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2.10.20

CILADAS DA VIDA - PARTE XL



Fala-me de ti, David, e diz-me exatamente o que vieste fazer, - disse João após a saída da sua assistente.

- Bom como já deves ter percebido, meu nome é  David Braizinha Varanda. Tenho vinte e nove anos e sou advogado. Nasci e vivi em Braga até que me formei. Meu pai, morreu muito jovem com um cancro no pâncreas, e minha mãe lutou muito para fazer de mim o homem que hoje sou. Desde sempre, soube que ela era uma mulher sofrida, muitas vezes me abraçava a chorar, mas sempre pensei que era porque eu lhe fazia lembrar o meu pai, de quem tinha muitas saudades. Quando me mudei para Lisboa quis que viesse viver comigo, mas ela não quis deixar a casa onde vivera grande parte da sua vida e tinha tantas recordações. Há dois meses, sofreu um AVC, entrou em coma e morreu uma semana depois.

Interrompeu-se quando Olga entrou no Gabinete com os cafés. Serviu-os e apressou-se a sair pois o ambiente no escritório, continuava bastante carregado.

-O mês passado, comecei a despejar a casa, a fim de a entregar ao senhorio, - continuou o advogado, quando a secretária saiu. -  No guarda-fatos, dentro de uma caixa de sapatos, entrei duas cartas, alguns documentos e fotos, algumas antigas, outras mais recentes. Entre os documentos havia uma certidão de nascimento de alguém, cujo nome eu nunca lhe ouvira; e as cartas, uma era-me dirigida, e a outra para o desconhecido cujo nome estava na certidão de nascimento.

Na minha carta, a minha mãe falava-me com muita mágoa, de um outro filho que tivera antes de mim, pedia-me perdão por nunca me ter falado dele, e suplicava-me que quando ela partisse, eu o procurasse e lhe entregasse o conteúdo daquela caixa.

David abriu a sua pasta e tirou um subscrito fechado, uma certidão de nascimento, e várias fotos que colocou em cima da mesa na frente de João.

Relutante, ele pôs de parte o subscrito sem o abrir, e leu o documento. Era o seu registo de nascimento, com a diferença que ali o se nome constava como João Braizinha Teixeira, nome diferente do que constava nos seus documentos atuais, onde o apelido materno não existia. Também a sua data de nascimento era dez dias antes daquela que constava no seu cartão de cidadão. De algum modo,  o pai conseguira alterar os documentos, destruindo a hipótese de um dia ele querer saber quem tinha sido a sua mãe, talvez efetuando um segundo registo do filho. Depois pegou nas fotos. A primeira, era de uma mulher jovem olhando amorosamente o bebé que tinha no colo. As outras eram todas de um menino, que reconheceu como sendo ele. Fotos desde os três, quatro anos até à idade adulta. Havia ainda alguns recortes de jornais que falavam dele e da sua empresa. 

-Muito bem, David a entrega foi feita – disse enquanto abria uma gaveta da secretária, retirava um envelope grande castanho e metia tudo lá dentro. - Obrigado.

-Não vais ler a carta? – perguntou David

-Agora não, - respondeu. -Toda a vida acreditei que a mulher que me deu à luz, me tinha abandonado como se eu fora uma coisa imprestável. Essas fotos, porém, falam de um acompanhamento à distância, que revelam que afinal, ela se importava comigo. Então, porque nunca se aproximou de mim?

- Não tenho resposta para isso, Todavia é mais uma razão para leres a carta. Decerto ela terá a respostas às tuas interrogações.

- Preciso digerir todas as emoções negativas que acumulei ao longo dos anos, antes de o fazer. Todavia posso dizer-te, que estou muito feliz, por saber que ganhei um irmão. Queres dar-me um abraço? – disse pondo-se de pé.

-Estava a ver que não pedias, - respondeu David levantando-se.

Os dois homens trocaram um longo e emocionado abraço.

- Tens os olhos da nossa mãe, - disse David minutos depois, tentando disfarçar a emoção.

- Como os teus. Chamaram-me a atenção logo que te olhei, quando entraste.  Mas conta-me mais coisas de ti. És casado?

- Não, mas estou de casamento marcado para Dezembro. Um dia destes podemos jantar juntos. Tenho a certeza que vais gostar da Júlia, a minha noiva.

-Marca quando quiseres. Eu, não sendo por negócios nunca saio para jantar.

-Bom, já passa das quatro e tenho um cliente marcado para as cinco, - disse David olhando o relógio.

Tirou um cartão e estendeu-o ao empresário dizendo:

-Liga-me quando e se quiseres.  E não deixes de ler a carta da mãe. Depois se quiseres eu falo-te, da grande mulher que ela foi.

João, tirou do bolso do casaco uma carteira e ao mesmo tempo que guardava o cartão, tirou outro e deu-o a David, dizendo:

Não calculas como estou feliz por te conhecer. Sempre me senti como uma ave solitária. Também me podes ligar quando quiseres.

Ambos se levantaram. João acompanhou o irmão à porta do seu gabinete, e aí se despediram com um caloroso aperto de mão, enquanto Olga trocava um olhar incrédulo com o segurança, que se encontrava junto da sua secretária.

10.1.18

ESCRITO NAS ESTRÊLAS - PARTE III







A partir daí, durante uma semana, todos os dias se falavam pelo telefone, cada um abrindo um pouco mais, a janela da sua alma para o outro.
Na Sexta-feira, Ema anunciou que ia passar o fim-de-semana a Lisboa. Não informou quando chegaria, nem como, apenas pediu para ele ir ter com ela ao centro comercial para onde se dirigia no momento, às quatro da tarde de Sábado.
Nessa noite, Abílio quase não dormiu de tanta excitação. O cabelo embranquecera, o rosto enrugara, mas o coração mostrava-se tão apaixonado, como se mantivesse os vinte anos. Abriu a velha caixa que o acompanhara toda a vida, mirou e remirou o monte de cartas amarelecidas pelo tempo, presas com um laço azul, sem saber se devia ou não levá-las para o encontro.  No Sábado perto da hora do almoço, sentiu-se mal. Tinha ido à rua buscar o pão e o jornal e de súbito, no regresso a casa, o dia escureceu de repente, o chão fugiu-lhe debaixo dos pés, sentiu que devia segurar-se a qualquer coisa, mas não foi capaz e depois de um estranho bailado acabou estatelando-se junto da porta do vizinho.
Incomodado com o barulho, este abriu a porta, e vendo o que se passava apressou-se a chamar os bombeiros que o levaram para o hospital, onde foi medicado, fez uma série de exames e ficou em observação. Sem ter como avisar Ema, temia que desiludida, ela voltasse para Braga sem se encontrarem. Finalmente já depois das dez da noite, convencidos os médicos, de que tudo não passara de um episódio provocado pela ansiedade e que não havia a temer, nenhum mal maior, foi-lhe dada alta.
Regressou a casa num táxi, e lá chegado mandou uma mensagem a Ema explicando-lhe  o sucedido. Ela respondeu-lhe que relaxasse, dormisse descansado e se encontrariam no mesmo local no dia seguinte às onze horas para almoçarem juntos.
Fosse pela resposta, ou pela medicação tomada no hospital o certo é que adormeceu rápido.
A meio da noite, sentiu que não estava sozinho. Abriu os olhos e a figura de Fernanda envolta num manto tão branco que feria os olhos, sorria-lhe junto da cabeceira.  Transpirando, sentindo que estava a morrer, estendeu-lhe a mão. Mas ela não lhe pegou. Com uma voz doce, disse:
“Não meu querido, ainda não. Ainda tens um pedaço de vida para cumprir. Vim para te libertar desse remorso, que parece querer levar-te,  antes que o teu tempo se cumpra. Sempre soube que no teu coração havia outro amor. Mas nem por isso fui infeliz. Porque apesar disso, do jeito que podias e sabias, sempre me amaste, como amaste os nossos filhos, e nunca em momento algum senti que não estavas comigo. Fui muito feliz contigo, não tens que pedir perdão nem recriminar-te. Agora é hora de te libertares e viveres esse grande amor que já estava escrito nas estrelas, muito antes de eu chegar à tua vida. E quando pensares em mim, que eu seja uma doce lembrança. Agora vou, mas estarei por perto para te proteger e dar força. Na brisa que te acaricia o rosto, na espuma que te molhe os pés na praia, no sorriso de uma criança no desabrochar de uma flor. Vai meu amor, vai ser feliz”
Acordou sobressaltado, com um raio de sol sobre a face. Oito horas? Mas como era possível ter dormido tanto? E a presença de Fernanda no quarto, afinal não passara de um sonho? Mas parecia tão real.
Levantou-se, tomou banho, vestiu umas calças de ganga, e uma suéter azul, uns ténis e saiu para a rua. Ia à padaria, mas antes tinha que bater à porta do vizinho para lhe agradecer tê-lo socorrido no dia anterior.
Às onze em ponto entrou no centro combinado e o coração acelerou quando a viu. Ema tinha sessenta anos, mas não aparentava mais de cinquenta. Era uma bela mulher, e ao olhá-la, sentiu aumentar os seus receios. Sentia-se como se em vez de cinco anos os separassem vinte. Nesse momento sentiu uma impressão no rosto, como o suave roçar de uma pena, lembrou do que Fernanda lhe dissera no sonho e avançou confiante.
- Desculpa o atraso, querida. Nunca me tinha acontecido uma coisa assim- disse depositando na bela face um suave beijo.
- Esperei por ti toda a vida, - disse ela sorrindo. Mesmo quando ainda não tinha consciência disso. Que diferença faz, meia dúzia de horas mais?
Sem mais explicações, deram as mãos e afastaram-se de dedos entrelaçados.

Fim


Maria Elvira Carvalho




Bom dia, Gente do meu chão.  Este final saiu mais cedo para dar notícias áqueles que me têm manifestado a sua preocupação com a minha saúde, quer no blogue quer em mensagens particulares. 
Desde a manhã de ontem que estou melhor, não tive subidas de tensão, nem enauseamentos, muito menos vómitos, a dor do ciático está bem mais brandinha, e hoje vou começar a comer como gente. Uma maravilha. Depois do duche já tomei o pequeno almoço e agora vou até ao Barreiro. Há mais de oito dias que só saí de casa duas vezes para o médico. Preciso de apanhar ar, mesmo que frio. Obrigado a todos pelo carinho

3.12.16

A TI'ESPERANÇA DOS OLHOS VERDES - PARTE IX


-E é tudo o que sei.
Tanto que a pobrezinha sofreu por amor do Chico. Quando percebeu quão falsas tinham sido as suas promessas desinteressou-se da vida. Era costureira. Deixou a costura. E olhe que tinha muita freguesia. E foi para o Terreiro do Paço vender cartas. Penso que junto ao mar, tinha a ilusão de estar mais perto dele. E de tanto olhar o mar,  os seus olhos foram perdendo a cor, e ficando assim. É como se o próprio mar se instalasse dentro dela, e lhe assomasse aos olhos. Ou como se eles quisessem manter viva a esperança, que o seu coração já sepultara.
Escutava a voz de Rita,  enquanto velávamos o cadáver da infeliz Esperança. Desde aquele dia em que a vira doente, e aproveitando as minhas férias, tinha ido todos os dias visitá-la, e fizera amizade com a Rita, a vizinha , que era talvez a sua única amiga.
Mas só hoje, depois da sua morte, e ali na presença do seu corpo, Rita me contara a história da pobre mulher.
Não pude evitar as lágrimas. E pensei que se há amores que são a nossa razão de viver, outros pelo contrário tiram-nos a vida….

           **************************************************

Depois de muito procurar o Chico conseguira finalmente saber onde vivia agora a Esperança, e ansioso seguiu num táxi a caminho de sua casa. Estava nervoso, e emocionado. Ia finalmente rever a “sua” Esperança, depois de quase trinta anos. Dava-se conta que apesar do seu casamento, do abandono a que a votara, ele sempre sentira a doce rapariga como algo seu. Durante todos os anos em que remoeu o seu remorso, sempre o fez convicto de que ela estava à sua espera. Se passava pela sua cabeça, que a jovem podia ter casado, ter filhos, uma família enfim, logo afastava esse pensamento, como quem tira um obstáculo do seu caminho.
O carro acabara de parar junto a uma modesta habitação. Pagou a corrida, e bateu à porta. Depois reparou que estava só encostada, e como ninguém vinha abrir, empurrou-a e entrou. Quedou-se na ombreira, paralisado pela surpresa, o rosto lívido.

29.11.16

A TI'ESPERANÇA DOS OLHOS VERDES - PARTE IV






- Diga, diga, - pedi eu com mal disfarçada ansiedade.
A mulher hesitou, mas por fim decidiu-se:
- Sabe, - disse baixando a voz como quem vai revelar um segredo. É que a Esperança, quando para aqui veio, tinha uns olhos castanhos, amendoados, que depois ficaram verdes. Ora eu penso que uma coisa assim só por bruxedo.
- Muito obrigada. Se a vir dou-lhe o recado senão…
Deixei a frase incompleta e afastei-me. Tinha ficado pensativa. Eu não acreditava em bruxedos, mas convenhamos que isto de uma pessoa ter olhos castanhos que viram verdes, não era de todo normal. As lentes de contacto em Portugal eram raras e caras, decerto não estavam ao nível do bolso de uma vendedora ambulante, pelo que o mais certo era a mulher se ter enganado.Com certeza que já não se lembrava bem dos olhos da outra. A idade faz muitas confusões. O melhor era não pensar mais nisso.
Mas a verdade é que aquela mulher me intrigou, desde a primeira vez que a vi.
E como sempre me apaixonaram os mistérios, e os detetives eram no meu imaginário, uma figura muito romântica, resolvi transformar-me num, e lá fui até à Prior do Crato.
Perguntei a várias pessoas se a conheciam. Ninguém sabia quem era. Comecei a pensar que a velha mulher dos amendoins, sabia do que falava quando disse que ninguém sabia onde morava. Quase a desistir, um garotito que jogava à bola, disse-me que  a conhecia, e indicou-me a casa.
Respirei fundo e sem pensar dirigi-me para lá. Bati. Uma mulher dos seus quarenta anos, veio abrir. Pensei que o garoto me tinha enganado. E como o melhor remédio para o saber era perguntar-lhe, assim o fiz.
-Desculpe, disseram-me que morava aqui uma senhora que vende cartas, - foi a primeira coisa que me veio à cabeça e confesso que não era uma ideia famosa, já que podia comprar cartas em qualquer papelaria.
– Decerto me enganaram, - acrescentei ao ver que a mulher não parecia nem um pouco desconfiada.
- Ah! É aqui mesmo. É a Ti’Esperança. Mas ela está tão doente, coitadinha... Entre, entre, - convidou
Entrei. A casa era muito pobre. Tanto que me meteu dó. Sobre uma velha cama de ferro desconjuntada, com um puído lençol de linho, que já devia ter servido várias gerações, estava a enferma. Morta? Não fora os seus olhos, e eu diria que estava morta. Senti um arrepio….


21.2.14

A ESPERANÇA DOS OLHOS VERDES - FINAL




 Foto DAQUI


 - Sente-se mal, senhor?
Era a mulher jovem que vira ao entrar. A outra também se aproximou. Olhou para ele, olhou para a morta e soltou uma exclamação abafada.
- Santo Deus!
Havia tal espanto na sua voz que a jovem olhou. O homem também o fez. E o que viu encheu a sua alma de espanto. Os olhos da Esperança, tinham voltado a ser castanhos, tal como ele os recordava. Um castanho quente e doce, a que nem a frieza da morte retirava encanto. Assustado, fugiu dali como se fosse perseguido, enquanto a jovem cerrava suavemente os olhos da defunta, dizendo:
- O Chico! Só podia ser o Chico! Meu Deus por que não me ocorreu logo?


                                                    ***********




- Ciiiincoooo caaartassss, deeezzzzz toooostõeeees!       

Quedei-me surpreendida ao ouvir aquele pregão numa voz masculina. Procurei, com o olhar, o dono da voz e deparei com o Chico que, de cartas na mão, andava de um lado para o outro apregoando:
- Ciiiiincoooo caaartassss, deeezzzzz toooostõeees!       

Durante os dias que se seguiram ao funeral da "Esperança dos olhos verdes”, e aproveitando o resto das minhas férias, tinha conseguido saber que o Chico tinha voltado do Brasil, viúvo e muito rico. Vinha com a intenção de se fazer perdoar e viver enfim um amor que tinha ficado perdido no passado. Devo acrescentar que me foi fácil descobrir isto. Bastou seguir o Chico no próprio dia do funeral e apresentar-me como amiga da Esperança. Como tinha sido vista por ele, em casa dela, não foram difíceis as confidências.
Mas então que história era aquela? Porque estava ali a vender cartas no Terreiro do Paço, junto à gare fluvial da travessia Lisboa /Barreiro? E que roupas eram aquelas tão simples e semelhantes aos outros vendedores?
Correndo o risco de chegar atrasada ao emprego, interroguei-o. Ele então contou-me, que os remorsos não o deixavam em paz, depois de saber da sofrida espera da amada.
Assim resolvera doar em nome da falecida a sua fortuna para instituições de caridade.
E, agora ,ali estava no sítio onde ela vivera e fazendo o que ela fizera. Procedendo assim,sentia-se mais perto da mulher a quem tanto amara e que desgraçara por ambição.
- Talvez, quem sabe, seja mais fácil obter o seu perdão e viver este amor numa outra dimensão.
Apertei-lhe o braço, tentando dar-lhe algum consolo e afastei-me, acompanhada pelo pregão tão conhecido:
- Ciiiincoooo caaartassss, deeezzzzz toooostõeees!       

Fim

Maria Elvira Carvalho

12.1.14

ESPERANÇA DOS OLHOS VERDES Parte I




 Foto da CP. Antigo barco de travessia Barreiro-Lisboa e vice-versa



- Ciiiiinco caaaartas, deeeez tostõeeees!       
Todas as manhãs, ao desembarcar no Terreiro do Paço, era sempre aquele o primeiro pregão que ouvia. Procurei com o olhar a dona do pregão. Não consegui vê-la. Mas sabia que ela estava lá, como de costume. A sua voz fazia-se ouvir entre o burburinho dos que todas as manhãs faziam a travessia do Tejo, nos barcos da CP. Gente que morava na progressiva vila do Barreiro mas que trabalhava em Lisboa, como eu.
Estávamos a meio dos anos sessenta e eu, que nascera no Barreiro, tinha começado a trabalhar em Lisboa, pelo que todos os dias fazia aquela travessia, excepto aos fins-de-semana. Trinta e cinco minutos em barcos que tinham o nome de alguns distritos de Portugal. Até aí, as idas a Lisboa sempre tinham sido para ver alguém hospitalizado ou para visitar alguma das minhas tias residentes na capital. Gostava de ver do barco o Cristo-Rei, que também via da minha casa desde miúda mas tão pequenino que mais parecia um brinquedo. Já na cidade não havia quem me arrancasse de junto das montras, onde tudo era novo e maravilhoso para mim. Mas os anos passaram, eu cresci e agora ali estava  a caminho do trabalho como todas as manhãs. Quem conheceu o Terreiro do Paço naquela época, sabe que ali havia um verdadeiro mercado ambulante.
Mulheres e homens vendiam bananas, amendoins, bolos, lenços, roupas de bebé, bonecas, brincos, pentes, braceletes, rádios, óculos e muito mais.
Foi então entre todo aquele burburinho que ouvi:
-Ciiiiinco caaaartas, deeeez tostõeeees!
Olhei e vi-a. Era uma mulher que talvez não tivesse mais de quarenta anos, embora aparentasse muitos mais. Mas é sempre difícil saber ao certo a idade das pessoas para quem a vida foi madrasta. Envelhecem mais depressa pelos trabalhos e provações por que passam.
Franzina, de pele morena, poderia ter sido muito bonita na juventude, mas já não lhe restava nada dessa beleza. Poderia até ser considerada uma mulher vulgar não fossem os seus maravilhosos olhos verdes, de brilho intenso, como se neles se concentrasse toda a juventude que o seu corpo deixara para trás há muito.
Fiquei fascinada com aqueles olhos. Reparei que olhava repetidas vezes para o mar, porém não podia ficar ali mais tempo a contemplá-la pois estava na hora de ir para o trabalho.
Mas todos os dias, ao ouvir o seu pregão, não podia deixar de olhar a mulher enquanto imaginava bonitas histórias de amor em que ela era a protagonista. Foi assim que um dia me apercebi que os olhos verdes da mulher ficavam às vezes de um tom azulado, tal como o mar em dias de calmaria.
Chegou o mês de Agosto e, como todos os anos, o laboratório onde eu trabalhava, encerrou para férias. Decidi passá-las em Lisboa, em casa dos meus tios, já que não dispunha de verba, nem autorização dos pais, para ir para qualquer lugar sozinha. Com os meus tios gozava de ampla liberdade enquanto não arranjasse namorado. Como tinha passe dava, de vez em quando, umas voltas pela cidade. E foi nessa altura que me ocorreu descobrir se as minhas fantasias a respeito da vendedora de cartas tinham algum fundamento. Tomada a decisão, logo a coloquei em prática.