Quando eu era menina (e já lá vão tantos anos) o Natal era uma festa.
Meus pais, e meus avós maternos, diziam que na noite de Natal, o Menino Jesus, vinha recompensar os meninos bons e trazer presentes.
Nós vivíamos num barracão de madeira que em tempos fora habitado por quatro casais e respetivos filhos, mas no qual ficaram apenas os meus pais, quando os outros casais se foram. O barracão tinha um salão com onze metros de comprimento, ao fundo do qual havia um fogão, constituído por duas fileiras de tijolos, com uma grelha em cima, e um forno de tijolo onde minha mãe cozia o pão.
Pelo Natal em alguns anos, vinham meus avós maternos, que viviam em Santa Cruz da Trapa, uma aldeia beirã, no concelho de S. Pedro do Sul, afim de passarem o Natal com os filhos, noras, genros e netos. Juntavam-se todos lá no barracão por ser o único sítio onde cabia toda a gente.
Por essa altura já o meu tio, Zé Varandas, e a minha mãe tinham três filhos cada.
Era uma ceia de muita gente, de muita alegria, embora as iguarias fossem poucas. Meus avós sempre traziam um pouco de queijo, coisa que não víamos no resto do ano, minha mãe fazia rabanadas, e minha tia Celeste as filhoses. As couves e as batatas, eram do quintal que meu pai cultivava à roda da casa, e o bacalhau era comprado na Seca que naquela altura sempre era vendido aos trabalhadores, por um preço especial. Alguns anos, a tia Carolina fazia uma travessa de aletria, que tinha de ser muito bem dividida, para que todos pudessem provar.
Não havia rádio, nem televisão, nem sequer luz eléctrica. Mas havia em casa três candeeiros a petróleo, que na noite de Natal ficavam acesos até depois da meia-noite.
Muito antes do Natal, meu pai colhia no pinhal perto da nossa casa, muitas pinhas, que secava, abria e debulhava. Partia alguns pinhões para comermos e os outros eram para jogarmos, nessa noite em que toda a gente ia para a cama muito tarde. Ele mesmo fazia uma piorra com o Rapa, Tira, Põe e Deixa. Ou então jogávamos ao "Pinhas Alhas" que era assim. Sentávamos-nos à roda da mesa e cada um tinha um pequeno monte de cinquenta pinhões, não descascados, para começar o jogo. Pegávamos uns quantos na mão fechada, e dizíamos para os parceiros "Pinhas alhas" e os outros respondiam "abre a mão e dá-lhas". "Sobre quantas?" E cada um dizia um número. Se alguém acertasse na quantidade que tínhamos na mão, tínhamos que dar os nossos pinhões. Mas em compensação recebíamos aquela mesma quantidade de cada um que errara. nas mãos. Era o nosso entretém.
Pelas onze horas, tios e primos regressavam às suas casas, e meu pai dizia que tínhamos de ir para a cama. Antes porém, íamos pôr os tamancos de madeira, que ele mesmo fazia, e que eram o nosso calçado, junto ao fogão, para o Menino Jesus deixar os presentes.
Sapatos só tínhamos um par, e era para a ida à missa, ou ao médico. E nós lá deixávamos os tamanquitos e íamos para a cama na esperança, de que nesse ano, o Menino Jesus, deixasse uns brinquedos, iguais ou parecidos, aos dos filhos do capitão, que geria a Seca do Bacalhau, onde os meus pais trabalhavam e nós vivíamos.
Não sei se foi assim convosco, mas eu nunca ouvi falar no Pai Natal, senão no final dos anos sessenta, em Lourenço Marques, atual Maputo. Talvez pela proximidade com a África do Sul, lá se cultivava muito o mito do Pai Natal. Por cá, na minha infância era o Menino Jesus, que em vez de receber prendas no seu aniversário,vinha distribuí-las pelos meninos, que se portaram bem durante o ano. Porém todos os anos no dia de Natal, era sempre uma desilusão, pois em vez dos brinquedos esperados, ou até de uma peça de roupa, mais bonita, só havia meia dúzia de rebuçados e dois ou três figos secos.
Lembro-me que um ano, talvez por volta dos meus seis anos, uma vez, que ainda não andava na escola, e naquela época entravamos aos sete anos, decidi esperar acordada a chegada do Menino Jesus, para lhe perguntar porque é que deixava lindos brinquedos aos filhos do capitão, que eram meninos ricos, a quem não faltava nada e a nós que éramos tão pobres, que não tínhamos sequer um boneco, só deixava rebuçados. Consegui manter-me acordada durante um bom bocado e a certa altura ouvi barulho e saltei da cama, para me confrontar com o Menino Jesus.
Quando somos crianças, temos tanto de inocência como de atrevimento, de modo que saí decidida do quarto, e apanhei a minha mãe a pôr os rebuçados nos tamancos. Fiquei muito revoltada, pensei que o Menino Jesus não queria saber de nós, porque éramos pobres e não tínhamos uma casa de pedra. Chorei tanto, que a minha avó que para me acalmar, me explicou que o Menino Jesus, não vinha dar prendas a ninguém, que era uma tradição dizerem isso, porque fazia anos que Ele nascera, mas que na verdade, as prendas, eram dadas pelos pais e os meus não tinham dinheiro que desse para outra coisa que não os rebuçados. Foi um choque e um alívio ao mesmo tempo.
Elvira Carvalho
Nota: Um resumo deste conto foi publicado agora numa coletânea de contos de Natal da Chiado Editora. Como não pude ir ao lançamento, ainda não tenho o livro, quando tiver publico a foto.
Teve que ser resumido pois eles limitavam os contos a 500 palavras.
12 comentários:
Parabéns por mais esse belo conto em livro publicado merecidamente! E é tão estranha a sensação de perder a magia no Natal, saber que as coisas não são bem como nos contaram.... ADOREI! BJS, CHICA
Gostei muito deste seu conto, auto-biográfico, segundo creio, Elvira.
Nas casas em que eu cresci, não havia grandes luxos. Esses eram vistos por todos nós como um insulto aos que nada ou quase nada tinham, mas nunca vivi numa casa sem luz eléctrica e havia sempre um presente à minha espera na árvore de Natal.
Abraço e um feliz Natal, amiga.
Parabéns pela publicação deste belo conto.
Aproveito para desejar um Santo e Feliz Natal.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Maravilhoso conto...Delicioso de ler :))
Bjos
Votos de uma óptima terça-feira
Que belas memórias....algumas também são as minhas.
Os meus foram Natais Felizes acreditando sempre no Menino Jesus.
Passados em casa dos avós maternos (que afinal foi quem nos ajudou a criar)a avó lavava a chaminé para quando o Menino fosse pôr as prendas estivesse tudo limpinho. Eu e o meu irmão quase não dormiamos e ouvindo por vezes o tal barulho pensando " é agora está a chegar...."
Com poucas prendas éramos Felizes,e sabíamos que no Dia de Natal tínhamos roupas para estrear.
Os tempos são outros...algumas para bem outras nem tanto...mas que haja sempre o Espírito de Natal nas Famílias
Beijinhos
Já li este conto no ano passado, Elvira. Ou sonhei com isso.
Bom Natal!!!!
Um lindo conto de Natal, com algumas tristes realidades inerentes às condições da época !
Para os mais novos, sempre é bom relativizarem essas condições, das quais, muitos não farão a menor ideia !
Foram tempos muito difíceis e é bom que se apercebam das dificuldades por que muitos passaram, mesmo em período de Natal, habitualmente de "fartura" !
Um Grande Abraço e votos de um Muito Feliz Natal, Elvira !
Oi Elvira
Nem sabes como gosto desses seus contos da infância e dos tempos da seca do Bacalhau.
Agora esses de Natal, belíssimos!
E, mesmo com algumas adversidades seus contos nunca tem nenhuma réstia de mágoa_ são sempre de muita sabedoria e até algum atrevimento,haja visto a menina inteligente que ja se apresentava ali.
Muito lindo! emociona, aquece a alma e dá lições de superação,de coragem e de extrema beleza e harmonia.
Obrigada , amiga
Feliz Natal e perdoe-me nao estar muito presente.
grande abraço
Boa noite Elvira,
Parabéns pela publicação do conto, que retrata tempos difíceis que se psssaram durante o fascismo. Tudo mudou, mas tenho saudades do Natal da minha infância que publiquei em Memórias de uma aldeã.
Beijinhos,
Ailime
Belo conto Elvira. Eu também soube muito cedo que o Papai Noel não existia e, portanto, não dava nada a ninguém, mas sim, os pais das crianças.
Abraços e um Feliz Natal e um excelente Ano Novo para ti e para os teus.
Furtado
Seu texto é maravilhoso. O conto dispensa comentários, você já falou tudo o que todos precisamos ouvir; que alcance os ouvidos moucos e os corações frios ao sofrimento dos pobres.
Pra muitos, pobre não é gente...
Um abraço e parabéns por ter seu conto publicado.
Lindo!!!Parabéns pela participação em mais uma Colectânea da Chiado Editora e votos de muito sucesso!
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