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15.12.20

LENDA DE NATAL - DE JÚLIO BRANDÃO I

 



 

Certo homem, já velho, viu chegar o Natal, e pôs-se a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos filhos, uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado...

 Estava só no mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de ingratidões e de pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem rancores no seu coração. Tinha saudades. Por esse lento caminho da vida, hoje ermo de afetos, algumas consolações tivera a sua alma. Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados, postos no horizonte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que tinham de levar os redemoinhos da morte.

À noite (era a nostálgica noite de Consoada) sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele mesmo foi fazer um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos muito fitos na labareda avermelhada.

Todos estavam, àquela hora, nos lares amoráveis. Ele alembrava-se do riso das crianças, desse amoroso e cândido florir de venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja árvore do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma fala amiga, sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos. E pensava que era como esses troncos velhos e partidos, por cima dos quais o enxurro espumava, e onde nunca mais nasceria flor, ou cantaria ave...

Fez um exame de consciência: fora bom, fora simples. A mulher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha fugira-lhe para a mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era uma santa, e o mundo era ruim... Mais tarde, já trôpego, dois filhos roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava! Fora numa noite como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando ele dormia, arrombaram-lhe a arca, e levaram-lhe a meia dúzia de peças que tinha guardadas no escaninho, para algum ano sáfaro, de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos, dizia consigo; os filhos lho levaram... Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que ele tanto amara! Depois começou de entrevecer; os braços não podiam; e onde o trabalho mingua, vai crescendo a miséria. Ficou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia uma cesta de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por lá acabara, certamente...

 Estava escorraçado como um cão, pobre como Job. Apesar disso, na consciência não se apagara a claridade que sempre lha iluminara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja transparência deixa ver na areia loira a sombra de um cardume prateado. Ele sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono — com essa leveza e essa graça dos que olhando para a vida inteira não têm nunca a desviar os olhos de uma torpeza ou de uma mentira.

Curvado sobre as brasas crepitantes, o velho lançou os olhos para o banco chamuscado, que lhe ficava em frente. E de repente ficou extático. O queixo tremia-lhe fortemente. Santo Deus! Que via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus, Jesus, eram elas! Que alegria a sua! O velho estremeceu, o coração bateu-lhe como quando era jovem, balbuciou:

 — Ó Maria, ó Luísa, vocês vieram?!

Elas sorriram-se mais docemente, sempre a fiar nas suas rocas. E o velho, com os olhos pregados nelas, sentia as pálpebras humedecidas de uma felicidade extra-humana.

— Ó Maria, ó Luísa!...

Assim correram alguns instantes celestes. Ele olhava-as embevecido. Elas resplandeciam, como envoltas num vago luar. Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não falavam, o velho calou-se também num êxtase.

Elas continuavam a sorrir, continuavam a fiar. O vento, fora, soprava rijo nos sobros, assobiava. A noite ia passando a uivar, feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho embelezado nas visões.

As duas já tinham espiado as rocas. A porta ouviram-se três pancadas.

Truz, truz, truz!

— Quem me procura?! — tartamudeou o velho, como despertando de um sonho imenso.

Truz, truz, truz!

 Arrastou-se trôpego, abriu a porta. As duas tinham desaparecido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a figura doutro velho de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.

— Sou eu, compadre, sou eu!



Nota:  Por ser um pouco longo dividi o texto em duas partes. 

7 comentários:

Manu disse...

Uma história emocionante de solidão!

Espero que tudo acabe com muita alegria.

Abraço Elvira

Tintinaine disse...

Gostei da primeira parte, venha a segunda!

Maria Dolores Garrido disse...

Fico também à espera.
Um beijinho
M.

Ailime disse...

Boa noite Elvira,
Um história que emociona pela solidão e abandono.
Um beijinho.
Ailime

Teresa Isabel Silva disse...

Nunca tinha ouvido falar deste conto... Obrigada pela partilha!

Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

teresadias disse...

É de uma tristeza tamanha a solidão dos velhos abandonados.
Vou continuar lendo.
Bjs.

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Que conto emocionante, triste, cheio de solidão, mas pleno de emoção.
Abraços fraternos!