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2.3.20

SERIA UM CRIME PERFEITO, SE...


REEDIÇÃO




                                                    Foto DAQUI


Já não eram um casal jovem, mas estavam ainda longe da velhice. Ele alto e magro, de rosto fechado e pouco dado a conversas. Pendia-lhe do pescoço, presa por uma alça negra, uma máquina fotográfica que a miúdo usava, e parecia ser a única coisa que lhe dava prazer, enfastiado que estava com a tagarelice da mulher. Estavam de férias em Vila Real e encontravam-se a visitar o parque do Alvão. Por vaidade, ou talvez não, frequentemente ela pedia ao marido que a fotografasse. Coisa que ele fazia, sem qualquer esgar de alegria, como quem cumpre uma tarefa. Se entre eles algum dia houve amor, há longo tempo tinha desaparecido. Viviam juntos, por quê? –  Ele já se tinha interrogado mais do que uma vez. Hábito, falta de vontade de encarar um divórcio, medo da solidão. Agora ela tinha inventado aquela viagem de férias, para o norte, em vez de como era habitual nos outros anos irem para o Algarve. E o que mais o aborrecia, eram as demonstrações de carinho em público, que não tinham correspondência em privado, e que só tinham surgido depois que se hospedaram no hotel.
 Ela, quase tão alta como ele, elegante e sorridente. Era por natureza, alegre, e extrovertida.
Caminhava feliz, surpreendendo-se com a paisagem agreste do parque, seguindo o trilho das fisgas do Ermelo, local de altas escarpas que ela vira na pesquisa que fizera na Internet. Na cabeça o plano que delineara, desde que vira a notícia de uma turista que ali morrera por acidente enquanto tirava umas fotografias, três meses atrás.
 O amor pelo marido, morrera há muito tempo. Há mais de dois anos que ela tinha outro amor, no coração, com o qual queria viver, sem peias, nem esconderijos. Mas para isso ela precisava livrar-se do marido, já que era dele todo o dinheiro, e em caso de divórcio, não acreditava que ele lhe desse algo mais do que aquilo que tinham desde que se casaram. O resto era dele, estava no contrato nupcial. O dia anunciava-se de grande canícula, um daqueles dias que os transmontanos chamam de inferno, pois àquela hora, pouco passava das nove da manhã, já estava bem quente.
Finalmente chegaram às escarpas, de onde se via um panorama magnífico. Os dois, quase  na berma da escarpa, olham o vale lá no fundo e o belo horizonte. O marido tira várias fotos. E quando se preparava para sair do local, eis que a mulher se coloca bem na frente dele pedindo que lhe tirasse um retrato. O marido argumenta, que está demasiado perto, não fica nada de jeito, e aí ela pede para ele recuar um passo. Ele recua, ela avança e a situação mantém-se já que a distância é a mesma. Depois de ter recuado por três vezes, e de ela ter avançado outras tantas, ele não pode recuar mais, pois sabe que está na beira do abismo, e pode cair a qualquer momento. Inesperadamente a mulher estica o braço com violência e empurra o homem que se desequilibra mergulhando no abismo, ao mesmo tempo que a máquina se dispara.
A tremer, a mulher aproxima-se da beira das escarpas. O corpo do marido repousa lá no fundo, entre enormes pedaços de rocha. Mas a malfadada máquina ficou ali. Caída numa saliência da escarpa, uns três metros mais abaixo. Ela pensa que a máquina fotografou o crime. Se alguém a encontra, e será fácil a polícia encontra-la quando investigar a morte do marido, ela está perdida. O plano tão bem delineado, será facilmente descoberto através da maldita fotografia. Só havia uma solução. Difícil sim, mas não impossível. Então toma uma decisão. Devagar, com imenso cuidado, começa a descer a escarpa, o medo apertando-lhe o peito, o coração batendo desenfreado. Está quase a apanhar a máquina. Um pequeno esforço mais e pode regressar pelo mesmo caminho e livrar-se daquela prova que a incriminará. Mas eis que no momento em que apanha a máquina,  a pedra sobre a qual apoia o pé direito resvala, fazendo com que perca o equilíbrio,  e ela vai estatelar-se lá em baixo bem ao lado do marido.
Horas mais tarde, um turista dá o alarme, polícia e bombeiros chegam ao local. O casal está morto. A mulher segura ainda a máquina fotográfica. 
Na tentativa de descobrir o que se passou, a polícia visiona as fotografias. Pensa que deviam ser um casal muito apaixonado, dada a quantidade de fotos feitas pelo marido, em que aparece a mulher, sempre sorridente e feliz.
E a polícia chega à ultima fotografia... 
que regista apenas um pedaço de céu incrivelmente azul.


Fim




Elvira Carvalho

8 comentários:

Janita disse...

Ah! Destes contos tipo 'insólitos da vida real', série que passou há anos na TV e eu, fã de filmes e romances de suspense, mistério e finais imprevisíveis, não perdia um episódio.

Adorei! E como, Elvira... Quando voltar 'ao activo' dedique-se a este estilo literário. Ou vá entremeando...:)

Boa semana e boas notícias.

Tintinaine disse...

Bom dia!
Lembro-me bem deste conto!

chica disse...

Muito bom,Elvira! beijos, tudo de bom,chica

Edum@nes disse...

Cá se fazem cá se pagam. Como o destino quisera que fosse. Lembro-me de já ter lido.

Tenha um bom dia amiga Elvira. Um abraço.

" R y k @ r d o " disse...

Embora seja um conto a verdade é que poderia muito bem ser uma Estória real. Mas se ela empurrou o desgraçado e como existe a justiça divina lá foi ela no mesmo (ou quase) balanço fazer companhia ao falecido. Quem com ferro mata... com ferros morre.
.
Cumprimentos poéticos.

Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Parabéns por mais um belo conto.
Narrativa que prende e cria até um certo suspense.
O final está excelente.
Beijinhos e que continue tudo a correr bem.
Ailime

Os olhares da Gracinha! disse...

Gosto muito por isso o meu aplauso! Bj

João Santana Pinto disse...

Ora… uma história sem final feliz (em relação ao meu comentário anterior) mas sempre com uma mensagem bem presente e plena de ironia… como a vida.

Melhor, é desenhada sem possibilidade de adivinhar a forma como termina… (sorrisos)