reedição
Encontrava-me sentada na soleira da minha porta. Tinha por hábito sentar-me ali todos os dias à tardinha. Gostava de ver o sol esconder-se, lá longe, atrás do rio, que vinha espraiando-se até quase à minha porta. Gostava de ver os bandos de passarinhos que regressavam, sabe-se lá de onde, enquanto os grilos iniciavam os seus cantos, e as luzes começavam a aparecer do outro lado do rio. O sol desaparecera há pouco, deixando apenas um clarão avermelhado, sobrepondo-se ao azul do céu.
Ouvia-se o bater de remos na água. Chap...chap...chap...
Logo depois vozes fortes sobressaindo por entre o bater dos remos. Nestes rios de águas salgadas, afluentes de outros rios, abundam pequenos peixes, como a tainha, a boga, os chocos e xarrocos. Ao cair da noite, se a maré está cheia, os pescadores vão pôr "o cerco". Umas redes colocadas em círculo, presas por estacas. Quando a maré começa a vazar, todo o peixe que estava naquele perímetro tenta fugir e fica preso nas redes. Mais tarde, com a maré já vazante,, mas ainda com água suficiente para a navegabilidade dos botes, os pescadores recolhem as redes onde o peixe ficou preso. Às vezes meu pai deixava-me ir no bote para ajudar.
Nos finais de Outubro os dias são já mais curtos, pelo que a noite caiu rapidamente. Aos meus ouvidos chegou a voz de um grupo de homens que eu ainda não via, mas que se aproximavam e eu sabia bem quem eram. Os trabalhadores da quinta regressavam às suas casas falando alto como de costume. Falavam das dificuldades da vida, do dinheiro que faltava para cobrir as necessidades da mulher ou de um filho doentes. E falavam do tempo e do futebol. Sim o futebol era tema constante das suas conversas.
-Vamos ter chuva - dizia o ti 'António Moço que por ironia do destino era o mais velho dos trabalhadores
-Parece que sim, - retorquiu outro, e acrescentou. - Está mau este ano para secar o Bacalhau. Com este tempo de chuva que tem feito, nem o pessoal ganha nada de jeito, nem o patrão que o Bacalhau que se estraga só dá prejuízo.
- Pois sim Bernardino, mas nós ficamos sempre pior. Com os dias de chuva do mês passado, levámos mais de 15 dias sem trabalhar, e sem ganhar. E o pior é que comemos todos os dias.
-É verdade. Nem me quero lembrar disso. O dinheiro não chegou para pagar ao merceeiro. Isto de um homem levar um dia inteiro, de enxada na mão, exposto às condições do tempo e depois não ganhar para comer...
Passavam agora à minha porta. E foi nesse momento, que o Bernardino, mais inconsciente, talvez por ser o mais jovem, mudou o rumo à conversa.
Ó! Ti’António e que me diz à vitória do campeão no Domingo?
As vozes foram ficando cada vez mais longe e já não consegui ouvir a resposta.
- Olá pequena!
Olhei sobressaltada
-Olá ti'João, então só agora?
-É verdade. Estive ali sentado na muralha a ver os pescadores. Ah! Quem me dera ir com eles pôr o cerco. Mas isto é a vida. Enquanto um homem é novo, farta-se de trabalhar, chega a velho e pronto; não pode com as pernas, as mãos tornam-se inúteis e adeus, era uma vez um velho.
-Ora não diga isso ti'João, ainda não é tão velho assim...
-Não filha - interrompeu-me ele, - ainda não estou a morrer, mas olha que já faltou mais. Ah! Se o meu filho fosse vivo, outro galo cantava.
- Morreu em África não foi? -
- Morreu. E olhe que era um rapagão. Alto forte, moreno dos ares do campo e do mar. Não era por ser meu filho, mas levava a palma a qualquer rapaz cá da terra. Foi para a tropa, e em menos de um ano fiquei sem ele.
- Coitado - murmurei, e levantando a voz perguntei:
- Morreu na guerra?
-Sim. Oh! Malditas sejam as guerras que levam o sangue novo da humanidade. Veja lá a menina, se vale de alguma coisa a vida de um homem, na flor da idade e cheio de saúde, na frente duma metralhadora. Nunca foi doente, nunca sofreu de nada, sonhava casar-se, ter filhos…
Calou-se por momentos. E continuou em voz sumida como se falasse apenas para ele mesmo.
-Dizem que o meu filho foi um herói e deram-me uma medalha. Medalha! Bah! Que me importa a mim a medalha? Ela não me acarinha, não conversa comigo, quando à noite me vejo em casa sozinho, nem me dá o neto que me tornaria mais doce a velhice, -terminou num soluço rouco.
Passou-me pela memória o facto de lhe chamarem João, o Louco. É possível que estivesse doido sim, mas não se juízo e sim de dor.
-Vamos lá ti'João, acalme-se. Não remedeia nada com isso, e o seu filho não havia de gostar de vê-lo assim.
-Tem razão menina, mas que quer, às vezes parece que tenho umas garras no peito que me rasgam de alto a baixo. E penso, que para as guerras, só deveriam ir os velhos. E morrer lá todos. E connosco, os ódios e rancores para tirar toda a peçonha da terra. Talvez assim o mundo ficasse mais justo.
- Filha! Anda para dentro que já é muito tarde, - chamou minha mãe.
-Vou já, mãezinha, vou já.
- Vá sim menina, vá. Se calhar ainda não jantou, e já vão sendo horas. Eu também vou indo. Até amanhã.
- Até amanhã, ti' João - e fiquei-me a vê-lo afastar-se até que a escuridão da noite o tragou
- Com quem falavas tu há tanto tempo? - perguntou minha mãe
-Com o ti'João do Moinho.
-Ora valha-te Deus filha, se dás conversa a doidos.
Doido?
Ontem passei junto ao rio, no lugar onde há muitos anos esteve a minha casa. E que saudades senti, da minha soleira, do cantar dos grilos, do pôr-do-sol, do bater dos remos na água, das conversas, dos homens do campo, e do pessoal da Seca. Saudades de uma juventude que se perdeu algures numa longínqua estação do tempo. E de repente pareceu-me ouvir a voz do ti'João. Não pude deixar de pensar que talvez em algum lugar, terá enfim reencontrado o filho e quem sabe hoje será feliz...
Fim
13 comentários:
Esta história já eu a conhecia, mas reli com gosto.
É tão actual... mesmo sem a guerra, a solidão dos velhos com ou sem filhos é cada vez mais triste e aflitiva.
As melhoras Elvira. Cuide-se.
A minha vista esquerda está a piorar e só tenho consulta a 22 de Novembro. Acho que isto do PC , não me anda a ajudar nada.
Um abraço
Para quê inventar histórias, se cada um de nós é uma, e a Elvira conta-as tão bem.
Boa noite
Esses supostos doidos tinham muito mais juízo e sabedoria do que aqueles que os apoucavam.
Conheci muitos assim.
Bom dia
Uma historia que não conhecia . Um pouco triste mas com um sentimento profundo .
A velhice .
JAFR
Se li... não me lembrava mas gosto!
Bj
Esta eu não conhecia. Li e gostei.
O Ti João fez-me lembrar de ... mim mesmo. As pernas não querem andar e agora até um braço, o direito, se lembrou de fazer greve. Imagino que seja uma tendinite provocada pelo uso da bengala. Para o mexer de um lado para o outro tenho que lhe pegar com a mão esquerda. Não consigo segurar a esferográfica para fazer as palavras cruzadas ou o sudoku e até teclar me custa. Estou arrumado!
Linda história.Gostei muito! beijos, tudo de bom,chica
Não me lembrava mas gostei e aproveito para desejar uma boa semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros
Belíssimo conto, amiga!
Vim pôr a leitura em dia e fiquei a saber que está um pouco melhor do seu olho direito. Congratulo-me por isso e desejo, do fundo do coração, que continue a melhorar.
Forte abraço
Não conhecia, gostei muito!
-
Num olhar, onde possa existir felicidade...
Beijo e uma excelente tarde!
Boa tarde Elvira,
Uma história muito bela e comovente.
Gostei muito.
Um beijinho.
Ailime
Boa tarde Elvira,
Quanto tempo que eu não vinha por aqui.Estive acometida do CA de mama, fui cirurgiada, passei quase dois meses me recuperando, agora estou por aqui, chegando devagar a visitar os amigos.
Gostei de ler o conto, além de bem escrito expressa muita sensibilidade, vc tem mesmo o dom de narrar com maestria.
Desejo qe seja leve seu anoitecer .
Abraço de paz!
Na vida há acontecimentos que marcam para sempre. Belo texto Elvira. Parabéns!
Abraços e uma ótima semana para ti e uma ótima semana para os teus.
Furtado
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