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29.10.14

ROSA PARTE VIII


Esta foto, de minha autoria retrata a antiga Caldeira do Alemão depois da intervenção da POLIS. Claro que a única coisa que a liga à antiga, a que se refere o conto, é ser no mesmo sítio. De resto na altura não existiam por ali prédios nenhuns. Existia sim uma fábrica de cortiça, um pouco mais acima onde hoje é o parque da cidade. Pertencia a um alemão que faliu pouco depois do termino da Segunda Guerra Mundial.Tudo o resto era uma quinta improdutiva.

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                                             VIII
Antes de chegarem ao seu destino, passaram por uma espécie de pequena lagoa que, contrariamente ao rio, se apresentava cheia de água. Numa ponta entre a lagoa e o rio, uma pequena ponte de madeira e, sob ela, um grande portão de zinco, que servia de comporta. Apesar da escuridão noturna, ela parou:
- É a caldeira do Alemão, pertence àquela casa grande ali em cima, que é uma fábrica de cortiça. É ali que eu trabalho. Vem, já falta pouco.
Andaram mais um bocado e foram ter a um sítio cercado por arame farpado e um portão grande no qual o homem bateu.
Pouco depois, uma mulher abriu o portão. Era Amália, a irmã de João, a porteira daquele lugar, que ela soube depois, era a Seca do Bacalhau da Azinheira, de que falavam na aldeia, algumas pessoas que todos os anos eram engajadas para a safra.
Amália tratou-a com naturalidade e até talvez um pouco de carinho. Rosa pensou que ela não devia saber onde o irmão a tinha ido buscar. Estava enganada.
João era o mais novo de seis irmãos. Não chegou a conhecer o pai, que morrera na batalha de La Lys na França, na primeira grande guerra. Devia sentir-se orgulhoso, já que toda a gente lhe dizia que o pai fora um herói, mas não era assim que ele sentia. O que sentia era uma grande mágoa de não o ter conhecido e uma grande revolta contra as guerras que deixam sozinhas mulheres cheias de filhos para criar. Pouco depois do início da segunda grande guerra, João foi para a tropa. Portugal não entrou diretamente na guerra mas, através dos Açores e da base Americana lá implantada, pode dizer-se que de certa maneira lá esteve. João foi destacado para os Açores, para prestar serviço nessa base aérea. Quando embarcou, o medo de que a base fosse atacada pelas forças inimigas era real, tanto entre os portugueses como entre os americanos. O grupo de soldados foi a Fátima, despedir-se da Virgem e pedir a sua proteção.
Então, lá perante a Virgem, João fez uma promessa que para muitos podia ser estranha, mas que foi o que lhe ocorreu no momento. Prometeu, que se voltasse são e salvo, tiraria uma mulher “da vida” e casaria com ela. Toda a família sabia da promessa e, naquele tempo, uma promessa à Virgem, era uma coisa sagrada que se cumpria sem contestação.
 Depois de sair da tropa, João procurou trabalho e quando o teve começou a pensar que tinha que cumprir a promessa. Naquele tempo, os bordéis eram proibidos por lei mas, em Lisboa, havia alguns que por qualquer razão, que ele não entendia, as autoridades fingiam desconhecer.
Aos fins-de-semana, João começou a percorrê-los. Quando encontrou Rosa, já tinha visitado dois, mas ninguém lhe agradou. Ou eram já demasiado velhas, para a mulher que ele queria para mãe dos seus filhos, ou estavam por demais ligadas àquela vida e não se habituariam a uma vida diferente. Por isso, quando viu Rosa, com o seu ar provinciano e assustado, sentiu que tinha encontrado o que procurava.
Quando foi buscar o dinheiro exigido pela dona do bordel, João falou com a irmã, que lhe disse que podia levar a moça lá para casa até casarem.
E agora, ali estava ela, numa casa estranha, pobre de móveis, mas rica de vida, a julgar pelos dois catraios que andavam à roda dela como cão à volta do dono.
Amália destinou-lhe a cama de um dos filhos, os rapazes dormiriam juntos, não havia problema. Depois, não seria por muito tempo.


Continua

Na próxima Sexta

25.10.14

ROSA PARTE VII

Mais calma, lembrou-se dos ensinamentos da avó, devota de Nª Senhora do Rosário. Abriu o cesto e, embrulhado num lencinho branco, lá estava o terço de contas meio gastas de tantas e tantas vezes passadas entre os dedos rugosos da avó. Ajoelhou e pondo a alma em cada oração rezou como nunca o fizera na vida. Uma vez e outra e outra até adormecer de cansaço.
Vá-se lá saber se foi coincidência ou intervenção divina, mas no dia seguinte apareceu na casa um homem jovem, que ao vê-la, se engraçou por ela. E depois de uma  breve conversa, lhe perguntou se queria casar com ele. Ela pensou que ele era um anjo mandado pelo céu e aceitou na hora. O homem falou então com a dona do bordel, que lhe disse que se queria levar a rapariga tinha que pagar 20 escudos pois fizera gastos com ela dos quais não ia ver retorno. O homem prometeu voltar ao anoitecer com o dinheiro, pedindo que, entretanto, a rapariga se recolhesse ao quarto e não fosse vista por outros homens.
Vinte escudos em 1946 era muito dinheiro, mas o homem voltou ao entardecer com a quantia pedida. E Rosa saiu daquela casa, com as suas velhas roupas, algum temor no coração mas também com muita fé num destino melhor.
João, assim se chamava o homem, trouxe-a até ao mar onde apanharam um barco para o Barreiro, pois era aí que ele trabalhava e morava. Rosa nunca tinha visto o mar e tremeu de medo os trinta e cinco minutos da travessia. Por medo do mar, por vergonha do homem que a “comprara”, porque ela achava que fora isso que acontecera, por temor do que o homem poderia fazer, Rosa nem se atrevia a falar.
Quando finalmente saíram do barco, o homem pegou no cesto dela e disse:
-Anda, vamos ter que caminhar ainda um bom bocado. Mas não tenhas medo, já falei com a minha irmã e dormes lá hoje. Amanhã vou procurar uma casinha para os dois e
depois vamos falar com o padre.
 Ela assentiu com a cabeça e começou a segui-lo. Caminhavam por um sítio de terra batida, junto ao mar, mas aquela parte do mar era estranha, pois não tinha água. Ao manifestar a sua estranheza, o homem explicou que aquilo não era mar, era o rio Coina, afluente do Tejo, que a maré estava vazia, e quando a maré vazava só ficava o lodo. Depois, começava a encher de novo e levava seis horas até a água chegar àquela orla por onde caminhavam agora. Com a ingenuidade de uma criança, ela perguntou:
- E para onde vai a água do mar quando vaza?
Ele soltou uma gargalhada e respondeu:
- E alguém sabe?
Depois, talvez para encurtar o caminho, começou a fazer perguntas sobre ela. Donde era, se não tinha família, como é que tinha chegado até ali.
- Por vergonha, ela limitou-se a dizer o nome da  sua aldeia e que não tinha ninguém na vida
-Landeira? Mas isso é muito perto da minha aldeia. Eu sou da Trapa, pertencemos ao mesmo concelho.


Continua na Terça-Feira


21.10.14

ROSA PARTE VI


Deixou-a sozinha. Rosa estava espantada. Foi até ao outro quarto. A tina para o banho era enorme. Devia caber lá dentro uma pessoa estendida. E ela estava habituada a tomar banho num alguidar. Tirou a roupa e meteu-se dentro de água. Estava fria mas não se importou. Afinal estava-se no fim de Setembro e o tempo ainda não ia muito frio. A toalha era tão macia, que se enxugou deliciada. Depois, procurou no armário alguma coisa para vestir e, entre os vários fatos que lá estavam, escolheu um vestido azul. Olhou-se no espelho e achou-se estranha, com o grande decote e a saia quase pelo joelho. Mas enfim se era assim que se vestiam na cidade…
Tinha acabado de se vestir quando a mulher a veio buscar para jantar. Na casa de jantar, já estavam quatro jovens a quem a mulher a apresentou dizendo que eram companheiras de trabalho. Ficou espantada. Devia ser uma casa muito rica para ter tanta criada.
Durante o jantar, enquanto a mulher foi atender o telefone, uma das raparigas perguntou-lhe se ia para a sala nessa noite.
-Fazer o quê? – Perguntou
- Esperar os clientes. A maioria vem de dia, mas alguns vêm sempre à noite.
- Clientes? Do quê?
A outra viu que ela não sabia do que se tratava e apressou-se a calar-se não fora a “madame” zangar-se.
Quando a mulher voltou, Rosa perguntou-lhe quando começava a trabalhar. Ela não se importava de começar já. Podia lavar a loiça e arrumar a cozinha. As outras raparigas olharam-se entre si espantadas.
- Falamos quando acabarem de jantar - disse a mulher
No fim do jantar, chamou-a a uma pequena sala e aí disse-lhe:
 -Aqui não terás que fazer trabalhos domésticos. Só terás que atender alguns clientes e seres simpática com eles. Em troca, terás comida, roupa e até algum dinheiro no fim do mês. Só não poderás sair à rua sozinha.
- Mas simpática porquê? Tenho que vender alguma coisa?
- Ó rapariga, mas de onde diabo vens tu? Ainda não percebeste? Isto é uma casa onde os homens vêm em busca de umas horas de prazer, ou de alguma fantasia que as mulheres não lhes fazem em casa. A “mercadoria são vocês”.
- Mulher da vida? – Perguntou a medo lembrando-se de quando ouvira a palavra lá na aldeia e perguntou à avó o que era.
- Ah! Afinal sempre sabes alguma coisa.
- Não quero. Quero ir- me embora – gritou.
- Podes ir! - Disse a mulher com estranha calma. Vai dormir para o jardim onde te encontrei. A meio da noite, terás que aguentar os homens que por lá passem e sem que te paguem. Bem podes gritar, que se alguém aparecer e chamar a polícia ainda vais presa. Aqui, podes descansar hoje e amanhã começas a trabalhar. És muito bonita. Não vão faltar interessados.
Rosa, completamente destroçada, muda de espanto e medo, recolheu ao quarto e atirou-se para a cama a chorar desconsoladamente.


Continua

20.10.14

ROSA PARTE V


Dois dias depois, Rosa estava na cidade grande. Quase sem dinheiro, o ourives dissera que os brincos não valiam grande coisa, e pagou por eles tão pouco que quase nada sobrara depois de comprar o bilhete para a capital.
A cidade era enorme e ela não sabia para onde ir nem o que fazer. Caminhou por uma rua enorme, tão grande que era maior que a sua aldeia, batendo a todas as portas, pedindo trabalho. Mas as pessoas olhavam-na de alto a baixo como se ela não regulasse bem da cabeça e fechavam-lhe a porta na cara. Algumas até lhe acicatavam os cães. Realmente o seu aspeto não era muito agradável. A saia castanha de casimira até ao tornozelo estava bastante amassada da longa viagem de comboio, a blusa de pano-cru, com uma gola redonda, em cuja orla a avó fizera um enfeite, estava enxovalhada, as tamancas de madeira e couro e a cesta de vime escuro, onde transportava algumas peças de roupa, completavam a sua indumentária.
Faminta e cansada, sentou-se num banco de um jardim sem saber o que fazer ou para onde ir.
Pouco depois, uma mulher de meia-idade sentou-se a seu lado no banco e meteu conversa com ela. Perguntou-lhe o nome, a idade, se estava sozinha em Lisboa, se não tinha família.
Desorientada e carente, Rosa contou de onde viera, falou da morte da avó, única parente que tivera até aí, do seu desejo de arranjar trabalho, afinal a cidade era tão grande, tinha tanta casa, mal haveria de ser que ninguém precisasse de uma criada. E ela sabia fazer tudo menos comida, que nunca cozinhara e só sabia fazer chá.
Depois de a ouvir, a mulher disse que tinha trabalho para ela. Era só acompanhá-la até à sua casa.
Rosa sentiu que lhe nascia uma alma nova, quase teve vontade de abraçar a mulher.
Quando lá chegaram, esta levou-a para um quarto como Rosa nunca tinha visto. Era espaçoso, tinha uma grande cama de casal, coberta por uma colcha adamascada em tons de vinho, reposteiros do mesmo tecido, duas mesas-de-cabeceiras e um armário com as portas em espelho de alto-a-baixo. Ao lado uma porta. A mulher abriu a porta e Rosa viu um quarto de banho parecido com aquele que tinha visto na casa grande lá da aldeia. A mulher disse-lhe para se lavar e vestir as roupas que estavam no armário. Deviam ser mais ou menos do seu tamanho.
- As tuas não servem. Não se usam na cidade nem fazem jus à tua beleza. Daqui por meia hora, venho buscar-te para o jantar.


continua

Que vos parece? Será que a Rosa encontrou um anjo, ou uma bruxa?

A ROSA volta na próxima terça-feira

A todos os amigos que me honraram com a sua presença e comentário, no evento abaixo, agradeço de todo o coração. Muito obrigada. 





17.10.14

INFORMANDO OS AMIGOS




Amigos hoje e amanhã estarei participando do 2º Prosas Poéticas no site do "Vendedor de Ilusão". Peço a todos que se quiserem e puderem ler a minha participação sentir-me-ia muito feliz com a vossa presença .
O IV capítulo de Rosa só sairá amanhã.
Obrigada a todos e até amanhã

14.10.14

ROSA PARTE IV



                                     Foto DAQUI

No dia seguinte, o patrão mandou um gaiato, filho de um seu empregado, perguntar porque Rosa não tinha ido buscar o rebanho. Na velha cama de ferro, sobre o colchão de palha de centeio, a jovem ardia em febre. Esteve assim três dias. Durante todo esse tempo a velha avó não saiu de casa sempre atenta à neta. Matou a única galinha que tinha, para lhe fazer um caldinho, e obrigou-a a beber litros de chá, misturando várias ervas que combatiam a febre e cuja composição aprendera com a sua avó que era pessoa muito entendida, em chás, espinhelas caídas, quebrantos e outras coisas mais. No fim do terceiro dia, enfim a febre cedeu. Mas ainda esteve mais dois dias, prostrada na cama sem força nem vontade de se levantar. Parecia impossível que tivessem passado apenas cinco dias desde aquele dia. Bastante mais magra, as faces sem cor, os olhos sem brilho, ninguém reconheceria nela a rapariga alegre que fora até uma semana atrás. Nunca contou à avó o que lhe aconteceu. Não tinha sido necessário e ela morreria de vergonha, se tivesse de o dizer a alguém.  Só respondera com um seco não, quando a avó lhe perguntou se tinha sido alguém da aldeia. Depois a Avó disse:
- Deus queira que não tenhas ficado "prenha".
Sentiu-se apavorada. Não podia ser. Ela não queria ser mãe assim.
- Deus não o permitirá – murmurou. E logo mais resoluta: - Não saio mais com o rebanho. Nunca mais vou para o monte. Nunca mais. Será que a Ti‟Zefa, não precisa de ajuda lá para a casa grande? Ela já está tão velhinha…
- Descansa filha. Amanhã falo com ela. Tenho a certeza que se ela pedir ao patrão uma ajuda, ele te contrata. Senão logo se verá.
Mas não chegou a falar. O seu velho coração cansado de muitos anos de labuta parou nessa mesma noite.
No funeral, esteve a aldeia inteira e só nessa altura, Rosa teve a noção exata do quanto a sua avó era estimada pelo resto da aldeia.
Depois do funeral, Rosa deu uma volta pela casa, juntou os poucos pertences e guardou os brincos antigos de ouro, único bem que a avó possuía. Guardou num cesto de vime as suas roupas, que a bem da verdade era bem pouca coisa, e tudo o resto deu a uma vizinha. Depois, entregou as chaves ao Sr. António, que era o dono da casa, e preparou-se para seguir até S. Pedro, onde pensava vender os brincos e comprar um bilhete de comboio para a capital.
Antes disso, porém, despediu-se da Ti’Zefa que fez questão de lhe arranjar uma merenda para o caminho, porque “precisas de comer, rapariga ou, não tarda, juntas-te à tua avó”



Continua

Próximo capitulo na Sexta.
Entretanto desejo-vos uma boa semana

12.10.14

ROSA PARTE III


No invólucro da Rosa mulher, que era a sua figura, vivia uma inocente menina que nada sabia da vida, nem dos maus instintos de alguns homens. Talvez por isso não se assustasse, nem pensasse em fugir, quando no Domingo seguinte os dois rapazes, apareceram lá no monte onde ela passava as tardes com o gado. De resto tinha-os visto na desfolhada, não eram totalmente estranhos.
Chegaram de mansinho, como quem não tem pressa, e, de súbito, um segurou-lhe os braços e o outro meteu-lhe a mão entre o corpete e apalpou-lhe um seio. Aterrorizada, lutava para se desenvencilhar e quanto mais lutava, mais eles riam. Atiraram-na ao chão, levantaram-lhe a saia e rasgaram-lhe as cuecas. Ela continuava a gritar e a estrebuchar, mas de nada lhe valeu. De repente, sentiu-se esmagada sob o peso do corpo masculino e a dor fê-la gritar ao sentir o seu corpo rasgado pelo alarve desejo do homem. A dor, a raiva, a humilhação foi tanta que a pobre quase desmaiou. Mas não teve essa sorte. E teve de suportar não só a dor física, como o resfolegar do homem e o bafo quente do segundo homem que se apossou dela mal o primeiro a deixou. Rosa sentia-se morta, nem força tinha já para protestar. Nem disse nada quando os dois a ameaçaram, que davam cabo dela, se  contasse a alguém o que lhe tinham feito, antes de abalarem rindo em direção à aldeia. Ao Domingo, o Zé Rato, sempre ia tocar a sua concertina para o adro da igreja, onde se fazia um bailarico, e foi para lá que eles se dirigiram.
Rosa, não sabia, por quanto tempo ficara ali descomposta, deitada sobre a relva. Teriam passado alguns minutos, que lhe pareceram horas, quando a custo se levantou, o corpo e a alma destruídos. Agarrou no que restava das cuecas,  e limpou-se como pôde.  Depois ajoelhou e com as mãos cavou um buraco, onde as enterrou.
Levantou-se, pegou no bordão e começou a tocar as ovelhas para o curral. Não chorava. O seu desespero era como fogo que lhe devorava as entranhas.
Assustou-se a avó, com a sua entrada em casa. Primeiro, porque costumava chegar mais tarde, segundo porque o seu aspeto era por demais estranho. Trazia o cabelo e as roupas desalinhadas, e os olhos orlados por grandes círculos roxos, encontravam-se vidrados. Pela experiência, que lhe davam os muitos anos de vida, a avó soube imediatamente o que tinha acontecido à sua menina. Pôs uma panela de água ao lume, foi buscar o alguidar de zinco, despejou-lhe um cântaro de água fria. Enquanto a água não fervia, foi buscar uma combinação da neta e um lençol velhinho mas limpo. Depois, com as mãos trementes, tirou-lhe o vestido e não pode deixar de reparar nas manchas sanguinolentas nas coxas, nem nas manchas roxas num dos seios. Despejou o tacho da água a ferver no alguidar, já mais de meio de água fria, experimentou a temperatura e agarrando na mão da neta disse:
- Vem. Não podemos lavar a alma, mas o corpo sim. Vais sentir-te um pouco melhor.
Ajudou-a a meter-se no alguidar e deu-lhe banho como se ela fosse uma criança. Depois, com imenso carinho, enrolou-a no lençol, enxugou-a  e enfiou-lhe a combinação de estopa grosseira. E ajudou-a a, a deitar-se na cama.
Rosa não chorara nem dissera uma única palavra desde que chegara a casa e a velha senhora começava a assustar-se.



Continua na próxima terça.
As minhas desculpas pela dureza do capítulo.
Bom fim de semana 

8.10.14

ROSA PARTE II





Durante anos, Rosa não teve outra vida que sair todos os dias para o monte com o rebanho. Nele cresceu e nele nasceram os primeiros sonhos de mulher. E fizera-se uma linda mulher. Tinha um corpo esbelto que as roupas grosseiras não conseguiam esconder, um rosto moreno no qual os enormes olhos negros brilhavam como faróis em noite sem lua. Os cabelos escuros, primorosamente entrançados, chegavam quase à cintura.
As longas horas de solidão passavam rápidas, entretida entre sonhos e desejos. Um dia, um príncipe, encantado ou não, de alguma cidade distante havia de chegar… e nesse dia a sua vida ia mudar.
Naquela tarde, quando recolheu o rebanho, a Ti‟Zefa, convidou-a para vir à noite à desfolhada. Todos os anos era convidada mas, devido ao facto de se levantar antes de o sol nascer para apascentar o rebanho ela nunca lá fora. Naquele dia, sabe-se lá porque tentação do demo, aceitou ir.
A desfolhada era na eira do Sr. António, não muito longe do alpendre da casa. O Sr. António era o patrão da maioria dos habitantes na aldeia. Tinha feito fortuna no Brasil, mas isso fora muitos anos antes de ela nascer. 
Foi uma noite inesquecível. Rapazes e raparigas, alguns de aldeias vizinhas, sentavam-se numa grande roda à volta da eira. No meio desta, uma pequena montanha de espigas que iam descascando com perícia, pondo atrás de si o folhelho, e a seu lado em grandes cestos de vime a maçaroca loira. Mais tarde o folhelho seco seria usado para encher os colchões e as espigas seriam malhadas pelos homens, ali mesmo na eira. De vez em quando, soltavam-se as gargantas em afinadas quadras ao desafio, quase sempre entre um rapaz e uma rapariga, que faziam rir quem os ouvia, ora apoiando um, ora apoiando outro.
Para descansar a garganta, ou quem sabe para germinar nova leva de cantorias, preenchia-se o intervalo com histórias que, de tão antigas, já haviam virado lendas, conhecidas de todos. Mas, como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, as histórias eram sempre diferentes dependendo do narrador.
As histórias masculinas eram quase sempre de bruxas e almas do outro mundo, onde não faltava nunca o próprio demo disfarçado de bela dama com pés de cabra. As mulheres, regra geral, talvez por medo, contavam histórias  mais reais. Gracinhas dos filhos, ou dos sobrinhos, eram sempre bem recebidas, mas às vezes também vinha à baila uma ou outra história de “lobisomens”.
Por vezes, alguém gritava: - milho-rei! E levantava-se exibindo no ar uma espiga de milho quase cor de vinho como se fora um troféu. Os rapazes eram mais exuberantes. As moças, especialmente as solteiras, tentavam esconder o seu entusiasmo que o brilho do olhar denunciava.
Então, como diz a cantiga, cumpria-se a lei e rapaz ou rapariga a quem ela saísse, tinha que percorrer a roda abraçando todos os participantes da desfolhada, novos ou velhos, casados ou solteiros. Era a oportunidade para os namorados trocarem um carinho na frente dos pais, coisa que de outro modo era absolutamente proibida naqueles tempos.


continua na próxima Sexta.

3.10.14

ROSA PARTE I



Obra licenciada pelo IGAC

nº 1283


Olhou-se uma vez mais no velho espelho do desconjuntado armário. Não se reconhecia naquela estranha de grandes olhos negros que a olhavam com um misto de pena e desespero, na imagem que o espelho lhe devolvia. Sentia-se cansada e sem vontade de nada. Era como se dentro daquele corpo não habitasse ninguém. E se habitava não era ela. Ela ficara lá longe, na sua aldeia, muitos anos atrás. Quem sabe, andava lá pelo monte da Landeira, pastoreando as ovelhas.
Como era feliz nessa altura! Por que é que estamos sempre desejando mais do que aquilo que temos e lastimando a nossa infelicidade, para depois chegarmos à conclusão que aquela era afinal a felicidade?
Ela fora uma miúda normal numa aldeia do interior, maioritariamente povoada por gente pobre. Tivera uma infância exatamente igual à das outras meninas na aldeia. Só com a diferença que nunca conheceu o pai. Mas nem nisso era muito original, já que havia na aldeia, mais duas ou três meninas que ela pensava que eram suas irmãs, porque eram filhas do mesmo pai. Sim porque ela sabia que o seu pai se chamava “ pai incógnito” e o pai dessas meninas também se chamava assim. Um dia, a avó explicou-lhe que “pai incógnito” significava que ninguém sabia quem era o seu pai. Não era nome de gente. Rosa ficou espantada. Como era possível? Não sabiam quem era o pai? Não era da aldeia? Então e as outras meninas? Também não sabiam quem era o pai? Então se calhar eram mesmo irmãs. Que não, tornou a avó. Eram filhas de outro pai. Ela não percebia. Então se não sabiam quem era como é que sabiam que não era o mesmo? Mais tarde, quando fora para a escola, atreveu-se a perguntar à professora e esta fizera-lhe entender o mistério. Ela gostava da escola. Como gostava! Os livros contavam cada história! Infelizmente, quando tinha oito anos, a mãe morreu e ela ficou sozinha com a velha avó. A vida que lá em casa já não era fácil, piorou drasticamente. Teve que deixar a escola.
O Sr. António era o homem mais rico da aldeia. Tinha terras, bois, vacas, cabras e ovelhas. Vivia numa casa grande, feita de grandes blocos de granito, e diziam os que já lá tinham entrado, por dentro parecia um palácio. A avó conseguiu que ela fosse trabalhar para lá como guardadora do rebanho. Foi um pedido feito à Ti‟Zefa, a criada do Sr. António. Ganhava um dinheirito, pouco, no fim do mês, mas tinha a barriga cheia, pois segundo se dizia era casa farta. E assim a avó sempre ficava mais descansada. Ela, a avó, sempre conseguia um prato de sopa a troco de algum trabalho. Era exímia a cerzir e as vizinhas tinham sempre o bibe dum filho ou a camisa do marido com um rasgão a pedir a sua intervenção.




Continua



Nota: Este conto foi publicado há cerca de 4 anos. Porque na altura ainda não o tinha registado, retirei-o do blogue logo após a publicação.
Agora que são poucos os leitores dessa época, resolvi voltar a publicá-lo.
Sinceramente espero que vos agrade e me desculpem se algum capítulo ferir a vossa sensibilidade.
Excepcionalmente sai hoje o primeiro capítulo, as próximas postagens sairão às Terças e Sextas, para que tenha tempo de vos visitar e ler as vossas publicações já que para a semana recomeçam as aulas e o meu tempo diminui muito.