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21.2.16

MANEL DA LENHA - PARTE XI




      O Crioula, actualmente ao serviço da Marinha, como navio-escola.
                                                  foto do google

Outras vezes, quando o patrão tinha pressa, o gerente propunha uma empreitada ao pessoal. Tinham que fazer naquele dia a descarga de X toneladas. Quando acabassem iam para casa com o dia ganho. Na ânsia de saírem umas horas mais cedo, que algumas vezes nem a uma hora chegava, o pessoal levava o dia a correr e fazia num dia o trabalho de quase dois. Mas os dias de Inverno são pequenos, o frio aperta, e a promessa de que iam para casa quando acabassem, funcionava como a cenoura à frente do burro. 
Hoje, pode parecer estranho , como o pessoal da seca, que acredito fosse um espelho do que ia pelo país, se sujeitava, a trabalhos tão duros e tão mal pagos. Para isso contribuíam três factos. Primeiro, eram tempos de guerra, onde a fome assentara arraiais, e grande parte do povo, vivia o momento com um sentimento de religiosidade exacerbado, em que o sofrimento era aceite como natural. Costumavam até dizer, "Jesus Cristo, também sofreu e era Deus". Segundo, na seca, a grande maioria dos trabalhadores eram analfabetos, cujo conhecimento do mundo se confinava ao trabalho do campo, na sua aldeia, durante meio ano, e ao trabalho na seca, o outro meio. 
Terceiro, o pessoal lá empregado era maioritariamente feminino, cerca de 350 mulheres para 50 homens, que se sentiam agradecidas ao ditador Salazar, porque livrara Portugal da guerra, e assim os seus homens, filhos, ou irmãos não iriam para a frente de batalha.
Mais tarde, o bacalhau saía do frigorífico, em carros de mão, transportados por homens, para o armazém de lavagem. Aqui, era mergulhado em tinas compridas, meias de água, onde se punha o bacalhau tal como era retirado dos navios. De cada lado da tina seis mulheres munidas de uma escova. Curvavam-se e apanhavam o bacalhau pelo rabo e com a escova lavavam-no de ambos os lados, enquanto entoavam modinhas populares, que tornavam as horas mais curtas e o trabalho menos penoso. E era ouvi-las em coro, mais afinadas que coro da igreja, entoando modas, como esta:


Água leva o regadinho
Água leva o regador
Enquanto rega e não rega
Vou falar ao meu amor

Ou esta:

Ao passar o ribeirinho
Pus o pé, molhei a meia,
Namorei na minha terra
Fui casar em terra alheia

Ou ainda:

Ó Rosa, arredonda a saia,
Ó Rosa, arredonda-a bem!  
Ó Rosa, arredonda a saia,
Olha a roda que ela tem


Às vezes fazia-se um despique, com as mulheres de umas tinas, desafiando as outras para uma desgarrada. Entusiasmadas, as horas passavam mais depressa, e até as dores nas costas se esqueciam.
Depois de lavado, o bacalhau, era jogado em outros carros de mão e empilhado com sal limpo. Ficava assim dois ou três dias, depois era banhado, para retirar o sal que não derretera, e levado para a seca ao sol. Sempre em carrinhos de mão, à força de braços.

21 comentários:

Elisa disse...

Adorei :) e ao tempo que eu não ouvia aquelas "quadras" :) beijinhos
elisaumarapariganormal.blogspot.pt

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Sempre muito bom, vir aqui e se inteirar de fatos tão interessantes de uma história de vida! Meu abraço, Elvira!

Socorro Melo disse...


Situações de injustiças no trabalho continuam amiga, até hoje, por aqui, e olhe que não acontece só com os analfabetos não. A procura é sempre maior que a oferta, e para se sobreviver, se aceita certos disparates.


Socorro Melo

Isa Sá disse...

acompanhando...

Isabel Sá
http://brilhos-da-moda.blogspot.pt

chica disse...

Muito bom te acompanhar e adorei as quadras...beijos, lindo domingo! chica

Edum@nes disse...

350 mulheres, para 50 homens, no tempo da ditadura,
mesmo assim em maioria nenhuma punha nem dispunha,
ai ai delas se fossem apanhadas nalguma aventura,
havia medo, porque o regime Salazarista o impunha!

Tenha uma boa noite, e um bom dia de domingo, amiga Elvira, um abraço,
Eduardo.

Rogério G.V. Pereira disse...

Válido como documento... e como testemunho

LopesCaBlog disse...

Gostei
Tenho um amigo que andou no navio escola


Blog LopesCa/Facebook 

Ane disse...

Oi Elvira! Estou adorando acompanhar mais este conto que é uma aula de história também.Um abraço!

Isa Sá disse...

a passar por cá para desejar um bom domingo!

Isabel Sá
http://brilhos-da-moda.blogspot.pt

Anete disse...

Bom domingo, Elvira!
Uma continuação muito boa e com detalhes do bacalhau, músicas no trabalho...
Pois é, cantando as dores não eram sentidas!
Abraço grande

AC disse...

Elvira,
A história do Manuel da Lenha é um importantíssimo retrato da primeira metade do século XX.
Parabéns!

Unknown disse...

Adorei as quadras, Elvira. É um prazer vir aqui.
Beijo e bom dia*
Renata

aluap disse...

Olá Elvira, tem graça que ma minha terra também se cantava as mesmas quadras e havia igualmente o hábito de nos trabalhos cantarem. Estas modas serviam muitas vezes de bálsamo para os homens e as mulheres que trabalhavam as terras.

Beijinhos e bom domingo.

São disse...

Vale até como aula histórica , este conto!

Boa semana

Anete disse...

Elvira, respondi a sua pergunta por lá...
Depois volto p ler o seu novo texto...
Bj

Pedro Coimbra disse...

Cantei muitas vezes esses e outros versos bem conhecidos.
Mas com variações apimentadas :)))
Boa semana

Fê blue bird disse...

Minha amiga, ler o que escreve é uma viagem a um passado que embora para mim desconhecido, foi-me contado também pelos meus pais.
Um beijinho


Rosemildo Sales Furtado disse...

Continuo gostando e aguardando os acontecimentos. Gostei da roda que a saia da Rosa tem. Rsrs. Obrigado pela visita e comentário deixado no nosso Arte & Emoções.

Abraços,

Furtado.

Zilani Célia disse...

OI ELVIRA!

INTERESSANTE, ESTOU GOSTANDO MUITO.
ABRÇS

http://. zilanicelia.blogspotcom.br/

Lua Singular disse...

Oi Elvira,
Gostei da modinha
Beijos
Lua Singular