Era uma vez um burro. Velho e cansado como todos os burros, que viveram anos e anos, dia após dia, sempre carregando no lombo, pesadas cargas. Agora, no fim da vida, ele só esperava que o seu dono o deixasse morrer em paz. Mas parecia-lhe que não era essa a intenção dele, quando nessa manhã de Inverno o levou para a feira. O burro, que não era tão burro quanto o seu nome dizia, percebeu que o dono, a quem servira toda a vida, se ia desfazer dele, porque achava que não tinha mais préstimo. E embora reconhecesse que até já não tinha forças para grande coisa, doía-lhe a ingratidão do dono.
Esperaram por mais de três horas
na feira. De vez em quando aparecia alguém que parecia interessado no burro,
mas ao analisá-lo de perto concluía que era demasiado velho para o que
precisavam, e depressa se desinteressavam.
Um dos que se aproximaram para o
ver, dissera mesmo ao dono. "Está velho. Já não tem préstimo. Devia
abatê-lo"
O velho burro estremeceu de
terror. E pensou que os homens eram animais perigosos. Serviam-se dos outros
animais, enquanto eles podiam, executar por si as tarefas mais difíceis, e
quando estavam velhos, matavam-nos. Pensou se eles fariam o mesmo aos da sua
espécie. Mandariam abatê-los quando estavam velhos?
Ao findar do dia, quando o dono
se preparava para fazer o regresso, e o pobre burro, não pensava noutra coisa
que não fosse a frase cruel ouvida de manhã, sem conseguir descortinar no seu
dono se era ou não isso que ele ia fazer, um homem alto e magro de ar calmo e bondoso
aproximou-se do burro e do seu dono.
Examinou-o e perguntou o
preço.
-Muito alto para um burro velho,
-disse.
Voltou a examinar o burro.
Passou-lhe a mão pelo lombo. O burro estremeceu. Sentiu os calos na mão do
homem, e no entanto aquela mão, transmitiu-lhe uma tal doçura, que o pobre do
burro não habituado a isso, ficou maravilhado. Ah! Se ele soubesse rezar,
decerto teria rogado ao Deus do homem, para que o comprasse, de tal
forma o desejou. Mas ele era apenas um burro.
-Dou-lhe metade, -disse o homem
O dono regateou. E o homem virou
costas decidido a partir. O burro ficou triste. Tão triste, que uma lágrima
turvou o seu olhar cansado. Mas então o dono, perdida já a esperança de
melhor preço, chamou o homem.
Este voltou atrás e fez a compra.
O homem pegou o burro pela
arreata, e dirigiu-se para casa. Pelo caminho falou como se soubesse que o
burro o entendia:
-Estás velho, amigo. Vamos a ver
se consegues ajudar-nos. Para te ser sincero, preferia um animal mais
novo. Mas não vi nenhum. E ainda que visse, talvez não tivesse dinheiro
suficiente para o comprar. Espero que dês conta do recado e nos ajudes na
viagem.
A palavra viagem, não agradou ao
velho burro, que já sentia as patas fracas. Mas entre uma viagem e a
morte, que decerto o esperava na volta para casa do seu antigo dono, a
escolha era óbvia.
Relinchou tentando dar ao novo
dono, uma confiança de que ele próprio duvidava.
Nessa noite, foi o burro muito
bem tratado, em palavras e ração, pelo que adormeceu feliz da vida.
Na manhã seguinte, eis que o
homem se apresenta com a esposa, e uma carga que lhe põe no lombo, e os três
empreendem a tal viagem. De vez em quando, o burro olhava a mulher, que se
apresentava em adiantado estado de gravidez, e pensava que ela não ia aguentar
muito tempo a caminhada. Em breve teria que a carregar. Temia não ter
forças para isso.
A meio do dia, fizeram uma pausa.
Tiraram-lhe a carga e deixaram-no livre, para que pastasse algumas ervas
que por ali espreitavam entre o gelo do inverno, enquanto o casal se sentava
sobre um pedaço de rocha e comia alguma coisa.
Pouco tempo depois, o homem pegou
o burro pela arreata e levou-o até junto da mulher que se mostrava visivelmente
cansada. O burro percebeu que tinha chegado o momento tão temido. E se ele não
fosse capaz de levar a mulher? Que seria do casal, perdido no descampado ermo,
em pleno inverno?
O homem ajudou a mulher a montar
e pegando na carga até aí transportada pelo burro colocou-a às costas e os três
recomeçaram a viagem.
Mal retomaram a marcha, o velho burro
abriu ainda mais os seus grandes olhos, espantado. Que milagre era aquele?
Porque não sentia qualquer peso no lombo? Será que a pobre mulher tinha
caído? No seu estado? Virou a cabeça, para constatar que ela seguia bem sentada
no seu lombo.
Então porque ele não sentia
qualquer peso? Seguia sem esforço, caminhando melhor que nos anos da sua
juventude. E assim seguiram os três até que à noitinha chegaram à cidade. O
burro reconhecia aquela cidade. Várias vezes lá fora com o antigo dono. Até já
ficara num estábulo numa daquelas ruas, uma vez que o dono pernoitara na
cidade. Por isso, quando depois de percorrerem várias estalagens, não
encontraram lugar para pernoitar, e o casal já desanimava, na eminência de terem que pernoitar ao ar livre naquela noite fria de Inverno, o velho burro,
ansioso por mostrar a sua gratidão ao casal, tomou o rumo do estábulo que ele
conhecia bem.
Elvira Carvalho
Elvira Carvalho
25 comentários:
Tinha certeza que seria lindo! Assim foi! Adorei teu conto! Valeu ler! beijos, chica
Que linda história, Elvira, quanta ternura!
Muito criativo, você pegou um burrinho que realmente estava dentro de todo o contexto e fez a caminhada nos levando junto. Muito bom, amiga, Aplausos! Contos de Natal não têm como ficarem à margem de nosso gosto.
Beijo /carinho
Já conhecia, mas valeu a pena ler de novo!
Muito, muito bonito, este seu conto, Elvira :)
Obrigada por tê-lo reeditado.
Um abraço
Lá está. Há burros de 4 patas que são mais gratos que muitos humanos !!! :)
Abraço :)
Adorei ler, muito bonito!
Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram
Maravilha. Leu-se de um só fôlego. Gostei bastante.
Abraço, Elvira.
Lindo de se ler! Bj
Ainda dizem as más línguas de que não há burros inteligentes. Se lerem este conto talvez mudem de ideias. Um burro velho, mas feliz por ter encontrado quem o salvou da morte?
Tenha uma boa noite amiga Elvira.
Um abraço.
Muito muito bom de se ler, bom para ler às crianças :)!
Beijo. Boa noite!
Boa noite Elvira,
Um conto lindo, muito bem escrito.
Os meus Parabéns!
Beijinhos,
Ailime
Teu conto inverte o ditado
pois o céu chegou às vozes do burro
Conto para contar em qualquer escola
dos valores humanos, está lá tudo
A cheirar a Natal.
Gostei muito.
Não me lembro de ter lido na primeira edição.
Abraço
Gostei bastante deste conto.
Um abraço e continuação de uma boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Parabéns Elvira, por esta história de Natal bem escrita, linda e inspiradora.
O burro é um animal calmo, inteligente, leal, grato. Já o homem... é sim "um animal perigoso", capaz de destratar e abandonar os seus velhos em hospitais e lares.
Gostei muito!
Beijo.
Com a ajuda divina até os burros são inteligentes! Há uns bons anos atrás os burros em Portugal eram tratados como doutores! Gostei da história.
O meu abraço
Isso não se faz Elvira, pôr-me a chorar logo pela manhã... 😊
É a primeira vez que leio este seu conto e tenho tantas coisas que lhe queria dizer... que o li de um só fôlego, que tive pena que a história não continuasse mais um pouco (ou ele tem ainda uma segunda parte?), dizer-lhe que me emocionei profundamente com este conto de Natal tão humano e tão sensível.
Bem haja Elvira
Um abraço com muito carinho e admiração
(^^)
Que delícia ler esse conto,amiga!
Amei sua maneira leve de dizer coisas fortes!
Bjos no coração,amiga escritora!
http://www.elianedelacerda.com
UM conto repleto de mensagem construtiva!...
AbçsssssssssssssssssssssssssssS
A gratidão é dos sentimentos mais nobres, ainda que por vezes pareça estar em desuso.
Uma história linda e muito bem narrada. Um excelente conto, resumindo.
Elvira, continuação de boa semana.
Beijo.
Li de seguidinha e já imprimi para ler aos netos. Obrigado Elvira e venha mais contos dos teus:)
Beijos
Elvira peço imensa desculpa mas queria dizer que iria imprimir para ler aos netos. Depois tive de sair e quando voltei tentei e podes ficar descansada porque não consegui e deveria logo ter vindo dizer isso, mas varreu-se-me!
Um abraço e mais uma vez desculpa!
Feliz é aquele que reconhece tudo aquilo que lhe é feito de bom. Bela história/estória amiga.
Abraços,
Furtado
Mais uma ternurenta história de Natal... época em que alguns gestos de bondade e reconhecimento... ainda têm lugar... quero crer...
Grata por mais uma encantadora partilha, Elvira!
Beijinhos
Ana
Pois é ben lindo !.
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