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31.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE VII







Luísa saiu do banho e envolveu-se numa toalha. Retirou do armário o hidratante e espalhou um pouco na palma da mão direita. Sentou-se num banco e deixou que a toalha escorregasse deixando o seu corpo nu e livre. Começou a espalhar o creme de forma automática. O seu espírito estava lá no passado.  No curto noivado, e no casamento com o vizinho, que o pai lhe impusera. Luísa não gostava de Álvaro, embora ele fizesse todos os possíveis para ser simpático e delicado com ela. A farsa foi intensa, devia ter sido bem estudada. Mas a ela, sempre lhe parecera falso. Com trinta e sete anos, tinha quase vinte anos mais do que ela.
 E depois a primeira esposa suicidara-se. Diziam que fora vítima de uma grave depressão. E que o marido sofrera um grande desgosto. Mas Luísa não conseguia sentir compaixão por ele. Antes pelo contrário, de algum modo desenvolvera uma estranha aversão e um medo, cujas causas não sabia definir.  
Na época, a lei vigente no país só dava a maioridade ao individuo aos vinte e um anos. E ela fizera dezoito. Fora criada pelo pai, um homem rude, com muitas ideias retrógradas em relação ao papel da mulher na sociedade. Não havia como fugir da imposição paterna.
O casamento foi combinado entre os dois homens, para o terceiro domingo de Abril. Nessa noite Luísa chorara tanto que de manhã tinha os olhos inchados. Chorara por ela, por Nuno, pelo seu amor perdido. Se ao menos, ele não tivesse ido para África. Quem sabe, de algum modo, ele pudesse protegê-la.
Porém tudo o que chorou nessa noite, não foi sequer, uma ínfima parte do que choraria nas quatrocentas e vinte e sete noite seguintes. Mil anos que vivesse não esqueceria a sua noite de núpcias. A vergonha que sentiu, quando o marido lhe rasgara a camisa de dormir, e a deixara nua e exposta, sem qualquer ato de carinho ou compreensão com a sua pouca idade. E o medo que sentiu, quando ele tirou da gaveta umas tiras pretas e começou a amarrá-la à cama.
Mordeu os lábios afogando o soluço de terror. Como é que ela podia saber que era principalmente o choro dela, o terror, que o marido queria? Era quase uma menina.
Quando ele a penetrou de forma violenta enquanto lhe batia e lhe  chamava nomes ofensivos, ela dorida, magoada, humilhada, e ingénua ainda teve um pensamento de culpa. Pensou, que homem experiente, ele tinha descoberto que já não era virgem e se sentia enganado. E como ela também não se sentia de bem com a sua consciência por ter ocultado esse facto, tentou perdoar. Cedo porem viria a perceber que não se tratava disso. Na verdade nunca chegou a saber se ele se apercebeu desse facto, já que nunca em todo o tempo de casada fez alguma referência ao caso. O marido, era um doente, que só satisfazia as suas necessidades sexuais, através do sofrimento e da humilhação que lhe infringia. Passaram-se alguns meses, até ela perceber, que quanto maior era o sofrimento dela, maior era a satisfação dele.
Se ao menos engravidasse. Um filho podia ser um bálsamo para a sua dor. Mas ele assegurava-se de que isso não aconteceria. Ele mesmo lhe dava a pílula desde o primeiro dia para que a tomasse na sua frente e só deixara de usar o preservativo, um mês depois dela tomar a pílula. Claro se ela ficasse grávida, não poderia ser a escrava sexual que ele fizera dela.



Peço desculpa pela violência deste e do próximo capítulo. Vão perceber pelas memórias da protagonista, que embora ela nada soubesse sobre o assunto, casou com um homem que sofria de um transtorno que dá pelo nome de sadismo sexual.




30.1.22

PORQUE O DOMINGO HOJE É ESPECIAL


 Porque hoje é dia de eleições, quero lembrar a todos os que por aqui passam, que votar é um dever cívico de todos os cidadãos. Assim, seja qual for a vossa cor partidária, não deixem de ir até às urnas e expressarem  a vossa vontade. Não fiquem sentados no sofá à espera de ver o que vai dar.  Se, se excluírem do acto eleitoral, não têm qualquer moral para apoiar, ou reclamar das leis que terão de suportar durante os próximos anos. 

BOM DOMINGO

29.1.22

PORQUE HOJE É SÁBADO



Victor Da Silva & Anna Melnikova - Never Forget - 2018 Adriatic Pearl-Du...


E aqui sim está de novo o par habitual.. Espero que notem as diferenças...


.Para quem me perguntou ontem
Os exames médicos que fui fazer ontem, foram provas de função respiratória com broncodilatador. Quem já fez sabe como é difícil para quem tem problemas respiratórios. 
Saí da clínica no Campo Grande  às 5 horas, levei quase 2 horas a chegar a casa , tão exausta que caí na cama e só me levantei três horas depois.
O resultado é enviado pelo correio dentro de 10 dias.

28.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE VI




Nuno dirigiu-se ao seu carro. Aí chegado, sentou-se ao volante, levou as mãos à cara e deixou-se ficar por momentos assim. Como se necessitasse desse tempo, para reforçar a barreira de indiferença, que a presença de Luísa de algum modo ameaçava destruir.
Depois lentamente, pôs o veículo a trabalhar e arrancou suavemente.

Tinham-se passado dezasseis anos desde que Luísa de uma forma abrupta, terminara a relação que mantinham há dez meses. Sem outra explicação a não ser a de que era muito jovem, não desejava prender-se tão cedo. Ele sentira-se traído, usado. Amava-a e sonhava com ela como sua companheira, e mãe dos seus filhos. Pensava pedi-la em casamento logo que ela  completasse os dezoito anos. Mas ela terminara tudo uns meses antes. 

E ele ficara desesperado. Não era um adolescente. Tinha vinte e cinco anos e sabia muito bem o que queria da vida. Por ela, pelo seu amor, tinha até renunciado aos seus sonhos de partir para terras longínquas, para cuidar dos esquecidos de Deus. Claro, não podia arrastar uma jovem tão frágil e delicada como Luísa para semelhantes lugares. E não acreditava em relações à distância. Conhecia-se. Não seria útil em lugar algum se a sua cabeça e o seu coração estivessem a milhares de quilómetros.

Luísa era uma excelente atriz. Tão boa que ele estava convencido que ela o amava de igual modo. Mas o que ela queria era alguém que a iniciasse nos prazeres do sexo, e decerto o escolhera por pensar que seria mais experiente que os rapazes da idade dela. Pelo menos era o que a sua atitude lhe fazia crer. Ela mudara por completo depois que tinham feito amor. A princípio ele pensara que era por timidez. Mal sabia ele, que ela se estava a preparar, para se descartar dele. Claro. Deixara de ter utilidade. Nunca na sua vida  sentira tal dor, e simultaneamente tal humilhação.

A sua mãe, na tentativa de lhe fazer esquecer, começou a convidar lá para casa, todas as filhas casadoiras das suas amigas. Para acabar com a situação, e também porque era o sonho de toda a sua vida, Nuno pusera em marcha o processo que o levaria para África, deixando a mãe destroçada. O pai, que sempre o apoiou, e que sabia das suas intenções para com Luísa, dizia-lhe que não valia a pena estar assim. Ele era muito novo, e o que não faltavam no mundo, eram mulheres carinhosas e dignas, capazes de retribuir o seu amor e serem companheiras dedicadas. Ele não acreditara na altura como não acreditava hoje.

Tornara-se num solitário. Luísa matara para sempre a sua fé nas mulheres. E ele conhecera muitas, naqueles dezasseis anos.  Era um homem jovem e fisicamente saudável. Tinha desejos como qualquer outro e não fizera voto de castidade.  Algumas aqueceram a sua cama, durante algumas horas. Algumas disseram mesmo que o amavam. Mas as suas declarações, resvalaram pela indiferença dele, como gotas de chuva pela vidraça.
Há três meses que tinha regressado. Pelos seus pais que estavam velhos e saudosos da presença do seu filho único, mas também porque ele já não era o mesmo homem de outrora. Estacionou junto do prédio onde morava. Um apartamento a cinquenta metros da casa dos seus progenitores. Suficientemente perto para os ver quase todos os dias, mas um lugar independente, onde podia lamber as suas feridas sem testemunhas.


E esta tarde estarei em Lisboa a fazer exames respiratórios, que não se fazem no Barreiro e que estão marcados há quase dois meses.


26.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE V

 





A mãe de Luísa, fora uma mulher frágil, que não resistira a uma pneumonia, e morrera quando ela tinha dez anos. José o pai, era um homem rude, de princípios rígidos. Acabou de criar sozinho a filha, dando-lhe tudo o que ela precisava exceto amor. 
Infelizmente para Luísa, o pai era também um homem muito ambicioso, que tinha reparado há muito, na maneira como Álvaro, o seu vizinho olhava para a sua filha. Ele ficara viúvo uns anos antes, quando a sua esposa se suicidara. Não tinha filhos, e era muito rico. Na cabeça do pai de Luísa, ele já  a tinha casado com o vizinho, quando descobriu que a filha andava "enrabichada" pelo jovem médico.

Nuno até podia ser médico, mas não era rico. Ou pelo menos, não o era em terras, que era a única riqueza que José entendia. Entre Nuno e Álvaro a escolha dele era óbvia.
Proibiu terminantemente a jovem de se encontrar com o médico e ameaçou-a de a mandar para a casa dos avós paternos que moravam numa remota  aldeia minhota, onde ela nunca fora e com quem não tinha tido o mínimo contato.
 
Prestes a fazer dezoito anos, Luísa era muito jovem e teve medo de que o pai cumprisse a ameaça. Chorou baba e ranho, mas acabou o namoro com Nuno. Ele não lhe perdoou. E quatro meses depois partia para África. Durante dezasseis anos, apenas uma vez ela o vira, numa reportagem sobre as condições de vida no Bangladesh.
Entretanto o pai combinara o casamento dela com o vizinho, com quem se casara pouco depois de completar os dezoito anos.

Fechou a torneira da água. Abriu o armário e retirou um frasco com sais de banho que espalhou na água. Despiu a blusa e as calças de ganga. Libertou-se das minúsculas peças de lingerie, e lançou uma rápida olhada ao espelho antes de entrar na banheira. Os seus olhos azuis escureceram e o seu rosto contraiu-se num esgar amargo, ao ver as múltiplas cicatrizes que o seu corpo bem proporcionado, apresentava.
Mergulhou na água quente, e cerrou os olhos, tentando em vão esquecer aquilo que acabava de observar. Cada uma daquelas cicatrizes, representavam muitas horas de choro, e sofrimento. Cada uma, abrira uma ferida enorme no seu espírito. Essa era uma das razões porque ela não se queria ver refletida num espelho. 

E a razão que a mantinha afastada dos homens, desde que enviuvara há quase catorze anos. 
Com raiva, pegou na esponja e começou a esfregar a pele com violência. Como se assim fizesse desaparecer dela todas as cicatrizes. Mas não adiantava. Ainda que por algum milagre as fizesse desaparecer da sua pele, jamais conseguiria apagá-las da sua memória.

25.1.22

POESIA ÁS TERÇAS - SE EU TIVESSE CORAGEM - ELVIRA CARVALHO


Reedição



SE EU TIVESSE CORAGEM




Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
para os homens que vivem algemados
aos dias sem pão, nem futuro.


Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
para os operários sem emprego,
engolindo dia a dia
os sonhos afogados no tempo
dum mísero subsídio.


Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
para os jovens, sem tempo nem idade
perdidos
nos tortuosos caminhos da droga.


Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
as minhas fantasias de criança,
a minha ansiedade de adulto,
a minha angústia de idoso,
a minha dor sem dor tão sentida.


Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
a minha fome de justiça
os sonhos que não sonhei
a vida que não vivi
a cruz que sem fé carreguei.


Se eu tivesse coragem,
havia de cantar
contra aqueles que nos dão
falsas ilusões
em forma de 
promessas eleitorais
em vez de pão
habitação
escolas e hospitais.


Ah!... Se eu tivesse coragem...


Maria Elvira Carvalho


in "Perdidamente" Antologia Poetas Lusófonos Contemporâneos

pag 181/182 




24.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE IV


Apesar da enorme tensão que sentia, Luísa tinha-se esforçado por aparentar naturalidade. Agora no táxi a caminho de casa, dava livre curso ao nervosismo que a acometera, quando o olhara no elevador. Reconhecera-o imediatamente, e mentalmente pediu a toda a corte celeste que ele não a tivesse reconhecido.
 Infelizmente isso não acontecera.
Ela sabia que estava hoje bem diferente daquela menina que há dezasseis anos atrás, experimentara nos seus braços todas as delícias do amor.
Olhava sem ver as ruas percorridas pelo táxi, presa às memórias do passado. Tão absorta que se sobressaltou com a paragem do veículo. Pagou e dirigiu-se casa.  
Com mão trémula, abriu a porta. Pendurou a mala no cabide existente no vestíbulo. Dirigiu-se à casa de banho, e abriu a água para encher a banheira.

 Raramente se dava ao luxo de um banho de imersão. Considerava que era um desperdício de água. Gostava mais do duche, mas aquele dia tinha sido muito atribulado, sofrera emoções intensas durante e após o acidente, temera que alguma das crianças com ferimentos mais graves, não resistisse. Depois no hospital tivera que dar apoio aos pais dos alunos que iam chegando em clima de grande aflição. E para terminar o dia encontrava Nuno Albuquerque, que ela julgava em qualquer parte do mundo, menos ali na cidade.

Estava mais velho, claro, tinham-se passado dezasseis anos. Quando se separaram, ele tinha vinte e cinco anos, hoje estaria com quarenta e um embora aparentasse mais. Parecia mais forte, o seu olhar era mais duro, mas nem os fios prateados que lhe adornavam as têmporas, nem as pequenas rugas à volta dos olhos, lhe diminuíam o encanto. Antes pelo contrário. 

Conheceram-se há dezassete anos, numa festa de aniversário de uma colega de escola. Nuno, fora convidado pelo irmão da aniversariante, de quem era amigo e colega. Ambos eram médicos e trabalhavam no mesmo hospital. 
Luísa tinha chegado há poucos minutos, quando se sentiu atraída pelo olhar dele. Foi como se dois polos se atraíssem. Conversaram, riram, dançaram. Toda a noite ficaram juntos. Ele era tão diferente dos seus colegas de escola, que ao seu lado, todos os outros lhe pareciam demasiado infantis. Nuno era um idealista. Ele não pensava fazer carreira naquele hospital. Queria ir para África, para países cujo nome, ela quase desconhecia, dar assistência aqueles que nada tinham. Ela admirara-o por isso. E amara-o ainda mais.
A partir desse dia, e durante meses, encontraram-se quase diariamente. Com ele trocou o primeiro beijo, com ele descobriu as emoções do amor, e os prazeres do sexo .
Porém um dia, o pai descobriu e tudo mudou.

22.1.22

PORQUE HOJE É SÁBADO



Stefano Di Filippo - Anna Melnikova (Румба).flv

E hoje trago-vos a Anna Melnikova que estamos habituados a ver com Victor da Silva, com outro bailarino. 

21.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE III





Nuno, subiu ao terceiro piso, e encontrou o colega, João Santos observando as fichas das crianças que tinham estado a ser operadas nesse dia, e que vinham chegando depois de passarem pelo recobro.  Cumprimentaram-se, trocaram impressões sobre os casos mais graves e despediu-se. 

Retirou a bata que guardou no seu armário, e saiu, no momento em que o último menino, que tinha deixado no recobro, dava entrada na enfermaria. Reparou numa mulher que a meio do corredor, falava com a enfermeira, e pensou que talvez fosse a mãe do garoto. 

Ouviu que a enfermeira lhe dizia que tinha de sair, a hora das visitas já terminara há dez minutos. Dirigiu-se ao elevador, e premiu o botão de chamada, no momento em que a mulher se  despedia da enfermeira e se  aproximava. Havia qualquer coisa de familiar naquela mulher que o sobressaltou. As pesadas portas do elevador abriram-se. Nuno deu passagem à mulher, e entrou de seguida. 

Sentiu que ela o fitava com surpresa, e devolveu o olhar. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, ao fitar os maravilhosos olhos azuis, os mesmos que o perseguiam há muitos  anos.  Ela levantou a mão para afastar do rosto uma madeixa rebelde que lhe caía para os olhos, e aquele movimento desencadeou  nele uma verdadeira revolução 
- Luísa Guerreiro? – perguntou
-Nuno Albuquerque! Tinha a certeza que eras tu.
Não se cumprimentaram como é habitual entre duas pessoas conhecidas que se reencontram.
O elevador parou no rés do chão e os dois apressaram-se a sair. O médico perguntou então:

-Que fazes aqui? Tens alguém hospitalizado?
- Vários alunos. E uma colega.
- Então, eras uma das professoras que seguiam no autocarro que sofreu o acidente?
-Sim. E tu és um dos médicos deste hospital? Julgava-te em África. Ou na Ásia. A última vez que soube de ti, estavas no Bangladesh .
- Isso foi há mais de dez anos. Depois disso fui para África, onde em dez anos trabalhei em alguns dos países mais pobres do mundo. E agora aqui estou.

- De passagem? – perguntou Luísa enquanto saiam do hospital.
- Não. Estou de volta. – respondeu ele com uma certa rudeza
- Desculpa, está ali um táxi, e o meu carro está no parque da escola. Despeço-me aqui.
Estendeu-lhe a mão tremente. Ele apertou-a com a mesma cordialidade que teria apertado a mão de alguém que acabasse de conhecer. Aparentemente a presença da mulher, não lhe causou qualquer emoção. A ela pelo contrário, apesar dos dezasseis anos que se tinham passado desde a última vez que se despediram,  a emoção apertava-lhe o peito e punha-lhe as pernas bambas.


19.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE II

 




Trabalharam exaustivamente durante todo o dia. O autocarro transportava cinquenta crianças e duas professoras. Dez crianças tiveram que ser submetidas a cirurgia, uma por hemorragia interna, as outras por fraturas expostas. Outras trinta tinham, pequenos cortes e escoriações e as restantes embora tivessem saído ilesas do acidente, estavam em pânico. Uma das professoras, sofrera uma pancada na cabeça, e estava em observação por suspeita de traumatismo craniano, a outra saíra ilesa.
Nuno Albuquerque acabou de suturar a perna do menino, e encarou o ortopedista que tinha estado com ele. Dada a multiplicidade da fratura, a criança tivera que levar duas placas metálicas e alguns parafusos para manterem os ossos na posição correta que lhe permitisse a cura.
- Parece que terminámos, colega.
-Já não era sem tempo. Estou estoirado. Felizmente não há mortes a lamentar. Vamos ver como decorre o pós-operatório. Se não houver nenhuma complicação, em breve poderão voltar à sua vida normal – disse Ricardo Ferreira, o ortopedista.
O doutor Ricardo era um homem não muito alto, meio calvo, de olhos vivos e ar bonacheirão, daquelas pessoas, a quem parece que a vida está sempre a sorrir e nada há  que os abale. Tinha completado há pouco cinquenta anos, era casado e tinha três filhos, um dos quais acabara de se formar, e estagiava naquele mesmo hospital.
-Não sei se será assim tão fácil. Alguns terão que fazer terapia, ou ficarão com traumas para a vida inteira.
Encontravam-se na ante sala do bloco, onde retiravam as roupas anteriormente esterilizadas com que acabavam de trabalhar e voltavam às suas batas normais.
- Talvez, mas nestas idades, as crianças conseguem ultrapassar bem estas coisas. Diferente seria se algum deles tivesse morrido. Aí sim, ia ser mais problemático. Bom colega, terminei o meu turno, às quatro e são oito. Vou passar pela minha ala, falar com o colega que me substitui e vou até casa. Estou estoirado. O colega também terminou ou está de serviço?
- Também terminei às quatro. Vou fazer o mesmo. Até à próxima Ricardo. É sempre muito bom trabalhar consigo.
- Eu digo o mesmo Nuno. Até à próxima.
Seguiram cada um para a ala da sua especialidade, que na prática ficavam em direções opostas.

18.1.22

POESIA ÀS TERÇAS - LOUCA PERIGOSA - ELVIRA CARVALHO

 

                         Foto DAQUI
Porque estamos em campanha eleitoral, eis aqui o meu contributo. O poema não é novo, foi publicado em 2016  e é um dos meus poemas mais visualizados.



Louca Perigosa


Deixem-me ir para a rua
quero gritar
chorar
cantar.
Quero levantar bem alto
a bandeira
do desespero.

Quero rir-me de ti
de mim
de todos nós.
Quero que os bandidos
chorem
a dor
e a vergonha
de o serem.

Quero dar pão
A quem tem fome
e dar água aos sedentos.
Quero dar amor
carinho
ternura
a quem vive só.

Quero sofrer com o presidiário
e sorrir feliz com os noivos.
Quero dar um lar aos órfãos
E trabalho a quem o procura.
Quero que todos os políticos
unam esforços
numa aliança firme
por um mundo melhor.

Quero acabar com o terrorismo
e as penas de morte.
Quero acabar com a fome
a poluição,
e a guerra.

Deixem-me ir para a rua
Deixem-me erguer bem alto
a minha bandeira.
E escrevam depois nos jornais
Que anda por aí à solta
Uma louca perigosa.

Elvira Carvalho 


in "Perdidamente" Antologia Poetas Lusófonos Contemporâneos
pag 179/180 


17.1.22

ARMADILHAS DO DESTINO - PARTE I

 

Percorria a ala de pediatria no terceiro piso do hospital, quando o som da sirene de uma ambulância lhe chegou aos ouvidos , logo seguido de outros sons igualmente agudos o que lhe trouxe à memória outros sons outras paragens.
Aproximou-se da janela que dava para a entrada do hospital, onde se situavam as urgências. Viu duas ambulâncias paradas e pelo menos mais três que se aproximavam. Apressado deu a volta, e encarando a enfermeira que se encontrava junto de uma das camas, disse:
- Parece que esta visita terá que ficar para mais tarde. Se surgir alguma complicação estarei nas urgências.  
Afastou-se. Estava quase a chegar aos elevadores, quando ouviu ;
- Atenção doutor Albuquerque! Solicita-se a sua comparência imediata nas urgências.
O elevador acabara de parar junto dele e apressou-se a entrar. Era um homem alto, de cabelos negros, já quase grisalho nas têmporas.
Testa alta, nariz retilíneo, olhos cinzentos, queixo firme e boca bem desenhada. Teria pouco mais de quarenta anos, mas a sua expressão dura, e o seu olhar frio, faziam-no parecer mais velho.
Percorreu a distância do elevador até às urgências em meia dúzia de passadas rápidas.
Ali reinava o caos, com várias macas de crianças a chorar.
-Foi um acidente com um autocarro de miúdos que iam em passeio de estudo – informou a enfermeira. 
 O médico não respondeu. Depois de um breve olhar pelas macas dirigiu-se a uma delas e observou a criança. Dirigindo-se à enfermeira com quem falara momentos antes, disse.
-Enfermeira leve esta criança para o bloco operatório, e reúna a equipa de cirurgia. 
Chamou outra das enfermeiras.
- Por favor, verifique os médicos que se encontram no bloco das consultas externas, e diga-lhes para virem para cá. É uma emergência, não sabemos quantos feridos graves serão, é necessário atuar rapidamente. Vou para o bloco operatório. Aquele menino está com uma hemorragia interna. Poderá haver outras crianças na mesma situação.
Debruçou-se sobre um miúdo que chorava em silêncio. Observou-lhe o corte na testa, verificou as suas pupilas e certo de que o corte não oferecia gravidade, afastou-se em direção ao bloco operatório

15.1.22

PORQUE HOJE É SÁBADO




Victor Da Silva and Marina Muzyka - Miami  Pro-Am Show July 2018


Bom dia.
Quem acompanha este blogue há anos, sabe como eu gosto deste Victor da Silva, um Luso- Sul Africano, que já atuou em algumas galas em Portugal.  Tenho-o apresentado neste espaço sempre com Anna Melnikova, sua companheira habitual. Hoje trago-o com outra bailarina, Marina Muzyka. 

Espero que gostem

14.1.22

AMOR - CLARICE LISPECTOR (CONTO COMPLETO)

 


Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Clarice Lispector )
(Os cem melhores contos brasileiros do século – Página 212)

13.1.22

PORQUE ME APETECE



HEARTFELT DANCE PERFORMANCES! Yang Shih Hao Impressed The Judges With Hi..


O VÍDEO É UM POUCO LONGO, MAS  SÃO TRÊS ATUAÇÕES QUE VALE A PENA VER PELA SUA EXTRAORDINÁRIA BELEZA..

12.1.22

AMOR - CLARICE LISPECTOR (CONTO COMPLETO)

 


O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. 




CONTINUA

11.1.22

POESIA ÀS TERÇAS - MÁRIO QUINTANA

 

Seiscentos e Sessenta e Seis

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos…
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.


in Poesia Completa – Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005, p. 479

10.1.22

AMOR - CLARICE LISPECTOR (CONTO COMPLETO)



 

Amor – Clarice Lispector

(Texto incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.)

 

 

 

 

 

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.


CONTINUA