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17.8.19

LONGA TRAVESSIA - PARTE XXVI

   
Era ela quem sustentava a casa. Fazia limpezas. Trabalhava de manhã à noite. E aos fins-de-semana ainda lavava roupas para fora. Ele só sabia beber. E quando queria dinheiro e ela não lho dava, batia-lhe. Lembro-me de ser bem pequeno, e meter a cabeça debaixo dos cobertores para não ouvir os seus gritos, nem o choro da minha mãe.
 Um dia, tinha os meus sete anos, estava no primeiro ano, a escola ia fazer uma recita de Natal. Fui escolhido para entrar. Na altura estavam na moda uns ténis que se tornavam luminosos com o andar. Todos os meninos da minha sala os tinham, menos eu. Então a professora disse que seria bonito que todos os levassem calçados no dia da recita. Faria um efeito muito bonito no palco.
Fiquei muito triste. Cheguei a casa a chorar. A minha mãe quis saber o que se passava, e eu contei-lhe. Prometeu que me comprava os ténis. Naquela semana trabalhou mais horas do que nunca
Na sexta-feira à saída da escola levou-me à sapataria e compramos os ténis. Não cabia em mim de contente. Escondi-os  debaixo da cama, e fiquei a sonhar com o dia da festa. Todos os dias quando chegava da escola,ia buscar a caixa, e sentava-me na cama, a olhar para eles. Eram tão bonitos. Não via a hora de os poder calçar. Porém no  dia da festa, a caixa não estava no sítio. Procurei por todo o quarto, e não a encontrando fui perguntar por ela, à mãe. Disse-me a chorar que ele os tinha descoberto, e os tinha entregado na loja em troca do dinheiro. Só não me disse que era para se embebedar, mas não era preciso. Eu sabia. Jurei à minha mãe que havia de ser um homem muito rico. Depois, enlouquecido pela raiva, ou pela vida que levávamos, adoeci de tal modo que fiquei de cama. Levei três dias com febre, e vómitos.
Falava baixo e devagar. Notava-se quão penosas eram aquelas recordações. Teresa tinha os olhos rasos de água. Não conseguia imaginar, uma criança com um sofrimento tão grande. Levantou a mão e acariciou ternamente a face masculina. Não era a carícia de uma mulher apaixonada. Era a carícia de uma mãe, solidária com o sofrimento do filho.
Rui agarrou os ténis, e pressionou-os na mesa, fazendo com que uma corrente luminosa, percorresse a face visível da base.


8 comentários:

noname disse...

Essas pessoas, nunca pensam, no mal que fazem a uma criança. Mais, nem lhes passa pela cabeça que adulto estão a formar.
É triste, mas esta história tem muito a ver com a realidade que, todos os dias, ouvimos falar.



Boa noite Elvira

Cidália Ferreira disse...

Por muito rico que se venha a ser jamais se esquece os tormentos do passado! Uma estória onde tantos /as, se revêm...Estou a gostar muito!


Beijo. Bom dia.Bom fim de semana.

Maria João Brito de Sousa disse...

Não duvido de que os primeiros dez anos de vida de um ser humano sejam extraordinariamente marcantes e definam o homem ou a mulher que está em construção. Assim foi com este seu personagem, infelizmente, e assim foi comigo, felizmente.

Espero que a sua pequenina Margarida continue a florescer a bom ritmo e que tanto a Elvira quanto o seu marido continuem a melhorar.

Forte abraço

chica disse...

Gostei de ler mais esse e assim acompanhar...beijos, chica

Teresa Isabel Silva disse...

Ainda não me consegui atualizar, mas estou a gostar!

Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

Os olhares da Gracinha! disse...

Recordações dolorosas podem ter um rumo interessante... Bj

Tintinaine disse...

Hoje andei todo o dia na vadiagem, mas ainda cheguei a tempo de marcar presença e desejar um bom dia de domingo!!!
A novela segue o seu curso a caminho de um final feliz.

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Retomando a história de onde parei e apreciando mais um capítulo emocionante!
Beijos!