O meu semáforo único
O semáforo à esquina da minha rua tem caprichos que são
dele, só dele e de mais nenhum semáforo que eu conheça.
Posso garantir que é caso único, porque tenho convivido com
imensos semáforos por todo o mundo e não sei de nenhum com os caprichos do meu,
isto é, do semáforo da minha rua.
O que vou contar é segredo, mas eu sei que fica tudo entre
nós.
Calcule-se que o semáforo, farto de passar o dia a dar luz
verde, amarela, encarnada, vai daí, à noite, noite alta, volta não volta, dá-se
ao gosto de experimentar outras cores.
Primeiro certifica-se de que não há trânsito nem
transeuntes, porque ele é um semáforo muito escrupuloso. Só estou eu à janela,
quando trabalho até mais tarde. Sou o seu único confidente.
— Uma vida inteira, sujeito a três únicas cores é de rebentar
com a paciência de qualquer um — diz-me o semáforo. — Ora repara neste lilás,
que tal?
Eu aprecio e aplaudo, mas moderadamente, para não acordar os
vizinhos.
— E este azul-marinho, não é lindo? — pergunta-me ele,
sabendo antecipadamente a resposta.
Não para de experimentar. Cor-de-rosa, verde-oliva,
azul-ultramarino, encarnado-
-beringela, roxo, laranja, amarelo-torrado, amarelo-canário,
amarelo-gema-de-ovo (tantos amarelos!), verde-folha, azul da Prússia,
violeta-carmesim, cor-de-púrpura e mais e mais e mais cores
sem nome, tantas, que o semáforo da minha rua, a meio da noite, parece um
arco-íris aos soluços. Acreditem ou não acreditem, é um espectáculo
deslumbrante.
Os gatos vadios até se esquecem daquilo ao que andam e ficam
estarrecidos, a olhar para o semáforo. Eu e os gatos somos os únicos
espectadores, os seus admiradores fiéis.
Fosse da aragem mais fresca de uma destas noites ou do que
fosse, apanhei um resfriado e passei vários dias fechado em casa, a curar-me da
constipação. Quando voltei a sentir-me bom, fui logo postar-me no meu miradoiro
de janela.
Mas para estranheza minha, o semáforo nunca mais passava do
verde, amarelo e vermelho dos seus mais ajuizados dias. Que lhe sucedera? Seria
ainda cedo para a grande gala das cores, em passagem de modelos?
Perguntei-lhe e ele respondeu-me:
— Ontem à noite apanhei um susto que nem queiras saber.
Estava eu a ensaiar um novo pigmento, entre o azul-cobalto e o
cinzento-de-mercúrio, quando dou com um polícia a olhar para mim e a esfregar
os olhos, abismado. Atrapalhei-me, não consegui recompor-me e disparei uma
quantidade de cores, à doida. O verde, o amarelo e o encarnado é que não havia
meio.
— E o polícia de boca aberta — ri-me eu.
— O caso não é para rir, porque o polícia agarrou-se ao
telemóvel e pôs-se a chamar por outros polícias. Eles quase a chegarem e eu
cada vez mais aflito, sem atinar com as cores do costume. Ora me saía
azul-celeste ora castanho-terra ora rosa-pálido.
— E o polícia? — perguntei-lhe eu, em brasa.
— O polícia só gritava: “1035… Semáforo avariado. Perigo
público. Remoção urgente. Escuto!” Já me via a ser arrancado, atirado para um
monte de sucata, substituído por um desses semáforos vulgares, sem imaginação
nenhuma.
— O que seria uma péssima vizinhança — comentei.
— Tanto mais que já estou habituado a esta rua. À noite, é
pacata. De dia, não dá muito trabalho — continuou ele. — Enfim, lá consegui
estabilizar as cores. Quando a carrinha da polícia chegou, encontraram um
semáforo normalíssimo.
— E o polícia que deu o alarme? — quis eu saber, condoído.
— Passou um mau bocado. O chefe recomendou-lhe que só
bebesse laranjada ao jantar e, dentro da carrinha em que regressaram à
esquadra, deve ter-lhe dito mais coisas desagradáveis.
— E tu? — perguntei.
— Eu fiquei penalizado e com remorsos. Tanto assim que
decidi não voltar às experiências.
— Nunca mais?
A minha voz saiu-me como se estivesse quase a fazer
beicinho. Mas o semáforo tranquilizou-me, a tempo:
— Decidi que uma vez por ano, mas só uma vez por ano, na
noite de Natal, quando estiverem todos agasalhados em casa, até os polícias,
nessa noite, só nessa noite é que apresento o meu espectáculo total
furta-cores.
Respirei fundo.
Está a chegar o frio e eu vou juntar camisolas e cachecóis e
casacão e sobretudo e carapuço e boné, para não perder um único segundo da
feérica noite que me espera.
Claro que, como já avisei, tudo isto é segredo. Eu até nem
digo onde moro.
António Torrado
Dezembro à porta
Porto, Edições Asa, 2005
6 comentários:
Eu semáforo saudoso
Entraria em greve,
Me desligando todo
Lutando e impondo
O regresso ao sinaleiro
De luva branca
(a tecnologia
não é tudo
o que dá cor à vida
que saudades eu tenho
do sinaleiro da avenida)
Até
Um semáforo frustrado.
Porque queria ser arco-íris.
Não conhecia este conto... Gostei muito! Muito obrigada!
Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube
Adorei este poema! Obrigada :)
.
Gostaria tanto de vos dizer...
.
Beijo e continuação de Boas Festas, com saúde.
Um belo e diferente conto de Natal.
Obrigado pela sua partilha.
Querida amiga Elvira,
FELIZ ANO NOVO
Confina-te mas não te feches, infeta os outros de esperança e promove o contágio da paz, da fraternidade e da justiça social.
Beijo.
Boa noite Elvira,
Um conto muito interessante, escrito com muita imaginação.
Aproveito para lhe desejar e a sua Família feliz Ano Novo com muita saúde.
Beijinhos,
Ailime
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