Apertou-o com força, com
espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o
mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora
fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da
verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de
machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? —
agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da
fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o
chamado do cego? Iria sozinha… Havia lugares pobres e ricos que precisavam
dela. Ela precisava deles… Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da
criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino.
Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te
esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e
correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que
jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa
cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os
dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava
diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já
não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior
vontade de viver.
Já não sabia se estava
do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e
em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos.
O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que
pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia
violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã.
Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida
porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser
um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que
sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o
cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A
vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh!
mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este
sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala.
Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a,
como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da
poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena
aranha. Carregando a jarra para mudar a água – havia o horror da flor se
entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia
ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno
assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água
parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao
redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de
um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da
cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite
em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o
suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio,
vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas
todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu.
Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças
ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil
obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas.
Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão
dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As
crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana
prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos
foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que
olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de
novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de
amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias
boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do
fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e
deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou
vibrando toda.
Ele se assustou com o
medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse,
sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho
rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido
afago.
— Não quero que lhe
aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos
me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força
nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa
toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde.
Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher,
levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de
bondade.
E, se atravessara o amor
e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem
nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou
a pequena flama do dia.
( Clarice
Lispector )
(Os cem melhores contos brasileiros do
século – Página 212)