Seguidores

15.12.19

CONTOS DE NATAL - O AVÔ








Estava frio, daquele frio que trespassa  a roupa e penetra nos ossos. É tempo dele, pensava. No Inverno, arranjar clientes é mais difícil. Os homens estão mais dedicados à família, pensam nos presentes para os filhos, por amor e convicção de que o devem fazer, pois que nada é mais magnânimo do que amar um filho. É tempo de desviar a máscara que trazem durante o resto do ano, a esposa merece isso, merece alguma atenção e algumas manifestações de carinho. Se os prazeres da cama se tornam mais esporádicos, se o rosto cansado dela, ao fim do dia, lhes tira o desejo de a procurar como no início, enfim compreende-se. Na verdade,até é bom para ela, que precisa de descansar, e o sexo já não tem o mesmo encanto. Se ele a deixa dormir, ela agradece.Dirá, até, que o marido é uma pessoa compreensiva, que respeita o seu ritmo de afetos, que não lhe faz a vida negra como tantos outros de que tem conhecimento pelas confidências das colegas de trabalho.

Enquanto anda pelas ruas da cidade, Vai pensando assim Carolina transida de frio. A saia curta, os saltos altos, os joelhos gelados, os pés doridos, a cabeça a latejar trazem-lhe uma palidez ao rosto capaz de levar qualquer homem a desprezá-la. Carolina tem vontade de chorar e de desistir, de ir para casa. Casa? - pensa. Casa?, um quartinho alugado nas traseiras de um velho prédio de Alfama. O que ganhava não dava para mais. A maior fatia era para pagar a ama do menino e a percentagem ao Quincas. Tinha logo de se afeiçoar ao Quincas, o proxeneta que diz protegê-la. Ela acha que precisa mesmo dessa proteção.  Servir homens é perigoso, vêm cheios de taras, têm exigências que não lembram ao diabo, são sádicos - esta palavra arrepia-a, ela sabe do que fala. Quincas anda por perto, vai rondando os seus passos, e, assim, ela sente-se mais segura. O pior vem depois, a percentagem, como ele lhe chama. E neste pé, Quincas é intransigente. "Carol querida, mostra lá o que rendeu hoje, mostra, não te atrevas a enganar-me!Vê lá se queres que te deixe por aí entregue à vida! Olha que estão muitas à porta, resmas delas, à espera. Vamos lá a contas!" Quando lhe chamava "Carol querida" ela estremecia de medo, não podia enervá-lo, zangado era uma fera, perdia a compostura, era bem capaz de lhe dar umas bofetadas. E isso era tudo o que não queria,  ao fim de um dia de 'trabalho' que a deixava extenuada. Lembrava-se do seu menino e escorria-lhe pela alma e pelo corpo uma tristeza e um remorso sem fim. Pensava que não poderia aguentar esa vida por muito mais tempo, mas não via saída,  quem lhe daria um trabalho honesto? Era lixo social, era assim que se sentia: lixo social. Mas, no dia seguinte, tudo recomeçava e o tempo impiedoso pedia-lhe mais e mais. E ela labutava mais e mais, mais e mais. Aquela noite parecia a pior de todas; as luzes davam um ar de honestidade festiva às ruas, as senhoras sérias passavam com os últimos embrulhos adornados de laços e brilhos, e ninguém a convidá-la para aquilo, nenhum carro a parar e a perguntar por quanto ia. Ninguém. E o Quincas, logo, a pedir-lhe contas. E ela não tinha nada guardado no seio. Ele era gajo para lhe meter a mão na blusa e de a rasgar, para a intimidar. Raio de vida! Merda de vida! Encostou-se ao poste de iluminação, na Avenida.Ali, na penumbra, às vezes, conseguia clientes. Oxalá tenha sorte, nem que seja um coxo, um sem-abrigo, um bêbado. Já está por tudo. Era só suster um pouco a respiração, fechar os olhos e deixar as coisas acontecerem.  Rápido, que seja rápido. Rápido, até podia fazer um abatimento... Era urgente um homem com necessidade do seu corpo, que tivesse pressa e que não regateasse o preço da tabela imposta por Quincas. Pensava na mãe: se ela soubesse a vida que a filha levava em Lisboa... quando deixou a aldeia, vinha com a mochila carregadinha de sonhos, Ia ganhar dinheiro, ia ter um emprego de cabeleireira, talvez com sorte pudesse abrir em breve o seu próprio salão.  Então, casaria e teria dois filhos, o primeiro dos quais se chamaria Afonso Henriques, em honra do primeiro rei de Portugal. Na escola, gostava tanto de História! Interessava-se sobretudo pelas vidas dos heróis. O professor tinha um jeito especial para compor as histórias que narrava: os casamentos, as intrigas, os sofrimentos das rainhas, as traições, os adultérios... Registava tudo. Pensava que,  se não fosse cabeleireira e se a mãe tivesse meios, seria professora de História. Tudo tão distante no tempo e na vida! Dantes, ainda ia passar o Natal à terra (como se diz em Lisboa); levava presentes e inventava sucessos e alegrias. Construía um mundo à semelhança da sua capacidade de criar mundos, tomando como modelo o seu antigo professor de História. E a mãe acreditava e ficava muito feliz por ver a filha tão feliz e tão bem sucedida. Agora, invoca o muito trabalho, que não lhe dá tréguas e não a deixa ter férias. E nisso não mentia, era a mais pura das verdades.  E a noite a avançar e nada de clientes. Bolas! Estarão os homens de Lisboa tão apaziguados, tão assexuados que não vêm cá fora à procura de uma pequena aventura ou de uma facadinha no casamento? E ela não dispunha da noite toda, tinha de ir buscar o Afonsinho, a ama avisara que queria estar livre para a consoada com a família.  Que noite de consoada tão azarenta! Parece que estava tudo a seu desfavor.  Estariam a moral e os bons costumes a castigá-la por ousar desafiá-los? De repente, alguém para, Uma sombra, um avozinho, que dá uma escapadela para comprar as últimas prendas para os netos, pensa.
"Quer vir comigo? Está livre? Tenho um espaço reservado. Venha" E foi, num misto de alegria e curiosidade, estranhando o tratamento diferente do dos outros clientes. A sala era enorme,  de um conforto requintado. O 'avozinho´tira-lhe delicadamente o casaco e manda-a sentar. Acende a lareira e vai buscar uma bandeja com chá e rabanadas. Estranho: geralmente oferecem-lhe vinho, e tratam-na por tu, o que é mais consentâneo com o seu estatuto social. Este não a tratava assim, chamava-lhe "senhora dona Carolina" e servia-lhe o chá numa chávena Limoges. De repente pensou que seria bom viver naquela casa, usufruir daquele conforto doce e morno, que sossega os corpos. Carolina pensava: "quando tiro a roupa? O homem não ata nem desata; e o tempo a passar, e nada" Mas o senhor começa a falar, calmamente, respeitosamente: " Carolina, desculpe, sei que deve estar a pensar que nunca mais me decido, não é? Mas, olhe, eu tenho-a visto algumas vezes na Avenida, tenho observado a sua ansiedade e a sua repulsa por aquilo que faz. Teci algumas conjeturas a seu respeito: esta mulher não é lisboeta, detesta a prostituição, deve ter filhos, é infeliz, coitada..." E hoje atrevi-me a aproximar-me. Sou viúvo há dez anos: a minha mulher também se chamava Carolina e era um anjo. Nunca a traí. Mas estou só. Tenho tudo o que o dinheiro pode comprar, mas estou só, e a solidão é algo demolidor para o ser humano. Então tenho uma coisa a propor-lhe: passe o Natal comigo como se pertencêssemos à mesma família. Tem um filho? Não há problema: vamos buscá-lo. Vai ser bom para todos. Se gostar, quem sabe se deixará de procurar clientes e poderá passar a gestora da minha casa?".
Carolina chora lágrimas quentes que não consegue estancar do seu rosto macerado e precocemente envelhecido. Afonsinho acabara de ganhar um avô.  Haverá milagres em véspera de Natal?


Albertina Fernandes

in  lugares e Palavras de Natal

Editora  Lugar de palavras

15 comentários:

Pedro Luso de Carvalho disse...

Olá, Elvira!
Uma bela narrativa, cujo tema diz bem com as festas natalinas que se aproximam. A autora soube encerrar com brilho esta história, na altura em que diz: “Afonsinho acabara de ganhar um avo”.
Um bom domingo, minha amiga Elvira.
Um abraço.
Pedro

chica disse...

Me emocionam esses contos!Lindo! bjs, chica

Fatyly disse...

Fiquei comovida e seria bom que mais gente procedesse assim nem que fosse apenas no Natal. Gostei imenso.

Beijos e bom dia

Tintinaine disse...

Deste gostei! Coitada da carolina, algum dia havia de ter sorte.

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Todos os contos de Natal são lindos , mas este é na realidade uma autentica prenda de quem vive o verdadeiro Natal.

JAFR

Edum@nes disse...

Tenha sido milagre ou não. O certo é que Carolina terá deixado de prestar contas ao Quincas?

Bom Domingo amiga Elvira. Um abraço.

Rogério G.V. Pereira disse...

Só não gosto do nome atribuído ao proxeneta
Guardo o nome de Quincas ligado
à excelente obra do Jorge Amado

Anete disse...

Mais um conto que vale a pena refletir e tirar boas lições...
Bom domingo... O meu abraço...

Larissa Santos disse...

Muito bom. Existem contos que são verdadeiras lições de vida:))

Hoje : Deslumbras-te na essência da minha tez

Bjos
Votos de um óptimo Domingo

Os olhares da Gracinha! disse...

Gostamos de acreditar que sim... há milagres!!! Bj

Cidália Ferreira disse...

Tão bonito, este conto!! :)

Beijinhos. Boa noite!

Roselia Bezerra disse...

Boa noite de semana pré natalina, querida amiga Elvira!
Foi um dos mais lindos contos natalinos que li aqui nestes dias e olha que li todos mesmo que não tenha comentado pois tinha vez que lia mais de um. A cada dia um melhor.
Parabéns pela escolha. Milagres existem e vemos por aí e ao redor de nós.
Muito bom ler isso agora.
Tenha dias abençoados!
Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

Rosemildo Sales Furtado disse...

Milagres acontecem todos os dias, desde que se tenha FÉ e esperança. Lindo conto Elvira. Mais uma bela escolha.

Abraços,

Furtado

João Santana Pinto disse...

O Natal parece um momento de tréguas… e devemos fazer por manter essas mesmas "tréguas" o ano inteiro.

Um texto corajoso e com uma mensagem feliz

Gaja Maria disse...

MAis um conto bonito.
Abraço