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16.12.20

LENDA DE NATAL - DE JÚLIO BRANDÃO II


 — Será possível! Que felicidade!

 E abraçaram-se, num antigo e comovente abraço. O viandante pousou a sacola, sacudiu a neve do capote, e foi-se aquentar ao lume.

— Hás de vir gelado, Manuel!

Vinha, na verdade. Tinha andado muito, a noite estava má, nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido vir passar ali o Natal! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela paz religiosa e bíblica, a sua crua sorte. Os velhos sentaram-se um em frente do outro. Enquanto o caminheiro espalmava as mãos sobre o brasido, ia narrando a sua vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna. Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormentos, a saudade do seu velho amigo lhe aparecia...

 A vida tinha-lhe ensinado muitas coisas; mas sobretudo que a felicidade está dentro de nós, vive connosco, e que todo aquele que semeia o bem, há de colher o bem... O outro escutava-o silencioso, com a vista húmida.

— Acredita que toda a minha pena, compadre, era não poder abraçar-te!

— E eu julgava que tu, por tão longe, nunca mais te lembrarias...

— Pode lá esquecer quem é santo, compadre! E contou que na volta, mar alto, começou, em pleno dia, a escurecer o céu. A maruja adivinhara a tormenta. Amainaram as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revoltos, fulgentes de relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme despedaçado, na água brava. Tiveram fome e sede — e a tempestade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos lábios das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina de uma oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para ver ainda o seu velho companheiro sem arrimo.

— E Deus ouviu-me. Aqui estou.

O velho atiçou o braseiro, deitou mais lenha ao fogo. O viajante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando, para cima da masseira velha e carunchosa, as vitualhas que trazia, as ameixas, as passas, uma garrafa de vinho loiro.

 — Não me esqueci da ceia, compadre.

— Assim vejo, Manuel. Deus to pague!

E cearam, como tantos anos antes, quando na aldeia havia alegria e fartura. Foram conversando, pela noite dentro, com a alma abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante perguntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações pungentes: os filhos maus, a filha amada, a mulher morta!...

De novo o velho olhou para o banco da lareira, e manteve-se extático, com os olhos iluminados.

— Que tens, compadre?

— Olha, estão ali!

 — Ah!... — disse o outro, sem surpresa, olhando em torno.

 — Também vieram, Manuel, também vieram!...

De feito, o velho lá via de novo as duas, sorrindo-lhe angelicamente, cheias de graça. Uma trança de lírios luminosos toucava-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergissem, pálidas, de um grande sonho místico.

 — A Maria, a Luísa, tão lindas!... — balbuciou o velho.

O viandante respondeu simplesmente:

— Os que se amam nunca nos abandonam. Estão dentro de nós, vivem connosco. O velho nem comia, enlevado nas aparições suaves. Via os cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e esbelto; a mulher, como no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a boca airosa, onde jamais houvera o veneno da mentira.

 — Vê tu que de mais longe vieram elas fazer-te companhia; não fui eu só, compadre. A cara do viandante estava aureolada agora de uma irradiação magnética. Seguiu-se um diálogo de velhos que padeceram, que nobremente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem, num murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram o mar, lembram estrelas...

Belas e tristes como sepulcros, onde puseram flores, à lua cheia. É a lenda dos homens — sombras vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz...

— Agora, compadre, vamos descansar. Venho quebrado de fadiga. Dormiremos juntos.

 — Pois sim, eu não tenho outra enxerga.

As visões tinham fugido. E os dois adormeceram, noite alta, quando um galo cantava, como arauto da luz.

 

 

                                                                          ***********

 

 

Mas de madrugada, quando pelas frestas entrava um fulgor dourado, o velho perguntou:

 — Onde estás, compadre?

 Ninguém respondeu. Uma grande paz enchia a casa. O velho procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém! Apenas na enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo docemente a figura do compadre, como se fosse um brilho de nebulosas...

O velho ergueu-se, rezou de mãos postas. O dia de festa alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia toda a terra de ouro. Da horta emperlada de orvalho reluzente, o velho veio ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso e plácido...

 

 

Contos de Natal Portugueses – Luso Livros


14 comentários:

Pedro Coimbra disse...

É sempre um prazer ler Júlio Brandão.

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Acho que ao ler este conto ninguem consegue deter uma lagrima no canto do olho.

JR

Anete disse...

Deixo um abraço aqui, Elvira.
Um conto para ser refletido e extrair verdades para um caminhar cheio de vida...

Ailime disse...

Bom dia Elvira,
Um conto muito belo e que faz pensar.
Uma linda partilha neste tempo de Natal.
Beijinhos,
Ailime

Manu disse...

Comovente este conto de Natal.

Abraço Elvira

Beatriz Pin disse...

Querida Elvira, um conto moi enternecedor. A amizade, o amor, move montanhas. Os que se aman permanecen conosco. Non so un conto de nadal. Un conto de todo o ano. Visualizo a escea fronte ao lume. É o que de bo ten o inverno nos lugares frios da terra. Grazas pela visita. Eu non celebro nadal. Para quenes ten siñificado, desexo que o disfruten da mellor maneira. Saúde. Aperta.

Cidália Ferreira disse...

Não conheço este poeta ou escritor! Porém gostei muito do texto!! :)
**
Se, o outro lado for a distância que nos separa
*
Beijo e um excelente dia.

Isa Sá disse...

Muito bonito!

Manuel Veiga disse...

um bonito conto de Natal, Elvira
gostei muito

beijos

Edum@nes disse...

Não sei quantos anos poderei viver,
enquanto neste mundo e em Portugal
outras mais, ainda eu, pretendo ler
como gostei de ler essa lenda de Natal.

Um abraço e muita saúde. Tenha uma boa noite amiga Elvira.

teresadias disse...

Lindos, lindo!
Adorei o primeiro conto deste Natal.
Elvira, venham mais!
Beijo, fique bem.

Emília Pinto disse...

Querida Elvira, um belo conto, apesar de nostálgico. Sabemos que o natal nunca foi para todos e assim vai continuar. Há muitos idosos abandonados e muitas crianças com fome, infelizmente. Possamos nós e, queiramos nós fazer, pelo manos uma criança feliz neste dia; gostaria mais de dar uma alegria a um idoso solitário, mas, este ano, a pandemia impede-me. Até nisso, o Natal está a ser ingrato para os mais velhos, aqueles que sempre fizeram tudo para que a ceia desse dia fosse uma festa. Com a partida dos avós e dos pais, muitas destas tradições acabam e os que ainda estão cá, veem-se impedidos de fazer o que tanto gostam, receber todos em casa, por causa da pandemia. Já viste que tristeza, Elvira? Sabes que Júlio Brandão era da minha terra, V, N, de Famalicão? Tem um agrupamento de escolas com o seu nome. Amiga, muito obrigada pelo conto e, se puderes, que venham mais. Um beijinho e SAÚDE para todos
Emilia🙏🎄🌻🍃☃️

Melania macron disse...

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Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Um conto tecido pela emoção, pela luz da comoção, adorei!
Abraços fraternos!