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29.1.20

OS SONHOS DE GIL GASPAR - PARTE XXXII




Meia hora depois, voltou ao quarto. O homem dormia embora se movesse agitado. Luísa voltou para a cozinha, a cabeça mergulhada num oceano de interrogações. Porque mostrara ele uma tão grande aversão pelo hospital? Teria algum trauma de infância? E quem seria?  Ele dizia que não se lembrava de nada. Mas seria verdade? Ou esconderia a sua identidade por motivos que só Deus saberia? E o que fazia, perdido numa noite de tão grande tempestade? Ter-se-ia evadido de alguma cadeia? "Que estupidez, mulher. Os prisioneiros não têm fatos daqueles nem camisas de seda", - murmurou. 
Mas porque não tinha com ele quaisquer documentos? Teria tido algum acidente? Mas se assim fosse não ficaria na estrada à espera de socorro? A sua casa não ficava propriamente perto da autoestrada, e a estrada que dava acesso até à sua porta, estava assinalada como troço sem saída. O melhor mesmo era telefonar ao doutor Fonseca, e se o médico entendesse que devia ir para o hospital chamava a ambulância e pronto. Por muito que o homem não quisesse ir, ela não ia arriscar. Vamos que ele lhe morria em casa? Ia ver-se metida numa série de problemas.
Pegou no telemóvel e procurou nos seus contactos o nome do clínico. Foi atendida pela sua assistente
-O doutor Fonseca está com uma doente, e não gosta de ser interrompido. Pode deixar-me o seu contacto que o doutor liga-lhe depois.
Luísa deu-lho. Ela conhecia o médico, quase desde que tinha ido viver para aquela casa. Um dia, estava a pintar junto ao rio, quando a dona Aurora, esposa do médico, a encontrara numa das caminhadas que fazia diariamente por ali. Era uma senhora muito simpática. Parara a ver a evolução da tela que  pintava e depois elogiara o seu traço, as cores, enfim, o seu trabalho. A partir dali encontraram-se muitas vezes e Aurora sempre parava junto dela para dois dedos de conversa. Até que um dia a convidou para lanchar em sua casa, e Luísa que não conhecia ninguém na zona, aceitou agradecida. 
Trocaram confidências. Aurora sentia-se muito só. Ser mulher de um médico, fora de uma cidade grande, ou mesmo de uma vila importante, não era fácil. Fonseca era o único médico num raio de vários quilómetros para norte, e para sul até Penacova. A qualquer hora do dia ou da noite era chamado e há anos que não tinham férias.  “Como Deus não quis que tivesse filhos, só posso esperar que o meu António, se resolva a reformar-se, para não ter que viver os meus últimos dias tão só como sempre vivi” confessara-lhe uma vez. Um dia apresentara-lhe o marido. Era um homem de média estatura, meio careca, de sorriso fácil e ar bonacheirão que inspirava simpatia e confiança. Tinha a certeza que o médico lhe ligaria, logo que possível e isso deixou-a um pouco mais tranquila.
Meia hora mais tarde o médico retornou a chamada.
-Bom dia, Luísa. Aconteceu alguma coisa? Viu a minha mulher?
- Bom dia doutor. Não vi a sua esposa. Deveria tê-la visto?
-Esta manhã ela estava muito preocupada consigo por causa da tempestade, e disse-me que se o tempo melhorasse, ia até aí ver se estava bem.
- Não veio, e nem é aconselhável que venha com este tempo. Já lhe telefono, para que fique descansada. Doutor tenho aqui um doente a arder em febre. Seria possível o doutor vir examiná-lo.
-Claro que sim. Tenho ainda um paciente para consulta, mas logo que termine vou para aí.
Muito obrigado, doutor. Então até logo.




No  ultimo capítulo vocês perguntavam porque o Gil não queria ir para o hospital se não se lembrava de quem é.
Talvez que no seu subconsciente as memórias das cirurgias que sofreu em tempos, ou do tempo em que a sua esposa morta, esteve ligada às máquinas para salvar a vida da filha que tinha no ventre, se imponham apesar de conscientemente não ter recordações. A mente humana é muito complexa.





15 comentários:

Janita disse...

Tomara que a Luísa não conte ao Gil que chamou o médico, caso ele entretanto acorde. É bem capaz dele fugir e a história retroceder.

Obrigada pela explicação final, que veio de encontro ao que eu tinha pensado e dito, Elvira. Como sabe sou uma leitora atenta. :)

Tenha uma noite descansada.

Ailime disse...

Boa noite Elvira,
Acompanhando com muito interesse.
Uma história que cativa.
Beijinhos,
Ailime

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Cada dia que lemos mais um capitulo , mais a ansiedade aumenta .

JAFR

Maria João Brito de Sousa disse...

Em relação à sua explicação final, subscrevo as palavras da Janita.

Deixei a pergunta no ar porque me pareceu interessante que explorasse um pouco essa fobia do Gil Gaspar.

Forte abraço, Elvira.

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Está a ficar interessante.
Continuação de uma boa semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros

Os olhares da Gracinha! disse...

Tal como disse a nossa mente é incrível... Bj

João Santana Pinto disse...

Delicia-me a qualidade do texto e o próprio enredo.

Quantas vezes não temos receio de fazer algo sem saber muito bem porquê...

A mente humana é demasiado complexa, assim como a escrita... A poesia tem a arte de cativar pela elegância, num charme e perfumado que delicia os sentidos. A prosa tem o desafio de não "aborrecer" o leitor, de o atrair a querer seguir e de ter um fio condutor e uma coerência que faça parecer possível o acontecimento, mesmo quando se escreve sobre algo de irreal... Este conto, até aqui, está extraordinário e assim que tiver u pouco de maior disponibilidade, vou aos seus arquivos para ver o começo da aventura do Gil.

Abraço e boa inspiração

isabel disse...

A adorar ler este conto minha querida Elvira
Bem haja

Anete disse...

Aos poucos descobrindo os sonhos do personagem/Gil Gaspar...
Estou gostando...
Bjs e alegre quarta-feira...

Pedro Luso de Carvalho disse...

Olá, Elvira!
Gostei desta sua narrativa tão atual em termos de literatura, na qual as suas personagens encaixam-se perfeitamente no mundo de hoje, em que vivemos.
Uma boa continuação da semana, amiga Elvira.
Um abraço.
Pedro

Gaja Maria disse...

Seguindo a história com muito interesse. Abraço Elvira

Edum@nes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Edum@nes disse...

Eu fiz essa pergunta. Porque será que o Gil não quer ir para o hospital? No capitulo anterior. Só depois me lembrei de que seria pelo trágico acidente que originou a morte de sua esposa e o tempo em que permaneceu no hospital.

Luisa chamou o doutor, acho que fez bem. Gil precisa de ser tratado e só o médico o poderá fazer.

Tenha uma boa noite amiga Elvira. Um abraço.

Tintinaine disse...

Também eu vou acompanhando a história e só me queixo por ter que esperar 48 horas que ela continue.
A minha saúde vai como sempre, o segredo é aguentar as dores. Fiz uma TAC e vou consultar uma fisiatra para saber se há maneira de combater as dores sem tomar anti-inflamatórios. E a vida continua!

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Acompanhando esta história encantadora!
Beijos!