocou o cinto de segurança, ao mesmo tempo que ele se sentava ao volante, e fazia o mesmo. Voltou-se para ela.
- São horas do lanche. Conheces algum sítio sossegado, onde o possamos fazer?
- Podemos ir à Padaria Portuguesa. Tem uma grande variedade de sandes em pães de diferentes massas, e se preferires bolos também não falta por onde escolher.
- É longe?
- Não. Nos segundos semáforos, viras à esquerda.
- Então vamos lá, - disse pondo o veículo a trabalhar.
Rodaram em silêncio durante alguns minutos. Depois…
- O Dinis já retomou as aulas? Tem-se portado bem?
- Sim, claro. É muito ajuizado, ou tem muito medo de voltar ao hospital. O certo é que tem imenso cuidado. Graças a Deus o avô melhorou, e a avó pode dedicar-se mais a ele.
Tinham chegado à pastelaria. Nuno estacionou um pouco mais à frente pois junto do estabelecimento não havia qualquer lugar vago.
- Acreditas que estou extremamente nervoso? – perguntou enlaçando-a, e dirigindo-se ao estabelecimento.
- Porque não havia de acreditar? Estou na mesma. Apesar disso, acredito que vai dar tudo certo. Sabes, penso que não pode ser por acaso que voltamos a encontrar-nos tantos anos volvidos e tanto sofrimento passado.
- Gostava de ter essa mesma fé, Luísa. Mas vamos em frente. Pode ser que, como diz o poeta, hoje seja o primeiro dia do resto das nossas vidas.




23.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXVII

 

Telefonou pouco antes das quatro da tarde, quando estava a acabar o turno. Ela atendeu ao segundo toque.
- Sim.
- Olá, como estás?
- Esperando…
- Estou a ligar por isso, Vou sair agora. Estás na escola?
- Ouves a campainha? As aulas estão a terminar agora.
- E vais para casa?
- Vou.
- Vou lá ter contigo. Pode ser?
- Penso que fui muito clara naquele dia, Nuno. 
- Está bem. Até já. Beijo.
Desligou sem esperar resposta.
Luísa ficou uns segundos a olhar para o telemóvel. Depois apressou-se a guardar o material que estivera a usar. Pegou na mala e levantou-se para sair, no momento em que a auxiliar entrava na sala para a limpeza da mesma.
Na saída saudou a outra auxiliar que ao portão impedia as crianças de saírem sem antes identificar o familiar que as viera buscar e entrou no carro.
Estava nervosa. Tinha noção de que algo na sua vida ia mudar muito em breve, fosse qual fosse a decisão que Nuno tivesse tomado. Dentro de dias, faria trinta e cinco anos. Alguns diriam que estava na plenitude da vida. Porém não era assim que ela se sentia.
A verdade, é que a vida teimara em ser para ela, como as bruxas más dos contos de infância. Tempos atrás, pensando que Nuno tivesse casado e fosse feliz, ela só pensava nas suas aulas, nas suas crianças, e era feliz. Mas o reencontro com o homem que sempre amou, o saber que ele não tinha qualquer compromisso de ordem amorosa, despoletou o vulcão adormecido no seu peito. As aulas, as crianças, as reuniões com as colegas, já nada lhe bastava. Ela precisava de algo mais que a completasse. Algo que ela pensou ter morrido, com a má experiência do passado, mas que renascia agora mais forte que nunca.
O que ele lhe contara no último encontro, chocara-a. Como não? Saber que uma pessoa, perde um membro por causa de uma mina, que os senhores da guerra deixaram esquecida como objeto inofensivo choca sempre. Mas isso não alterou em nada o que sentia por ele. Ou talvez sim, pois a admiração que sempre sentiu por ele era agora bem maior.
Mas e ele? Conseguiria algum dia livrar-se daquele sentimento de inferioridade, que a mina lhe deixou no lugar da perna?
Tantas interrogativas passavam pela sua cabeça, enquanto conduzia a caminho de casa. Precisavam fazer amor. Luísa sentia que era a única coisa que podia por tudo nos seus devidos lugares, para o bem ou para o mal. Só nesse momento intimo, ela saberia se o amor que sentia por Nuno, era maior do que o medo das lembranças que o acto em si, despoletaria. Acreditava que acontecesse o mesmo com ele.
Finalmente chegou ao estacionamento do seu prédio. Nuno já tinha chegado. Saiu do carro mal ela estacionou o veículo. Deu a volta ao carro, e abriu-lhe a porta.
- Olá, – disse saudando-a com um leve roçar dos lábios, pelos seus. - Tive tantas saudades tuas. Vim buscar-te. 
- Olá. Está um trânsito  infernal. Onde vamos? - perguntou abrindo a porta de casa. Sem esperar resposta, acrescentou.
- Espera-me na sala. Vou tomar um duche e mudar de roupa. Não me demoro.


Nota: Aos amigos que manifestaram o desejo de adquirir o RENASCER. O meu mail está no meu perfil.


22.3.22

POESIA ÁS TERÇAS - SONETO 116 - WILLIAM SHAKESPEARE



De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.



 Penso que toda a gente conhece William Shakespeare, daí que não inclua nenhum link de biografia.

21.3.22

DIZEM QUE HOJE É DIA ...



 MUNDIAL DE POESIA


TEUS OLHOS


Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima,
silêncio que fala,
tempestades sem vento, mar sem ondas,
pássaros presos, douradas feras adormecidas,
topázios ímpios como a verdade,
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro
duma árvore e são pássaros todas as folhas,
praia que a manhã encontra constelada de olhos,
cesta de frutos de fogo,
mentira que alimenta,
espelhos deste mundo, portas do além,
pulsação tranquila do mar ao meio-dia,
universo que estremece,
paisagem solitária.

OCTÁVIO PAZ

  **************************************************************************

Mundial da Árvore e Internacional da Floresta



Mundial da Síndrome de Down


Mundial da Marioneta



Internacional da Luta contra a Descriminação  Racial



Europeu da Criatividade Artística



Bom parece que é tudo... 

20.3.22

HUMOR AOS DOMINGOS


 

Um toque de campainha. Dois minutos depois, novo toque. Ninguém atende! Cinco minutos depois outro toque e finalmente uma voz feminina pergunta pelo intercomunicador.
-Quem é?
Da rua respondem:
-Sou eu, D. Amélia, o Bonifácio do talho. Tenho aqui a conta da semana para a senhora pagar.
Responde a senhora:
-Olhe, Sr. Bonifácio, volte daqui a meia hora. Agora estou a pagar a conta do merceeiro.









Num bar um bêbado pede mais uma cervejinha  para continuar a noite em altas. O barman depois de servir o bêbado pergunta ao individuo que estava ao seu lado se pretende beber alguma coisa e o mesmo diz ser testemunha de Jeová e com ar ofendido acrescenta:
- Prefiro ser raptado e violado sucessivamente por uma centena de “meninas da vida” antes que uma gota de álcool toque nos meus lábios.

Rapidamente o bêbado devolve a cerveja ao barman e diz:
- Eu também! Não sabia que se podia escolher…






Bom domingo para todos, e uma feliz Primavera



18.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXVI

 


Acordou encharcado em suor, com uma tremenda dor na perna esquerda. Cerrou os punhos, grunhindo uma maldição. Sabia que estava a ser vítima da DMF, a dor do membro fantasma. Tinha-a sentido várias vezes ao longo daqueles quase dois anos, primeiro com frequência, depois mais espaçadamente. Como médico sabia que na maioria dos casos a DMF desaparece por volta dos dois anos e ele estava quase a fazer dois anos que tinha sido amputado, daí que pensava já ter passado essa fase.
As picadas eram horríveis, sentia como se lhe estivessem a coser a perna a sangue frio.
Abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e retirou um comprimido que engoliu mesmo sem água. Depois mergulhou a cabeça na almofada para abafar os gemidos. Maldita dor.

Meia hora depois, a dor cessou. Nuno sentou-se na cama. Dormira nu, as noites estavam quentes, e ele sempre gostara de dormir assim. Pegou nas canadianas e dirigiu-se à casa de banho. Tomou um duche enxugou o corpo, e colocou a prótese que todas as noites tirava, desinfetava e deixava na casa de banho, pronta para usar após o duche matinal 

Habitualmente fazia uma hora de ginásio antes do duche. Para isso tinha montado aparelhos especiais numa das divisões do apartamento, de modo a cumprir um plano de fortalecimento muscular adaptado ao seu caso.
Porém naquele dia, por causa da DMF, não foi ao ginásio. Vestiu-se e saiu. Era sexta-feira, dia de consultas externas, não tinha cirurgias marcadas, só precisaria ir ao bloco se aparecesse alguma urgência. 
Tomaria o pequeno-almoço, na pastelaria perto do hospital, pois também era à sexta-feira, que a sua mãe chegava logo de manhã para receber o pessoal da empresa de limpezas, que lhe tratava da casa e das roupas, e ele evitava sempre encontrar-se em casa a essa hora.
No dia seguinte fazia quinze dias que literalmente tinha fugido da casa de Luísa, e ainda não tinha tomado uma decisão embora estivesse cheio de saudades dela. 
Pensava que o ser humano é muito complexo. Durante anos ele vivera, amaldiçoando  a jovem e sem qualquer desejo de a reencontrar.

Mas bastou encontrá-la, saber que ela não terminara com ele por ser uma leviana como ele julgara, nem por vontade própria, que o que acontecera tinha sido uma armadilha do destino, na qual os dois acabaram presos, para esquecer todo o rancor acumulado, todo o sofrimento, que o fizera expor-se ao perigo com absoluto desprezo pela vida, e apenas desejar estar junto dela, amá-la e protegê-la.

Mas e ele? Quem o protegeria, da compaixão ou até quem sabe se de sentimento pior, da parte dela, quando visse o seu coto em vez da perna? Não aguentava aquela tensão. Até ao fim do dia, ia tomar uma decisão. A vida não espera, nem se pode adiar.

16.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE XXV


Levantou-se e foi até á janela. Por momentos o silêncio pesou sobre eles. Depois Luísa levantou-se e foi até ele. Pôs-lhe a mão no ombro.

- Olha para mim, Nuno. Olha-me bem nos olhos e diz-me o que vês? É por acaso compaixão? Eu olho para ti e vejo o homem maravilhoso que sempre foste. Um homem bom, um idealista que pôs toda a sua vida ao serviço dos outros, salvando dezenas ou centenas de vidas. Um excelente médico que ainda há pouco tempo salvou a vida dos meus alunos. Um homem que apesar de tudo ainda me olha com amor. Isto é o que vejo, e será o que qualquer pessoa verá. A prótese? É mais um testemunho da excelente pessoa que és.

-É fácil falar assim. Estás a ver-me vestido, e graças a Deus que me adaptei bem, nem sequer claudico, ninguém imagina que não estou inteiro. Mas já me imaginaste na intimidade, quando formos para a cama? Já te imaginaste a fazer amor com um aleijado?

- Parece-me que o aleijão está mais na tua cabeça do que na perna. Imagino que o teu orgulho, não te deixou ter acompanhamento psicológico. Desde quando um homem é, ou deixa de ser inteiro, por uma perna ou um braço amputado? Se tivesses uma doença mental, que não fosses capaz de reconhecer o bem do mal, que fosses incapaz de sentir qualquer sentimento, aí sim, dir-se-ia que não estavas inteiro. Tens medo de ir para a cama comigo? Acaso pensas que eu também não tenho medo? Que eu não penso se tudo o que passei não me tornou numa mulher frígida? Disseste há pouco que o amor que nos uniu, ainda está latente entre nós. Eu sei que sempre te amei, embora tivesse perdido as esperanças de algum dia voltar a encontrar-te. Mas a vida se encarregou de nos conduzir a esta encruzilhada, e só vejo dois caminhos a seguir. Ou  damos uma hipótese, ao amor que ainda nos une, fazendo renascer os sonhos que tivemos em comum, de sermos felizes, ou nos recolhemos cada um à sua toca e levamos o resto da vida a lamber as próprias feridas.  

Calou-se. Ficaram assim frente a frente, fitando-se, olho no olho, durante largos minutos.
- Tens coragem para arriscar? – perguntou ele com voz rouca
- Pensas que te abriria o coração desta maneira se assim não fosse? Mas não se trata apenas de mim. Nem tu, nem eu sabemos como vou reagir na intimidade. Tu também tens muito a arriscar.  Agora é melhor que te vás. Pensa em tudo o que falámos, aqui, esta noite. Esquece os teus complexos. Interroga o teu coração e a tua mente, e vê se tens coragem para arriscar a única hipótese que ainda temos de ser felizes. E quando tiveres a certeza do que queres, sabes que estou sempre aqui.

Ele não respondeu. Encaminhou-se para a porta. Aí chegado, rodeou-lhe a cintura com um braço e puxou-a para si. Lentamente baixou a cabeça, e aprisionou a boca feminina, num beijo  que ele desejava fosse uma terna despedida, mas que se tornou intenso e apaixonado ao encontrar correspondência.
Subitamente largou-a, e saiu batendo a porta.



15.3.22

POESIA ÁS TERÇAS - CONFISSÃO - CHARLES BUKOWSKI




ESPERANDO PELA MORTE

como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
hank!
e hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.




Biografia
AQUI

14.3.22

ARMADILHAS DO DESTINO- PARTE XXIV

 



- Deixa-me pelo menos levar-te a casa. Precisas de um chá ou talvez uma bebida mais forte. Toma, enxuga o rosto, - disse estendendo-lhe um lenço. De seguida pôs o carro a trabalhar e conduziu direto à casa dela. Estacionou junto à porta, e apressou-se a dar a volta ao carro para a ajudar a sair.
- Dá-me a chave. Eu abro a porta.
Procurou a chave na mala e deu-lha. Ele abriu a porta e deu-lhe passagem. Ela acendeu a luz enquanto ele fechava a porta.
- Diz-me onde é a cozinha e vai para a sala. Tenta acalmar-te e lembra-te que não tens que dizer mais nada, a não ser que o queiras fazer.
- Eu sei. Mas preciso de o fazer. A cozinha é por trás dessa porta.
Entrou na sala e sentou-se no sofá. Recostou a cabeça e cerrou os olhos. Pouco depois Nuno entrou na sala com um tabuleiro com duas chávenas de chá, que colocou em cima da mesa. Estendeu-lhe uma chávena e pegando na outra sentou-se no cadeirão em frente.
- O homem com quem meu pai me casou, já era viúvo. A primeira mulher de Álvaro suicidou-se. Dizia-se que sofria de uma depressão grave. O que não era de admirar, se, como acredito, passou pelo mesmo que eu.

Luísa falava devagar em voz baixa, quase como se estivesse esquecida do homem que estava na sua frente, e falasse consigo mesma.

- Foram quatrocentas e vinte e sete noites de terror, contadas uma a uma, como o condenado, que espera o dia da execução. Estava desesperada, só pensava em morrer. Sabes que me tentei matar? Não aguentava mais e atirei-me do carro em movimento. Penso que foi a minha atitude,  que fez com que Álvaro se descontrolasse, e perdesse o controlo do carro. 
Ele saiu da faixa em que seguia e foi embater num camião que vinha em direção contrária. Todos os dias agradeço a Deus a sua morte. Tive acompanhamento psicológico durante anos, mas continuei com medo dos homens. Isolei-me e dediquei-me unicamente aos meus alunos. Hoje foi a primeira vez que saí, e não sei porquê, não senti medo de ti, nem sequer quando me abraçaste no carro.
- Meu Deus, Luísa! Quanto sofrimento. Comparado com isso, aquilo  por que  passei não foi nada. Penso que não tens medo de mim, porque o amor que nos uniu, ainda está latente dentro de nós. Meu Deus, como eu gostava de te tomar nos meus braços, e apagar todo esse sofrimento. Mas não posso. Porque ainda há algo que precisas saber. Há dois anos, no Zimbabwe, chamaram-me para ir ver uma criança num musseque nos arredores de Harare, que estava muito mal.

 Depois de a examinar, verifiquei que ela tinha que ser operada de urgência pois corria o risco de uma peritonite. Tinha que a levar para o hospital. No Zimbabwe como em Angola existem milhares de minas terrestres espalhadas pelos campos. Nunca cheguei ao hospital com aquela criança. Fui vítima de uma mina. Perdi a perna esquerda até à parte de cima do joelho. Estive mal. Não apenas no físico, mas também psicologicamente. Não conseguia aceitar. A minha perna esquerda não existe. É uma prótese. Só os meus pais o sabem, mas nem eles nunca me viram sem roupa. É por isso que não te posso oferecer um futuro. Não sei viver com a compaixão, não suportaria ver pena nos teus olhos, quando me visses nu.