Amália, engoliu as lágrimas, afivelou a máscara de mulher feliz, e saiu para a rua. O dia estava lindo, o sol aquecia o corpo e era como um balsamo para o seu coração.
Era ainda uma mulher muito bonita apesar de já não ser muito jovem. Tinha uma farta cabeleira negra, uns doces olhos castanhos, e uma boca bem desenhada. Alta, magra mas bem proporcionada. E era sobretudo uma excelente atriz, embora nunca tivesse subido num palco. Porque ninguém diria, ao vê-la caminhar pela rua, pisando com segurança, saudando com um sorriso um ou outro conhecido, ou brincando com as colegas no emprego que não era uma mulher feliz.
Oriunda de uma família pobre, Amália estudara até ao final do secundário com grande sacrifício dos pais. Impensável entrar para a Universidade, naquela época, a vida era muito difícil e embora ela tivesse sonhado com mais, viu-se obrigada a procurar emprego. Pouco tempo depois, conheceu aquele que viria a ser o pai dos seus filhos.
Alexandre, parecia ser um bom rapaz, era alegre, e a sua boa disposição encantou-a. Namoraram e casaram num domingo de Maio.
Ainda nem bem terminaram os primeiros seis meses, de casamento, e Amália já se dava conta de que o marido não era aquilo que ela imaginara. Saía após o jantar, com um “até já, vou ali ao café “, mas raramente voltava antes da meia-noite, uma hora. Amália arrumava a cozinha, preparava os almoços para o dia seguinte, as roupas e finalmente caía cansada na cama, já que no dia seguinte tinha que se levantar cedo. Quando o marido chegava, raramente vinha “sozinho”. A acompanha-lo vinha um insuportável hálito a álcool. Amália fingia que dormia, para não iniciar uma discussão altas horas da noite. Na manhã seguinte, quando lhe chamava a atenção, ele era agressivo, dizia que ela era maluca, que estava a insinuar que ele era bêbado e que bêbado tinha ela o juízo. Por essa altura Amália soube que estava grávida.
Quando contou ao marido ele ficou muito feliz e durante três ou quatro dias não saiu de casa à noite. Renovaram-se as esperanças da jovem. Porém, como sol de Inverno, durou pouco, nem deu para que as esperanças da mulher ganhassem raízes.
Quando Amália desabafou com a mãe, esta que fora criada no conceito de obediência ao marido, disse-lhe:
- Tem paciência filha. Ele é bom marido, isso é o álcool. E depois a tua avó sempre dizia: “quem se obriga a amar, obriga-se a padecer”.
Foi nessa altura que a jovem, afivelou a máscara de mulher feliz e enveredou pela carreira de atriz no palco da vida.
O filho nasceu, foi uma enorme alegria para ela, mas nem o nascimento do filho trouxe um novo comportamento ao marido. Cada dia bebia mais, cada dia estava mais agressivo. Não que lhe batesse, diga-se em honra da verdade que isso nunca fez. Mas os gritos, os nomes que lhe chamava, e até as coisas que partia, era tão mau ou pior do que as agressões físicas.
Quando o filho tinha três anos, depois de uma violenta briga, Amália tomou a decisão de se separar do marido. Nessa altura o divórcio ainda não tinha chegado a Portugal.
O marido caiu de joelhos, implorou perdão, disse que daí para a frente ia ser diferente, que nunca mais iam brigar, prometeu o mundo e a lua, como se costuma dizer.
Pensando no filho, ela decidiu dar mais uma oportunidade ao casamento.
Alexandre levou uns dois meses sem sair depois do jantar. Estava muito mais calmo, parecia um homem diferente, muito embora algumas vezes parecia que já tinha bebido um pouco, quando chegava do trabalho, mas enfim não seria grande coisa, já que ele se mostrava controlado. Por essa época Amália engravidou de novo.
Uma malfadada infeção na garganta, uns medicamentos que tomou, que possivelmente anularam o efeito da pílula. Porque ela jurava que a tomara sem falha. Pouco depois o marido voltou a sair à noite e a chegar a casa, não bêbado, mas como se dizia antigamente “atravessado” Quando vinha bêbado, caía na cama, às vezes até vestido e dormia. Quando vinha “atravessado” implicava com tudo, dava pontapés nas coisas, dizia palavrões. O tempo corria, o segundo filho de Amélia, nasceu era uma menina linda que fez o encanto do irmãozinho.
No dia em que a menina fez um ano, o marido fez um escarcéu com ela numa loja de roupas infantis, que a deixou indignada e envergonhada. Era a primeira vez que o fazia em público, e Amália saiu da loja sem compras e a chorar.
Em casa, pensou seriamente na vida e chegou à conclusão de que para se separar do marido só se fosse para casa dos pais, pois o seu ordenado, não chegava para pagar uma casa, e por comida na mesa para ela e os filhos. Sem falar que havia que pagar à ama dos filhos, ou não poderia trabalhar.
Pensando nisso pegou nos filhos, disse ao marido que ia visitar os pais, e foi sonda-los. Porém não encontrou apoio da parte deles. A mãe voltou com a tal máxima de “quem se obriga a amar, obriga-se a padecer”, o pai disse que não lhe arranjara marido, fora escolha dela, por isso era ela que tinha que resolver o problema, “ que entre marido e mulher ele não metia colher”
Voltou para casa, e no dia seguinte antes do marido ir para o trabalho, pôs os pontos nos is.
Ela estava farta daquela vida. Ou ele deixava a bebida ou ela deixava de ser sua mulher. A escolha era dele. E como sempre que ela ameaçava separar-se, o marido implorou, fez promessas, teve o desplante de dizer que bebia para perder o medo de a perder, pois não saberia viver sem ela. Amália, percebeu que ele era doente, e teve pena dele, dela e dos filhos. Dele, porque não reconhecia que era doente e precisava de ajuda, dela porque era jovem e tinha pela frente um futuro de sofrimento, e dos filhos que amavam o pai e não tinham culpa de nada. Mas quando o marido voltou a beber, Amália comprou um divã e instalou-se no quarto da filha. E nunca mais foi mulher de Alexandre embora vivam na mesma casa. Quando os filhos casaram, ela podia enfim pedir o divórcio. Mas nessa altura Alexandre estava muito doente, e nem ela teria coragem de o abandonar, nem os filhos, iam compreender que o fizesse nessa altura, depois de uma vida inteira de sofrimento.
Passaram-se quatro anos. Alexandre conseguiu superar a doença, já não bebe, mas está mentalmente muito envelhecido, quem sabe se efeito do álcool bebido sem regra, durante tantos anos. Ela sofre, porque nada é mais triste do que ver, dia a dia, a degradação mental de uma pessoa.
Hoje, Amália põe toda a sua felicidade e enlevo nos dois netos que os filhos já lhe deram.
E no emprego que apesar da crise, mantém. O futuro… quem poderá saber o futuro? Há muito que ela vive um dia de cada vez.
Fim
Maria Elvira Carvalho
19 comentários:
Ah, Elvira!
Conheço bem essa história... não aconteceu comigo, mas com pessoas muito próximas.
O alcoolismo é uma doença, segundo a OMS, mas as pessoas envolvidas (parentes e amigos) muitas vezes desconhecem e tem dificuldade de lidar com um alcoólico.
Graças a Deus que temos os grupos de AA (Alcoólicos Anônimos), uma irmandade maravilhosa!
Costuma-se dizer que o alcoolismo não é uma doença contagiosa mas é .contagiante.Isto porque todos os familiares, na maioria dos casos são fortemente atingidos.
Gostei, e muito da postagem. Não esperava...
A quem ler e precisar, saiba que no mundo todo existem salas de Alcoólicos Anônimos. As reuniões são sempre às !9:horas e são abertas com a "Oração da Serenidade".
Um abraço em você e todos os que por aqui passarem.
Desta vez, brinda-nos com um pequeno conto que, infelizmente, continua muito actual, Elvira.
Forte abraço,
Maria João
Bom dia
Quantas e quantas mulheres fazem esse papel de atrizes e sofrem sem que ninguém saiba o quanto elas são infelizes . Por vezes o álcool outras os ciúmes e sei lá o que mais fazem com que a vida delas seja um autentico drama .
JAFR
Amália, com trinado
a fado
Há atrizes assim
tal como está escrito aqui
por ti
O futuro ninguém sabe...
Boa semana!
Isabel Sá
Brilhos da Moda
Quantas Amalias existiram assim :( Triste mas bom.
Hoje :-
Existem sussurros na brisa.
Bjos
Votos de uma óptima Segunda - Feira
Uma bela história, gostei.
Um abraço e boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Passei, li e...deixo um abraço! :(
Mas uma história da vida tal como ela é.
Viver um dia de cada vez, é a sina de quase todos nós, Elvira. :)
abraço
Lindo teu conto,Elvira e bem dentro da realidade... Temos mesmo que viver cada dia ! beijos, linda semana,chica
Só quem luta consegue vencer. Foi o que Amália fez!
Tenha uma boa tarde amiga Elvira. Um abraço.
Um conto realista e tristonho, mas muito bem escrito, Elvira. Conheço casos assim, difíceis, viu, ver as famílias sofrendo...
Uma boa semana. Bj
Adoro o ultimo paragrafo... Independentemente de tudo, o futuro pode ser maravilhoso!
Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram
Bem atual... infelizmente!!!
Bj
Uma realidade ainda tão presente
Bjs
Kique
Hoje em Caminhos Percorridos - Alerta - Cuidado com alguns produtos Alimentares
Boa noite Elvira,
Gostei imenso deste conto.
Ainda hoje há muitas mulheres que se anulam e sofrem junto de maridos alcoólicos.
Grandes dramas em que estas mulheres como Amália, colocam uma máscara, para disfarçar o seu sofrimento.
Um beijinho.
Ailime
Ia dizer que nem começaria a ler o que de momento não tenho disponibilidade para acompanhar com a devida e continua atenção, quando reparei que este era mesmo o final de mais uma história "Amália". Pensando eu ainda que esta seria mais uma das histórias por capítulos da amiga Elvira, logo também pensei voltar um destes dias e procurar todos os anteriores capítulos para se possível ler tudo num ou dois fôlego/s. Quando por via doutros comentários me apercebi que afinal "Amália" é um pequeno conto, isso sim com grande substancia, que rapidamente li e no qual revi similitudes com situações idênticas que lamentavelmente conheci e conheço bem de perto!
Fica a minha gratidão e os meus parabéns à estimada amiga Elvira pela excelente execução dum pequeno-grande conto; a que acima de tudo acrescem os meus conclusivos votos de que a sua saúde esteja a evoluir muito positivamente.
Salutar abraço de amizade e admiração
VB
Um conto bem pertinente à época atual. Assim como essa, existem muitas Amálias neste mundo de DEUS. Belo conto Elvira!
Abraços,
Furtado
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