Este conto é uma reedição. Os mais antigos já o conhecem, mas como tenho vários leitores que não tinha na altura em que foi publicado, e como parece que a violência doméstica está cada vez pior...
Mal o despertador tocou, Celeste saltou da cama. Lavou-se a correr e foi para a cozinha. Com gestos completamente automatizados, pegou no isqueiro e acendeu o fogão. Era noite ainda, mas Celeste trabalhava longe. Começou a fazer o almoço, para ela e para o marido. Uma lágrima soltou-se e veio cair no alguidar onde tinha as batatas para descascar. Estava cansada. Cansada daquela vida de miséria física e moral em que se encontrava. Onde tinham ficado os sonhos de menina? -Interrogou-se enquanto acabava de descascar as batatas. Onde a ilusão de um homem bonito, que se apaixonasse por ela e lhe desse uma vida de amor e felicidade?
Juntou duas postas de bacalhau às batatas e o sal, quase sem dar por isso absorta nas suas recordações.
Celeste era uma mulher bonita, sem ser nenhuma beleza estonteante. Era pequena, de pele trigueira, com aquela cor das pessoas que vivem à beira-mar. Tinha o cabelo preto e uns olhos castanhos, que muitas vezes se enchiam de lágrimas. Era uma menina ainda, com toda a inocência dos seus quinze anos quando conheceu aquele que era o seu marido.
Afonso era um homem bonito. Mais velho e mais vivido, não foi difícil apoderar-se do coraçãozinho de menina que batia no peito da Celeste.
Casaram um ano depois. Celeste já carregava no ventre um filho. Ainda menina, teve que aprender a ser mãe, e a cuidar daquele pequeno ser, que Deus lhe quisera enviar.
Depressa se apercebeu que o marido não era o príncipe com quem sonhara. Um dia, tinha o filho três meses, Afonso saiu depois do jantar, deixando-a em casa com o filho, e só regressou depois da meia-noite completamente bêbado.
Como se fora um autómato, Celeste apagou o fogão, escorreu a água às batatas e dividiu a comida pelos dois termos. Pegou as duas lancheiras, que estavam em cima do aparador, colocou um termo em cada uma, juntou uma carcaça do dia anterior, uma pêra e um garfo. Encheu uma garrafa de meio litro de tinto e colocou numa das lancheiras. Foi ao quarto e acordou o marido. Na volta pôs um pano de cozinha em cada lancheira e fechou-as.
Tirou as chaves que estavam na porta, pegou na carteira, e na lancheira, e atirou um seco até logo, saindo de seguida. Não foi ao quarto despedir-se do marido. Há muito que não trocavam um beijo carinhoso.
Enquanto se dirigia à paragem do autocarro, na cabeça fervilhavam as recordações, dos olhos soltavam-se as lágrimas.
O filho crescera e saíra de casa. Nunca se sentira lá muito bem, nem tivera uma relação de amor com o pai. E assim que se empregou, arranjou uma casita e foi morar sozinho. A sua vida ficara então mais triste, sem a presença do filho.
Já lhe ocorrera pedir o divórcio. Porém o medo e a vergonha sempre a faziam desistir da ideia.
Recordou a primeira vez que o marido lhe batera. E a desculpa com que teve que encobrir, perante a família, a vergonha e a dor que sentia tanto ou mais do que os hematomas. E os dias sem lhe falar. Dias em que ela lhe gritava o nome de manhã antes de sair de casa, e não se falavam mais.
Como agora que não se falavam desde que há oito dias ele lhe tinha voltado a bater. E tudo por causa do álcool. Mordeu os lábios para abafar um soluço ao lembrar - se daquela noite. Ela já dormia, quando Afonso chegou. E estava tão cansada que nem deu por ele se deitar. Acordou com o peso do marido em cima dela. E aquele bafo nauseabundo de bêbado. Quis empurra-lo, fugir da cama. Mas não conseguiu. Ele era muito mais forte e puxara-lhe os cabelos com violência. Virou o rosto e isso enfureceu mais " a besta". Porque Celeste não reconhecia mais o marido naquele selvagem. Quando consumados os seus intentos se virou para o lado e adormeceu, ela levantou-se e meteu-se debaixo do chuveiro. Esfregou o corpo com raiva, enquanto as lágrimas se misturavam à água. Voltou para a cama, e acomodou-se tentando não tocar no marido. Não dormiu mais. E agora enquanto esperava pelo autocarro, pensava que rumo dar à sua vida. O amor que sentira um dia por aquele homem, já sofrera muitas alterações. Foi raiva, medo, ódio, desprezo e agora era também nojo.
De repente saído do nada, veio-lhe à memória, o poema de António Gedeão.
Anda Luísa,
Luísa sobe...
Sobe que sobe,
Sobe a calçada...
Sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo que pensava, se o poeta saberia da sua existência.
É que aquela Luísa era ela...
FIM
Nota , este conto foi publicado no jornal rostos na passada segunda-feira
9 comentários:
Conheço o poema de António Gedeão.
Confesso que não compreendo que haja mulheres que continuem a viver com homens violentos.
Continuação de umas férias felizes, harmoniosas, saudáveis 💙
Violentos e beberrões.
Ainda existem.
E elas também.
Bfds
.Não se compreende a violência doméstica ou outra qualquer. Totalmente contra a violência de qualquer espécie
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Felicitações poéticas
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Infelizmente bem real ainda esse conto! beijos, tudo de bom,chica
Sou totalmente contra a violência doméstica e contra as mulheres que a consentem!!
Claro que sou contra toda a espécie de violência seja ela física ou psicológica.
Violência doméstica? Não!
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Olho o horizonte e sinto a melancolia
Beijos, boa tarde. Bom fim de semana
conta muito bem
mas isto a minhs smigs sabe
abralo
Um conto bem actual, infelizmente, Elvira. Quero dizer-te que és uma pessoa que uito admiro pela coragem e resiliência. Com tantos problemas de saúde, teus e do teu marido, ainda dás conta dos blogues e cuidas da pequenina Margarida. Foste sempre uma mulher muito forte, mas tinhas saúde e, quando a temos, tudo se resolve. Agora, pelo que nos contas no post anterior, a saúde tem-vos faltado e tu continuas com toda a coragem. Lara mim, és u 3xemplo a seguir, querida Amiga ! Relaxa e descansa aí em Lagos, pois bem ereces. Um beijinho e obrigada por nos dares um grande exemplo de dedicação aos que amas.
Emilia 👏 🙏 🌻
Boa tarde Elvira
Que vida a dessa Mulher!
A de tantas que existem por este mundo fora...
Ninguém merece tal tratamento.
Gostei muito do conto impregnado de emoção e tristeza que caracterizam essas situações.
Beijinhos, Elvira, e descanse.
Ailime
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