Gonçalo acabou de jantar. Levou o prato sujo para o lava loiça, e ligou a máquina de café. Eram oito e meia e ele ainda queria dormir umas duas horas antes de se dirigir ao hospital onde passaria a noite nas urgências. Não conseguia deixar de pensar naquela mulher que segurara nos braços durante alguns segundos nessa manhã e na estranha sensação de que ela era parte de si mesmo.
Aquilo nunca lhe acontecera antes. Passara o dia em casa
da irmã, mas não quisera ficar para o jantar, pois precisava de por os seus
pensamentos em ordem, coisa que não conseguia lá em casa, com a natural
traquinice dos sobrinhos por um lado e por outro a insistência de Laura em que
ele devia arranjar uma companheira.
Fugira do lar paterno por causa da mania casamenteira da
mãe. Agora era a irmã. Como se fosse fácil! Desde que há mais de treze anos
sofrera aquele terrível acidente, que o deixara cinquenta e cinco dias, em coma
no Hospital de Santo António no Porto e mais de seis meses em tratamento, no Serviço
de Medicina Física e .de Reabilitação do Hospital de Braga, para onde fora
transferido quando recobrara a consciência, que vivia numa constante procura,
embora para ser sincero, nem sabia bem de quê. O acidente fora tão grave, que os médicos
chegaram a julga-lo perdido, segundo lhe disseram mais tarde ao assegurarem-lhe que
estar vivo, era um verdadeiro milagre.
Todavia as mazelas físicas não foram o pior, apesar de
quase o terem matado. O pior fora a amnésia. Uma perda de memória parcial
devido, segundo os médicos, à parte do cérebro afetado pela pancada, ou segundo
o psicólogo, que o visitou no hospital, a algo ou alguém, em que ia a pensar no
momento do acidente e que o seu subconsciente não quer recordar, para não
sofrer de novo o choque brutal que quase o matara.
O acidente ocorrera no último dia de Setembro, ia fazer
dentro de meses catorze anos. Gonçalo conduzia a sua mota nova, que o pai lhe
oferecera pouco tempo antes como prenda de aniversário, de Braga onde fora
visitar os pais, para o Porto, quando um carro que seguia em sentido contrário
e cujo motorista adormecera ao volante, veio em cima dele. O choque violento,
projetou-o para fora da estrada, fazendo-o embater contra o muro de uma quinta.
Quando acordou no
hospital, as vivências dos últimos anos, tinham desaparecido. Com o tempo, o
apoio psiquiátrico e psicológico, que o hospital lhe disponibilizara, a sua memória foi voltando, mas havia um
pequeno lapso de tempo que Gonçalo não conseguiu recordar e que o deixava
frustrado. Era como se não estivesse inteiro, e isso mesmo o afastara sempre de
uma relação séria.
A última recordação que tinha era a de ter ido de férias
para o Algarve, com uns amigos, dois meses antes do acidente. Sabia que se tinha apaixonado por uma jovem
nessas férias, pois os amigos brincavam com ele sobre isso, mas não se lembrava
dela, nem sequer do seu nome, e não quisera contar aos amigos o que se passava
com ele, para não ser motivo de troça ou de pena. Nem mesmo a família sabia,
pois lhes fizera crer que tinha recuperado a memória por completo.
Desde essa data que inconscientemente procurava essa mulher
em todas as que se cruzavam com ele. Mas como encontrar uma mulher sem nome nem
rosto? Convencido de que isso era impossível, acabara por desistir, porém nessa
manhã, quando aquela mulher chocara com ele, o seu coração acelerou e o seu
corpo reagiu de forma esquisita, como se de alguma forma reconhecesse aquele
outro que lhe tinha caído nos braços.
Seria ela, a mulher por quem se apaixonara no passado? Num
breve segundo, quando a olhou pareceu-lhe descobrir surpresa no olhar feminino.
Tinha de descobrir quem era, e se tivera no passado alguma ligação com ele.
Fosse quem fosse a mulher com quem, segundo os amigos, vivera uma
intensa história de amor naquelas férias, tê-lo-ia esquecido e estaria
decerto casada, pelo que não esperava outra coisa que a sua libertação do
passado, para poder pôr um ponto final naquela época e encarar enfim a vida,
como qualquer homem da sua idade.
Bebeu o café, lavou o prato e a chávena e depois de os
guardar foi para o quarto, descalçou os sapatos e deitou-se vestido sobre a
colcha. Precisava dormir um pouco as noites no Serviço de Urgências costumavam
ser complicadas, mas não sabia se ia conseguir.
17 comentários:
Gostei!!! Afinal, ele não foi um sacana e vai, com toda a certeza, reconstrir a sua vida. Vai Começar de novo aquilo que foi obrigado a interromper. Beijinhos, Elvira e espero que estejam todos bem de saúde. Boa noite!
Emilia
Uma guinada que tudo muda.
Bom dia
Começa a desenhar-se mais uma historia emocionante.
JR
E a história começa a fazer sentido. Vem aí romance a sério e um pai para a miúda que anseia por ele.
Bom dia !!!
Agora sim, entende-se a ausência do Gonçalo.
Elvira, senhora contista, que belo e bem escrito capítulo. Parabéns!
Beijo.
Está explicado, e bem, o afastamento misterioso de Gonçalo.
Agora é só aguardar que tudo se encaminhe ao gosto dos leitores...
Um abraço, Elvira.
As atitudes dele justificadas agora... Lindo! beijos, chica
A vida e os seus caminhos tortos.
Bom dia, Elvira
Está explicado o que levou ao afastamento do Gonçalo e da Lena.
Apesar do lapso de memória, a química entre os dois, despertou o seu subconsciente.
Continuo a seguir com interesse.
Abraço, Elvira, tudo de bom !
A vida tem destas coisas! Gostei de ler:)
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Encantamento das estrelas...
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Beijo e um excelente dia
Boa tarde Elvira,
Emocionante o que acabei de ler e tão bem narrado.
Tinha que ter havido algo grave para justificar o que aconteceu.
Tudo agora explicado.
Um beijinho e saúde.
Ailime
Afinal Gonçalo não se esqueceu de Lena. Mais dia menos dia. Se a isso estiverem destinados. Poderá, talvez, acontecer o encontro que ambos anseiam?
Continuação de boa semana amiga Elvira. Um abraço.
Estou a gostar de acompanhar!
Bjxxx
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E a Elvira com todo seu talento tira da manga o mistério que envolvia a Lena e sua filha nascida de um amor que tinha ficado no passado.
Gostando desse desenrolar, amiga,
`um romance sempre é muito bom de ler e tu sabe nos fazer apaixonar também
beijos e sáude, Elvirinha
Muito bem, Elvira. Está criado o suspense. Será um sono reparador o de Gonçalo ou o contrário?
Aguardemos, então.
Uma boa noite, Elvira, e que o descanso seja para si reparador.
Interesting
Imagino que quando a amnésia apaga o passado ou pedaços do passado não é fácil começar de novo.
Bom domingo !
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