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13.10.18

PIEDADE - UMA MULHER DE OUTROS TEMPOS



                                                        

Quando Piedade soube que estava de novo grávida, pensou que o mundo lhe caía em cima. Corria o mês de Setembro de 1917, e o mundo agonizava entre uma guerra que durava já há três anos, e a gestação de uma revolução prestes a nascer na União Soviética. Nessa altura os Alemães tinham-se apossado de Riga, e a Itália fazia frente ao império austro-húngaro perto de Piave, onde se refugiaram no mês seguinte, e de onde conseguiram por fim rechaçar as tropas inimigas. O reino Unido lutava comandado por esse extraordinário coronel que foi T. E. Lawrence, na Palestina, e com o auxílio dos Árabes, aproximava-se de Jerusalém. Os Americanos tinham entrado na guerra e o Brasil preparava-se para declarar guerra à Alemanha e entrar no conflito ao lado dos Aliados. O Corpo Expedicionário Português, combatia na Flandres ao lado dos Aliados e os jovens portugueses embarcavam para as colónias portuguesas tentando defendê-las de algum possível ataque  do inimigo. Em Portugal, acontecia a quinta  aparição em Fátima, envolta pelo controvérsia, entre os que acreditavam nos videntes e se deslocavam religiosamente à Cova de Iria, e aqueles que juravam que as aparições, mais não eram do que uma manobra do governo, para desviar a atenção dos Portugueses, que mal preparados para a guerra sofriam pesadas baixas, e ainda dos constantes embarques de jovens para as colónias portuguesas, duas situações que sangravam a Pátria da sua juventude masculina. 
Mas tudo isto passava ao lado de Piedade, uma ignorante mulher, duma aldeia do interior norte de Portugal,  que nada sabia do que se passava por esse mundo de Cristo. Ela nada conhecia para além da sua pequena casa, numa aldeia encravada entre montes, onde habitava com os filhos, tendo por companhia constante a fome e a miséria.O companheiro partira para o Brasil em busca de uma vida melhor e nunca mais dera notícias. Ela nem sabia se era vivo ou morto. Com ela ficaram os dois filhos, uma menina de dois anos e um rapazito, recém-nascido e muito enfezado, a quem ninguém profetizava uma vida longa. Sem emprego, Piedade, percorria as poucas casas da aldeia e de outras aldeias vizinhas, oferecendo-se para trabalhar, na lida da casa, ou no campo, cujos trabalhos não tinham para ela segredos. Meses antes, ela conhecera um homem de uma aldeia vizinha, solteiro, com alguns campos, e que lhe prometera, ajuda para criar os dois filhos em troca de “certos favores”. Piedade não sabia nada de métodos anticoncecionais.
 A falar verdade ela se juntara com o pai dos filhos com apenas dezasseis anos quando a mãe morrera. O pai nunca o conhecera. A mãe nunca lhe falara sobre as coisas da vida. Quando Piedade se juntou com o Joaquim, não foi por amor. Amor era um luxo a que os pobres não chegavam. Foi uma espécie de troca. Ele ajudou-a a pagar o funeral da mãe, e ela pagou-lhe com a sua virgindade. Depois, foi ficando por lá, punha comida na mesa, pagava a renda da casa, e ela satisfazia-lhe os apetites sexuais. Que a falar verdade, duravam o tempo necessário para ele se satisfazer. Piedade “embuchou” uma vez e as despesas cresceram. Quando “embuchou” a segunda vez, Joaquim disse que o primo que estava no Brasil lhe mandara uma carta de chamada, que ia embarcar e quando pudesse a mandava buscar e aos filhos. Joaquim terá ido mesmo para o Brasil? Quem sabe, se partiu ou se apenas se quis livrar de responsabilidades e despesas. A verdade é que estivesse onde estivesse, nunca mais lhe deu notícias.
 Com duas crianças pequenas, Piedade arregaçou as mangas e foi à luta. Mas a vida era muito difícil, o trabalho no campo bem duro, e mal pago. Ninguém da atual geração, terá uma noção exata do que era a vida em Portugal na primeira metade do século vinte. Um dia inteiro, não chegaria para contar as vezes que ficava sem comer, para dar de comer aos filhos.
 Por isso aceitou a ajuda do lavrador, para quem trabalhava. Era  viúvo. Esse facto dava mais coragem a Piedade. Ela não seria capaz de estragar o casamento de ninguém, E Alberto parecia sincero e bom homem. “As aparências iludem” diz o povo e com razão. Quando o homem soube que ela estava grávida, simplesmente a pôs na rua com os dois filhos e com a indicação de que nunca mais lhe aparecesse na frente. Ela chorou tudo o que tinha a chorar e depois recomeçou a jornada de porta em porta, procurando trabalho. O seu ar franzino não mostrava a força de que aquela mulher era dotada. Em Abril de 1918, poucos dias depois do desaire português, na Batalha de La Lys, nasceu o terceiro filho de Piedade. Era um rapazinho pequeno e franzino,  mas saudável. 
Para criar os três filhos, Piedade trabalhou no campo, até deixar de sentir as costas, de tanta dor, lavou roupa no rio até as mãos sangrarem, deitou com a fome, levantou com a miséria, mas não chorou que as lágrimas tinham acabado há muito tempo. 
Um dia, depois que os filhos emigraram em busca de uma vida melhor, deixou-se dormir, e nunca mais acordou.



Fim

 Maria Elvira Carvalho




20 comentários:

Quase Cinderela disse...

Maravilhosa.
Uma história tão verdadeira, tão real... Tantas Piedades existiram no Mundo e em muitos lugares ainda existem. Eu conheci algumas ainda, uma delas está no Céu.
Obrigada pela linda história querida Elvira.
Muitos beijinhos

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Uma historia triste que pode muito bem ter sido real , que nos leva ao Portugal de á cem anos atrás , que muitos jovens deviam ler .
Um bom fim de semana .
JAFR

Maria João Brito de Sousa disse...

Gostei muitíssimo deste seu conto, Elvira.

Estou segura de que, com uma ligeira mudança de cenário, ainda haverá por aí muitas Piedades.

Abraço e um sereno Sábado.

chica disse...

Que história triste e tão real para tantas mães e mulheres! Linda! bjs, chica

Olinda Melo disse...

Um enquadramento perfeito do que se vivia no mundo de então, incluindo a vida em Portugal que não era das mais fáceis, em especial para as mulheres.

A história da Piedade com um final triste retrata bem essa realidade.

Obrigada, Elvira.

Bj

Olinda

António Querido disse...

Que a Piedade tenha piedade de nós e faça com que os políticos vão distribuindo umas migalhas connosco e deixem de pensar só no saco deles!

Com o meu abraço.

Janita disse...

Se não me engano, tive agora o gosto de reler esta história já contada aqui no seu espaço, Elvira. Corrija-me, por favor, se estiver enganada.

Pois é verdade, sem que seja preciso procurar muito e ainda que com outros contornos mais modernos, tenho a certeza que há mais Piedades por esse mundo afora, não só por cá.
Mulheres sofridas, marginalizadas só porque o seu único erro foi terem amado demais.

Um abraço, Elvira.

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Um excelente texto minha amiga.
Um abraço e bom fim-de-semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados

Anete disse...


Uma história bem triste e que nos faz pensar... O nome da personagem é reflexivo também... Há tantas realidades tristonhas ao nosso redor, só Deus para trazer transformações e consolações... Piedade, Senhor!…

Um bj

Larissa Santos disse...

Reflexos de vidas tão verdadeiras...naquele tempo.

Bjos
Votos de um óptimo sábado

Edum@nes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edum@nes disse...

Porque, nem tudo se esquece no tempo que passa,
desde que na memória para sempre fique bem gravado
como Piedade não se esqueceu de que estava grávida
mulher lutadora não desiste até encontrar trabalho!

Tenha um bom fim de semana amiga Elvira.
Um abraço.

Teresa Isabel Silva disse...

Simplesmente fabuloso, e de certeza o retrato de muitas mulheres!

Bjxxx
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Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Que vida triste a dessa mulher e de tantas outras.
Eram tempo muito difíceis e trágicos num mundo machista e sem compaixão.
Muito bem escrita, como sempre.
Beijinhos e bom fim de semana
Ailime

Maria do Mundo disse...

Fiquei comovida. Lindo. Há tantas mulheres assim!

acedre disse...

Non vas acreditar pero o Leo e a Xela tiveron unha tartaravoa cunha vida parecida que lle desapareceu o pai dos seus fillos no Brasil e tivo que pasar penalidades para manter os fillos.
Que non volvan eses tempos.

aluap disse...

Houve muitas Piedades, mulheres fortes e sofredoras, mas não amargas, eram amorosas e doces e criaram seus filhos com honradez.

Elvira, para completar a árvore de sua família consulte este site:

http://www.genregis.com/

Disponibiliza registos anteriores a 1911.
Depois,como sabe, o Estado recolheu os livros desses registos, na Torre do Tombo, em Lisboa, e nos Arquivos Distritais, que são dependências regionais da Torre do Tombo.

Abraço.

Cidália Ferreira disse...

Retalhos de uma vida tão sofrida! Amei!

Fosse eu, a flor que perfumasse teu interior
Beijos e um excelente fim de semana.

lis disse...

Uma história comovente.
Não parece ficção Elvira_ acontece todo dia por esse nosso mundo afora.
Triste.
Parabéns_muito bem escrita.
Abraço, amiga.

Portuguesinha disse...

Triste.
Tocante.
Real.

Pareceu-me reconhecer a história... que tinha outro final. Há uns tempos li aqui no seu blogue uma história parecida, de outra mulher como a piedade, tal e qual... talvez viúva. Nasceu-lhe um filho "especial" e os filhos tiveram de emigrar para a cidade grande, empregarem-se em diferentes empregos e a mãe ficou doente... e o filho cuidou dela até que... a vida seguiu o seu curso...

Dou muito valor a histórias como esta. É muito real. Piedade existiu. Ainda existe. As pessoas esquecem o papel da mulher e como era reduzido na sociedade e tão forte individualmente. Socialmente pouco podia fazer, porque as normas eram muito penosas para a mulher e muito de despenalizar o homem. Mas era a mulher que ficava encarregue de povoar a terra e de criar esse povo. O homem espalhava a semente. Enquanto lhe apetecesse ficava por perto, quando as coisas tornavam-se mais difíceis e a "recompensa" (Sexo) já não lhe interessava ou achava que ia encontrar melhor, fazia-se à estrada sem mais nada ligar. Crápulas. Que ajudaram, ainda por cima, a disseminar doenças sexuais. O homem sempre foi muito promíscuo por natureza. A mulher, só por necessidade.