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29.8.19

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS...DA TROPA IV


                                                foto minha

                                                      IV

O nosso Manuel foi falar com o Capitão, gerente da Seca, para tentar resolver o seu problema. Como ele trabalhava o ano inteiro e a mulher estava prenhe, ele queria uma casa para viver com ela. O pior é que as casas estavam todas habitadas. Só estava vaga a barraca do Pinheiro Manso.
Ele e a mulher não se importavam de ir viver para lá se o gerente autorizasse. E ele autorizou.
No fim de Março, eles mudaram-se para essa “casa”. Era uma barraca de madeira, com uma espécie de sala, com uma bancada,num canto, e dois quartos. Não tinha electricidade, não tinha água, mas tinha o telhado forrado, o que a tornava mais confortável no Inverno.
Manuel era um homem muito habilidoso. Com uma fita métrica, um martelo, escopro e polaina, cola, que ele fazia, misturando farinha com água, pregos e madeira, ele era capaz de fazer maravilhas. Mas onde ir arranjar a madeira?
Todos os anos, quando os navios chegavam, os botes eram trazidos para terra, para que fossem reparados. Eram trocadas as tábuas que estavam em mau estado, substituídas por novas, e calafetados, para que não apresentassem perigo quando voltassem ao mar. À porta da oficina, amontoavam-se as tábuas velhas, e pequenos pedaços de novas. Manuel conseguiu autorização para utilizar essas tábuas, e com elas fez um armário, para a loiça, uma arca para guardar as roupas, o berço para o filho que estava a caminho, e uma mesa. No ferro velho comprou uma cama e duas cadeiras de ferro, que lixou e  pintou de novo. Comprou ainda um fogão, a petróleo, e o resultado foi  que a casita estava “mobilada”, e pronta a habitar.



                  Fogão a petróleo, mais ou menos igual ao do Manuel
                                                     foto da Internet


O filho do Manuel chegaria no final de Setembro. Porém no início desse mês, uma daquelas tempestades de Verão, abateu-se sobre a Seca.
Na noite do dia dois para três, a trovoada rugia estrondosa como se estivesse por cima das suas cabeças. Ele abraçava a mulher que tremia de medo, e tentava esconder dela o seu próprio pavor, quando um enorme relâmpago fez da noite, dia, e o trovão os ensurdeceu. A mulher, aterrorizada de medo, sentia a criança “aos saltos” e ambos sentiram o cheiro a queimado. Pouco depois a trovoada afastou-se mas eles não mais dormiram. A mulher começou com contracções antes de tempo. Talvez por causa do medo, o certo é que a criança se aprestava para vir ao mundo. Quando pelas sete da manhã, Manuel abriu a porta da “casa” encontrou na sua frente, metade do pinheiro caído, cortado, de alto-a-baixo, pelo raio que o ferira. Tremendo, a pensar no perigo que correram, ele chamou a mulher. Ela no entanto não se levantou e apenas lhe pediu que fosse chamar a parteira. Às 11,20 desse dia, a mulher do Manuel dava à luz, o primeiro dos três filhos, que viria a ter, antes de uma infecção, pós parto que quase a matou e a deixou impossibilitada de ter mais filhos.
No final desse ano, o gerente disse ao Manuel, que ia precisar da barraquita, para a nova porteira. Disse-lhe ainda que ele teria que mudar para o barracão junto ao rio, onde já viviam três casais. Porém o barracão era grande, tinha um quarto vago, e ele e a família podiam usufruir dele.

                                               

28.8.19

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS...DA TROPA III


O Manuel e sua esposa no dia do casamento.





 Para ir ver a jovem, Manuel tinha que atravessar o rio e na Seca havia sempre um bote e um par de remos disponíveis para o fazer. Mas às vezes o mau tempo fazia perigar as visitas. Como naquele dia, 20 de Janeiro de 1946, noite de chuva forte, e ventos intensos, em que ao regressar com o Aires, que também tinha ido ver a namorada, a trabalhar na mesma Seca do Seixal, perderam os remos, e Manuel mergulhou várias vezes, perante o terror do amigo, até os conseguir apanhar e regressarem assim com dificuldade, mas sãos e salvos. O casamento fora marcado para Novembro, e embora faltasse pouco tempo, a Manuel parecia que ele tinha parado. O barquito e os remos, não descansavam um só dia, da travessia entre a Seca da Azinheira e a Seca do Seixal. A par da sua ansiedade, reinava o medo. Manuel tinha que tirar os documentos para se casar, e como era desertor, pensava que podia ser preso a qualquer momento.
Mas os documentos vieram sem problemas e o ele aquietou o seu coração. 
Finalmente, Novembro chegou, e com ele o tão ansiado dia do casamento. A 9 de Novembro, na Igreja de Santa Cruz, no Barreiro, o Padre Abílio Mendes, casava o Manuel com a sua amada Gravelina.
A partir desse dia, a mulher passou a trabalhar na Seca da Azinheira, e o bote e os remos foram dispensados.
Sem casa, nem dinheiro para a pagar, Manuel vivia na malta dos homens e a mulher na malta das mulheres.



                                           foto minha


A malta, era um enorme edifício que existia na Seca, para o pessoal que todos os anos, era recrutado nas aldeias do norte para a safra de bacalhau, que decorria entre Setembro e finais de Março, princípios de Abril. Este pessoal, mesmo sendo constituído muitas vezes, por marido e mulher, não podia, segundo a mentalidade de outrora, viver junto durante todo o tempo da safra. Logo, na Seca existiam dois edifícios, as  "maltas", uma para os homens e outra para as mulheres. As regras eram claras, os casais, podiam fazer as refeições juntos, num ou noutro local, mas antes das onze horas da noite, teriam que estar nas suas respectivas "maltas", sob pena de o vigia encerrar as portas e terem que dormir ao relento.
Para dar asas à paixão, os casais procuravam um pinhal que havia na Seca, situado numa ribanceira, que criava zonas ocultas aos olhares de quem por ele passava, ou o canavial, que ladeava a vedação da Seca, até à povoação da Telha.
 Usavam um nome de código que era: "Aviar a caderneta" Consta, que a pessoa que vos está a contar esta história, é filha de um "aviamento de caderneta". Em 1947, com o aproximar do final da safra, e com a mulher grávida, Manuel deita contas à vida, sem saber como evitar a ida da mulher para casa dos sogros, em Santa Cruz da Trapa, na Beira Alta.
Quer que esteja  junto de si, mas de Abril a Setembro a Seca, não tem trabalho a não ser para os que trabalham na sua manutenção. Logo a mulher não poderá ficar na malta das mulheres, e o que ele ganha, não dá para alugar uma casa.

                                               

13.9.18

HISTÓRIAS DE ANTIGAMENTE - DO NAVIO PARA O PRATO

Pinheiro Manso, sob o qual havia a tal barraquita de madeira onde eu nasci.




Antes de eu nascer, o meu pai falou com o senhor Capitão, gerente da Seca, para ver se a minha mãe podia ficar lá a viver, o ano todo com ele, visto que o meu pai era o lenhador e ficava o ano todo, enquanto a minha mãe quando acabava a safra ia pró norte, para a casa dos pais. Ele ganhava pouco, não tinha condições para alugar uma casa na Telha, mas não queria a minha mãe longe dele, na hora do parto.
Havia quase à entrada da Seca, perto da eira, onde se malhava o milho e o centeio na época das colheitas, uma barraquita de madeira, debaixo de um pinheiro manso. Estava desocupada, e o Capitão, disse-lhe que podiam habitá-la. Foi aí que nasci e vivi os primeiros seis meses da minha vida. Depois o Capitão, mandou-nos para um enorme barracão que ficava junto ao portão, que dava para a praia, e para a já falada "Caldeira do Alemão", por onde entrava o pessoal que vinha do Barreiro. Era um casarão de madeira com mais de onze metros de cumprimento, com quatro quartos, e um grande salão, onde havia uma mesa comprida e bancos corridos, e num  canto sobre uma chapa, dois tijolos ligados por uma grelha de ferro, que servia de fogão. Por estar junto ao rio e por causa das cheias estava assente em pilares de cimento. Aí já viviam 3 casais, ocupando cada um, o  seu quarto com os respetivos filhos. Eu e os meus pais fomos ocupar o único que ainda estava disponível.
 Foi neste casarão que nasceram mais tarde, os meus irmãos, numa altura em que os outros casais já tinham saído, e vivíamos apenas os três no casarão. E que vivi até aos 18 anos. Esta introdução servirá a quem me lê, para me conhecer melhor.
Mas voltemos ao trabalho na Seca.
Quando os navios chegavam, fazia-se a descarga. Embora a Seca estivesse junto ao rio, os barcos ficavam ancorados na parte mais funda e era preciso ir lá descarregá-los. Fazia-se isso da seguinte maneira. Iam umas tantas mulheres para o porão do navio e arrancavam o bacalhau, jogando-o para uma pequena plataforma onde 2 mulheres o apanhavam e jogavam pró convés. Era especialmente duro, enquanto os navios estavam muito cheios, até sair bacalhau suficiente para ficarem de pé, levavam as horas a trabalhar de "gatas".
  No convés outras mulheres apanhavam-no e atiravam-no para uma  lancha acostada ao navio. Quando a lancha estava cheia, um homem levava-a para o cais, enquanto outro homem acostava outra lancha vazia ao navio, para que o trabalho nunca parasse. Quando a lancha cheia, chegava ao pontão de madeira com carris de ferro, por onde deslizavam as " zorras". As" zorras" eram uns vagões que levavam o bacalhau pelo pontão até ao armazém principal para ser pesado, e depois para as câmaras frigoríficas para ser empilhado.


Mesmo no fim do pontão, haviam degraus que desciam até ao rio. Nessas escadas estavam mulheres, uma a cada dois degraus. Quando a lancha chegava ao pontão o homem acostava a lancha e passava para outra vazia, que seguia o caminho do navio. 

Na descarga, duas mulheres agarravam mãos cheias de bacalhau, pelo rabo e passavam à mulher que estava na escada junto à lancha, que por sua vez o dava à seguinte que passava à outra até chegar à zorra. Quando esta estava cheia, duas mulheres, normalmente das mais moças, empurravam a correr as "zorras" para a pesa, onde a largavam pegando noutra vazia e seguindo a correr até ao fim da ponte.
Outras mulheres levavam a zorra cheia, depois de pesada para o armazém frigorífico onde o bacalhau ia ser empilhado. Quando a altura dos braços já não chegava, iam mulheres para cima da pilha para receberem o bacalhau e o empilhar até quase ao teto.  
Aí ficava a aguardar a fase seguinte, que era a saída para o armazém de lavagem.
Nesta altura,  meia dúzia de mulheres, geralmente as mais jovens, iam para as pilhas de bacalhau nas câmaras frigoríficas, onde arrancavam o bacalhau e o jogavam em carros de mão que os homens levavam para o armazém de lavagem.
Nesta zona, havia umas enormes tinas (tanques) ocupados por 16 mulheres, 8 de cada lado. Os homens vinham com os carros de mão cheios de bacalhau e despejavam-no nas tinas. As mulheres de escova na mão pegavam o bacalhau de dentro de água e levavam-no um a um, lançando-o de seguida para outra carrinho que estava colocado no intervalo entre cada duas tinas. Enquanto faziam este trabalho cantavam em coro melodias dos ranchos folclóricos das suas terras, e não raras vezes cantavam ao desafio. Era uma maneira de passar o tempo mais rapidamente e não sentir tanto as dores nas costas, provocadas pela posição sobre a tina. Imaginam o que era estar oito horas diárias de pé, em cima de um estrado, curvadas sobre uma tina de água a lavar o bacalhau? Sem luvas, com a água gelada de inverno?
Lavado o bacalhau, era novamente salgado e empilhado e ficava assim por cinco ou seis dias. Depois era banhado. Banhar o bacalhau era mergulhá-lo em água com sal, e tirá-lo imediatamente. Isso fazia com que não fosse a secar com excesso de sal.

Estava então pronto para a secagem. Se estava bom tempo era estendido ao sol, se chovia ia para a  estufa. Com bom tempo começávamos a encher a seca às 5 da manhã e terminávamos volta das 9. Almoçávamos, às 11, merendava-se às 16 e acabava-se o dia pelas 22 horas, em dias que havia serão da noite para lavar o bacalhau. Quando não havia serão da noite, não havia a hora da merenda e o trabalho acabava perto das 18 horas.

Bacalhau secando ao sol. Foto da net.

Durante 4 ou 5 dias o bacalhau secava. À medida que secava, os escolhedores, ( homens que separavam o bacalhau seco em montinhos  consoante tamanho e categoria). Do miúdo ao graúdo.
Quando à tardinha as mulheres iam com os carros de mão, apanhar o bacalhau, levavam o bacalhau seco e escolhido para o armazém de enfardamento, e o outro para outros armazéns onde se guardava o que ainda precisava mais tempo de sol.
O armazém de enfardamento, era composto por duas partes. No rés do chão, ficava empilhado o bacalhau pronto para enfardar que depois era transportado num elevador, para o primeiro andar, onde era pesado amarrado em fardos de 60 kg, e metido  em sacos de serapilheira. Uma mulher com uma grande curva agulha e cordel cozia a boca do saco. Era o enfardamento.
Depois cada fardo era levado em carros de mão até à porta do armazém onde era lançado para uma mesa no rés do chão por um escorrega. Aí dois homens punham cada saco num carrinho de mão que as mulheres levavam até ao fim da ponte onde era lançado em fragatas, por outra tábua de escorrega, que se encarregavam de o levar pelo rio para a sede em Lisboa, onde os compradores o iam buscar.  E aqui terminava tudo. Só voltávamos a vê-lo no prato. 


Amanhã falarei da "queda do bacalhau" ou seja, do que aconteceu para terminar com algo que chegou a ser uma das nossas grandes fontes de economia.
Se até lá não estiverem ainda enjoados de tanto bacalhau.

12.9.18

HISTÓRIA DE ANTIGAMENTE - AVIAR A CADERNETA

Na Seca do Bacalhau, da Parceria Geral de Pescarias, havia duas quintas, cada uma com o seu caseiro, onde se produzia tudo o que a terra dá. Das batatas às frutas e ao feno para os animais. Numa delas, havia um depósito de água que servia toda a Seca e vários tanques que serviam para regas e para lavagens de roupa.  Na outra um poço e uma nora movida geralmente por uma vaca, completava as exigências. Havia uma casa grande, senhorial, com garagem, e quintal. Era a casa do senhor Capitão, o gerente deste pequeno mundo. Ficava isolada junto dum pequeno eucaliptal.


 Depois mais afastadas ficavam meia dúzia de casas, habitadas por pessoas que viviam todo o ano na Seca,e que tratavam da manutenção para que tudo sempre estivesse em ordem quando começava a safra.
 Os electricistas, os dois empregados de escritório, o ferreiro, os vigias, e o Ti'Abel.

Havia ainda uma casa em cada quinta, para os caseiros, uma casa junto ao portão principal, para a porteira e um barracão grande no portão junto à praia, para o pessoal do Barreiro que ia e vinha a pé para o trabalho pela "caldeira do alemão" O terceiro portão junto ao moinho de maré, para quem vinha de Palhais, atravessando a Quinta do Himalaia, era o próprio moleiro que abria e fechava à hora do pessoal entrar ou sair, sendo que à saída em qualquer dos portões tinham que mostrar a alcofa que traziam de manhã com o almoço, para ver se não levavam, alguma coisa que não lhes pertencesse. Havia ainda duas enormes camaratas, e o posto da guarda fiscal que ficava pegado a uma destas camaratas, que eram chamadas de "malta".
O Ti'Abel era o encarregado de ir todos os dias, levar a correspondência da firma, e também do pessoal que trabalhava nela, à estação dos correios no Barreiro. Na volta, trazia o correio, que havia para a Seca, e trazia também peixe, e carne do mercado, para quem lhe tinha encomendado. Tudo isto numa carroça, puxada por um manso cavalo. Os caseiros tinham também uma carroça, que usavam para levar para o mercado, os produtos da quinta que excediam os gastos da Seca.

A actividade da seca do bacalhau, decorria de Outubro até Abril. Durante esses meses a Seca chegava a ter quase meio milhar de trabalhadores, entre os residentes, aqueles que vinham do norte para fazer a safra e ficavam a viver nas camaratas, e o pessoal, maioria mulheres que vinham todos os dias das terras vizinhas, Telha, Quinta de Lomba, Barreiro, Baixa da Banheira, Alhos Vedros, Palhais, Santo António da Charneca, e Coina.  Do Norte, vinham homens e mulheres, muitos dos quais casados. E então acontecia uma situação algo caricata.


É que os casais não podiam viver juntos. Os homens viviam numa das "maltas", que além dos imensos quartos colectivos, tinha um grande refeitório, mesas de vários metros com bancos corridos, e uma cozinha com um enorme fogão a lenha, com imensas bocas, e dois cozinheiros que cozinhavam para os homens. No extremo oposto, a "malta" das mulheres, era em tudo gémea da que acaba de se descrever, só que em vez de cozinheiros, tinha cozinheiras. A única concessão que era feita aos casais, era a de poderem comer juntos, num ou noutro edifício. Mas antes das onze da noite, todos tinham que estar recolhidos na respetiva "malta",  sob pena de terem que dormir ao relento.
Bom, mas os casais precisavam de intimidade. Principalmente os homens, já que naquela época a sexualidade parecia ser privilégio deles. 
Talvez porque os homens se preocupassem mais em desfrutar do ato sexual, do que em proporcionar à sua companheira qualquer satisfação, as mulheres, encaravam o mesmo, como "um frete a que não podiam fugir, porque era a sua obrigação satisfazer o marido".  Não sei se a origem do nome de código "Aviar a caderneta" mas os homens usavam essa expressão para dizerem à mulher quando queriam ter sexo. Talvez pareça um tanto crua esta expressão, mas não me parece que se pudesse chamar aquilo fazer amor.
Na Seca havia também um pequeno pinhal com umas ribanceiras à volta, e um canavial que ladeava a vedação da Seca, estendendo-se até à Telha.

 Então quando os casais, queriam "aviar a caderneta", recorriam a estas instalações. O pinhal, ou o canavial.
Parece que a pessoa que vos está a contar esta história, é filha de um "aviamento de caderneta". Corria o ano de 1946, já tinha acabado a II Guerra Mundial.

Vou deixar para outro dia o trabalho de pôr o Bacalhau seco e salgado, como todos o conhecem.

Para todos uma excelente semana 

28.11.17

MARIA - PARTE II

RE-EDIÇÃO


A Surpresa


A praia fica uns dois metros abaixo do nível da Quinta. Por isso as águas do rio, nunca iam até às oliveiras, mesmo nas marés vivas de Agosto, ou quando estava mau tempo no Inverno. O mesmo não se passa do outro lado da azinhaga onde começa a Seca que ali naquele sítio está ao nível do rio.Daí que um pouco mais à frente onde as cassas e armazéns da Seca começam, o arame farpado dê lugar a uma parede de cimento que nós chamávamos muralha.  Mas ali naquele canto, onde hoje apenas se vêm ervas, existia o grande barracão de madeira onde meus irmãos nasceram e onde habitámos durante toda a nossa infância. Por isso ele estava assente em pilares de cimento, com mais de mais de um metro de altura. Para que não acordássemos em dia de marés grandes, dentro de água.

Atravessei a azinhaga e mergulhei os pés na faixa de areia, agora bem pequena, e transportada para lá por camiões da Câmara, já que a areia original da praia, desapareceu toda com o empurrar do rio para o lado de cá pelos aterros da Siderurgia Nacional. Fui caminhando lentamente. As águas de tão calmas pareciam artificiais. O sol estava prestes a desaparecer no horizonte e deixava nelas um rasto avermelhado, como uma estrada de fogo.
Sentei-me na areia entre dois tufos de junco, e perdi-me nas minhas recordações. Lembrei-me daquela vez em que saí de casa para apanhar amoras naquelas silvas do outro lado da cerca, e fiquei presa nelas sem conseguir desenvencilhar-me dos picos que me prenderam a saia. Não me recordo que idade tinha, mas era muito pequenina. Chorei tanto com medo que ninguém me encontrasse. E os meus pais aflitos percorrendo a margem do rio pensando que eu teria ido para lá e quem sabe estaria afogada.

“Vi” o meu irmão, brincando sozinho com a areia, abrindo poços e fazendo construções, e a minha irmã escondendo-se com medo dos GNR, que vinham de vez em quando a cavalo até à Seca, onde se reuniam com a Guarda-fiscal, cujo posto ficava no topo norte da malta das mulheres. “Vi” o grande barracão lá bem no cantinho, encostado à cerca, e o portão que aí havia e que a minha mãe abria todas as manhãs para o pessoal que vinha do Barreiro a pé pela Caldeira do Alemão para trabalhar na Seca. Quando passava a última pessoa, a minha mãe fechava o portão e ia com ela para o trabalho na Seca. À noite saía um pouco mais cedo e vinha na frente para abrir o portão.

Lembrei do quintal enorme que meu pai cultivava, do feijão verde, que nós comíamos cru sempre que alguma vagem nos chamava a atenção, ou quando tínhamos fome e os pais ainda não tinham vindo do trabalho, os tomates as cenouras, e até as cebolas que comíamos, com um pouco de sal.

“Vi” o meu pai encostando uma escada de madeira ao barracão, subir ao telhado e colocar lá a bandeira do seu clube, naquele ano em que o Porto foi campeão na década de 50. Era tão raro naquela altura o F.C.P. ganhar alguma coisa.

O sol desaparecera no horizonte, o dia prestava-se para dar lugar à noite, e decidi regressar a casa.

Ao chegar à Quinta quedei-me surpreendida. Na minha frente levantava-se a mulher que me intrigara uma hora antes. E era afinal uma velha conhecida…


Continua

18.4.16

MANEL DA LENHA - PARTE LIV

Antiga estação fluvial do Barreiro, obra do arquitecto Conttinelli Telmo, inaugurada a 28 de Maio de 1932, poderia ser transformada num museu, dado o seu interesse cultural e histórico, mas apesar de estar classificada como Monumento de Interesse Público degrada-se dia a dia, sem que alguém de direito tome uma resolução que evite a sua ruína total.



No início de Janeiro, o genro do Manuel parte para Moçambique, com a promessa de que logo que possível a mulher irá juntar-se-lhe.
Poucos dias depois, Marcelo faz nova remodelação no governo, e entre os novos ministros está Baltazar Rebelo de Sousa, o pai daquele que será muitos anos mais tarde o Presidente da República de Portugal.
Na seca, o trabalho não teve nenhuma alteração, tudo continua na mesma, mas o Manuel com uma filha casada, os outros dois a trabalhar, e com salário da mulher todo o ano tem agora uma vida um pouco mais desafogada, pode enfim comprar alguns electrodomésticos essenciais,  como o frigorífico e  a máquina de lavar roupa, que vêm fazer companhia ao fogão a gás e ao esquentador, comprados logo quando a filha alugou a nova casa, e que lhes tem proporcionado uns belos banhos de banheira, bem diferentes dos banhos na celha, em que era preciso ferver um panelão de água.
Marcelo Caetano, acaba com o Estado Novo e institui o Estado Social, mas a prova de que tudo continua na mesma, são as prisões de Salgado Zenha, quando se preparava para debater na Faculdade de Direito de Lisboa, o Estado Colonial e Jaime Gama também preso na mesma data.
Por essa altura, já a filha mais velha andava a tratar da viagem para Moçambique. Eram precisas autorizações do ministério, papéis e mais papéis, e vacinas.
A Gravelina não se conforma, chora todos os dias. Ele também está preocupado, mas tenta animar a mulher. Inicialmente o genro ficará no Comando Naval em Lourenço Marques, e ele acredita que por muita guerra que por lá ande, na cidade a filha não correrá perigo.
No final de Abril, a safra está a terminar, e a filha já tem o bilhete de avião e a ordem de embarque. Com ela levará apenas uma pequena mala de roupa pessoal, o enxoval segue numa mala de porão por barco.
Parte dias depois. O Manuel vai com a família despedir-se da filha cujo avião parte à meia-noite. Dez minutos depois o tempo instável, transforma-se num violento temporal, de tal modo, que o último barco para o Barreiro, que o Manuel e a família deveriam apanhar, foi cancelado e tiveram que ficar na estação do Terreiro do Paço até ao primeiro barco da manhã, para regressarem.

11.4.16

MANEL DA LENHA.- PARTE XLVI


Esta era a casa da porteira, A janela é o quarto, a outra janelinha redonda é a casa de banho e a porta dá acesso à cozinha. Foto minha.


Nos dias que se seguiram os jornais contaram como puderam a tragédia. E digo que contaram como puderam porque as chuvas não explicam tanta morte, e tanta gente desalojada. Certo que a chuva foi muita, dizem que casos destes só acontecem uma vez a cada 500 anos. Mas a miséria em que vivia grande parte da população, muitos em barracas situadas perto de ribeiros, matou tanto ou mais que a chuva. Porém,  isso os jornais não podiam noticiar, que a censura  cortava tudo o que pudesse pôr em questão o governo . 
No laboratório onde a filha trabalhava, tinha várias colegas de Odivelas, uma das zonas mais afectadas. Algumas perderam tudo o que tinham. Em todo o país, mobilizaram-se as pessoas na aquisição do mais essencial para socorro das vitimas que sobreviveram à catástrofe. Na Seca, juntaram-se cobertores, lençóis e  outras roupas de agasalho que foram enviadas para lá. Apesar de  serem pobres, todos contribuiriam com o que puderam.
No final do ano a porteira do portão principal da Seca, morreu. O Gerente da Seca, propôs que ao Manuel que a sua mulher, fosse a nova porteira.  Isso queria dizer que a Gravelina passava a trabalhar o ano inteiro, não apenas durante os meses da safra. Por outro lado deixava de trabalhar na Seca, já que aquele portão tinha movimento o dia inteiro. Porém a casa da porteira, era muito pequena, tinha apenas um quarto, uma cozinha, e casa de banho, pequena, apenas com um lavatório, e uma sanita. Ainda assim melhor que no barracão, onde não havia nada, e Manuel tivera que fazer uma casinha de madeira ao largo da casa para os alívios fisiológicos.
Havia também um telefone, para comunicar com o escritório, sempre que alguém sem ser trabalhador queria entrar. Ora se por um lado a proposta era boa, por outro, o facto da casa ser tão pequena e ele ter três filhos tornava inviável a aceitação. 
Então o Manuel propôs ao gerente, a possibilidade de continuar a viver no velho barracão, mesmo com a mulher porteira no outro portão.
Ele aceitou, e assim a Gravelina, ia logo de manhã para o outro portão, fazia lá o almoço e almoçavam lá, depois à noite, fechava o portão e ia dormir junto da família.
Por essa altura, Manuel sabe que um sobrinho da  mulher 
acaba de embarcar para Angola. Mais um para a maldita guerra.

25.2.16

MANEL DA LENHA - PARTE XV




O Manel e a mulher, na foto do casamento.

O povo diz que gente apaixonada, anda na horta e não vê as couves, e com o nosso herói assim era. Ele estava preocupado, esperava os documentos para o casamento, e tinha medo que em vez deles, viesse a policia para o prender. Ele não tinha  em seu poder, a caderneta militar que todos os mancebos recebiam quando passavam à reserva, uma vez que tinha desertado.
E por causa disso, os amigos diziam-lhe que ele não podia casar, era desertor. A policia era agora mais repressiva que nunca. Especialmente porque naquela altura se deu, a revolta da Mealhada. A revolta organizada por um grupo de oficiais milicianos a partir do Porto, que marcharam até à  Mealhada, onde foi detida, e os seus chefes presos.  Felizmente poucos dias depois os documentos chegaram, ninguém procurou por ele e Manuel aquietou os seus receios. 
 Novembro chegou e com ele o tão ansiado dia do casamento. A 9 de Novembro na igreja de Santa Cruz no Barreiro, o Padre Abílio Mendes casava o Manuel com a sua amada Gravelina.
Foi seu padrinho o seu irmão João, e a mulher com quem casara dois anos antes.
A partir desse dia, a mulher do Manuel, saiu do Seixal e passou a trabalhar na Seca da Azinheira, e o bote e os remos foram dispensados. Sem casa, ele vivia na malta dos homens e a mulher na das mulheres.
Apaixonado pelo futebol, não passou despercebido ao Manuel, a estreia em Famalicão a 24 desse mês dos “Cinco Violinos” um quinteto de jogadores do Sporting, que haveria de despertar a admiração de todos os aficionados do futebol.
Pouco depois do começo do novo ano, chegam as novidades à vida do Manuel. O seu amigo e agora cunhado, Varandas, casa-se e vai viver para o pátio da Quinta das Canas, mesmo à entrada da Seca da Azinheira. E a mulher do Manuel descobre que está prenhe.
No início de Março, a mulher do Manuel passou mal, ele pensou que ela ia abortar e foi grande o susto. 
Tudo começou numa noite em que a mulher jantou com ele na "malta" dos homens. O jantar era batatas com bacalhau, mas um outro casal comeu caldeirada de chocos. Gravelina sentiu desejos de comer a caldeirada, mas por vergonha não aceitou, apesar de lhe ter sido oferecida, pelo outro casal, por saberem que estava grávida. Porém já tarde da noite, na sua "malta" começou a passar mal, sentia uma vontade enorme de comer a caldeirada. O vigia foi chamar o marido que ficou em pânico. Porém o casal que comera a caldeirada, tinha guardado o caldo que sobrara para fazer no dia seguinte uma sopa, e deu ao Manuel uma chávena de caldo que a mulher bebeu sôfrega. E acalmou. 
Este facto porém, fez Manuel pensar que não queria a mulher longe dele até o bebé nascer, e que por isso a mulher não iria para a aldeia, para junto de Piedade como inicialmente tinham pensado.
 Ele quer que ela fique junto de si, mas de Março a Setembro, a Seca não tem trabalho a não ser para os que trabalham na manutenção. Logo a mulher não poderá ficar na "malta" das mulheres, que será fechada no fim da safra, e o que ele ganha, não dá para alugar uma casa.
O nosso Manuel foi falar com o Capitão, gerente da Seca, para tentar resolver o seu problema. Como ele trabalhava o ano inteiro e a mulher estava grávida, ele queria uma casa para viver com ela. O pior é que as casas estavam todas habitadas. Só estava vaga a barraca do Pinheiro Manso.