A ÁRVORE DOS GROUS*
Quando ainda não era suficientemente crescido para usar calças, a minha mãe tinha sempre medo de que eu me afogasse no lago que ficava à beira de casa. Estava constantemente a dizer-me que não fosse brincar para lá, mas eu não fazia caso, porque nele havia peixes de cores deslumbrantes.
A última vez que fui para o lago era um dia triste de Inverno, demasiado frio para os peixes se mostrarem. Nunca saíram debaixo das pedras e o que eu arranjei foi uma grande constipação. A minha mãe ia, de certeza ficar zangada comigo e adivinhar logo como é que eu tinha molhado as luvas. Mas talvez ficasse feliz por me ver.
— Mãe, já cheguei — gritei eu.
Não houve resposta.
Costumava vir sempre à porta receber-me. Voltei a chamar, e por fim respondeu. A voz parecia vir de muito longe. Ouviu-me, mas não veio ter comigo. Deve estar doente, pensei. Encontrei-a na sala a fazer dobragens em papel. Limitou-se a menear a cabeça, mal olhando para mim. Mas havia à minha espera duas fatias do meu bolo preferido, o que me reconfortou um pouco.
— Porque estás a fazer grous* de papel? — perguntei eu.
— Porque quero realizar um grande desejo — respondeu, sem levantar os olhos.
— Vais dobrar mil pássaros para o teu desejo se realizar?
— Nem que seja dois mil… — estendeu os braços e passou-me a mão fria pelo rosto. — Tens a cara a arder!
Franziu o sobrolho e olhou para mim em silêncio. Baixei a cabeça e não me atrevi a falar. Ela sabia… Sempre que a minha mãe achava que eu estava constipado, dava-me um banho quente.
— Dez minutos, nem menos um segundo — disse ela.
E nem as costas me limpou. Ouvi os chinelos a afastarem-se ao longo do corredor. Depois fechou-se uma porta. Não regressou para me fazer companhia. É melhor pedir desculpa,disse eu, a pensar em mim. Mas antes que pudesse dizer que estava arrependido, a minha mãe pôs-me em pijama!
— Não tenho vontade de ir para a cama.
— Tens de ficar muito agasalhado e quente.
— Toda a tarde?
— Sim, toda a tarde.
— Vais ler-me histórias?
— Não há histórias, mas vou preparar-te um almoço quente.
Eu bem sabia o que aquilo queria dizer. Papas de arroz. Papas de arroz são só para quem está doente. E foi o que eu tive, com uma ameixa de conserva de vinagre e umas rodelas de cenoura. Comi tudo sozinho e bebi um chá quente, pela chávena grande do meu pai. Depois, meti-me na cama, e fiquei à espera, à espera que a minha mãe viesse com uma maçã e me lesse uma história. Mas a porta não se abriu.
— Mãe! — acabei por gritar.
Não respondeu. Após um longo momento, ouvi um ruído vindo do jardim. Talvez o velho jardineiro tivesse vindo podar mais uma vez as nossas árvores. Levantei-me e abri a janela. Lá fora, nevava. E a minha mãe cavava em redor de uma pequena árvore.
— O que estás a fazer? — gritei eu.
Ela parou e olhou para mim.
— Fecha imediatamente essa janela e volta para a cama!
Fechei logo a janela e fui para a cama. Hoje está mesmo zangada, pensei eu. Mas porque andará a cavar debaixo de neve? Terá ficado aborrecida comigo? Não sabia o que pensar. Começava a adormecer quando ela entrou. Trazia uma árvore num vaso azul. Era o pinheirinho que os meus pais tinham plantado quando nasci, para que eu vivesse muitos anos, tal como a árvore.
— O que estás a fazer com a minha árvore? — perguntei eu.
— Já vais ver — respondeu ela, ao colocar o vaso no chão. — Sabes que dia é hoje?
— Hum… Falta uma semana para a passagem de Ano.
— Exactamente — disse a sorrir!
Depois, foi à sala buscar os grous prateados e alguns apetrechos de costura. Por fim, sentou-se. Passou um fio por um dos pássaros e pendurou-o na árvore.
— Hoje portei-me o dia todo de uma forma um tanto esquisita — disse ela.
Eu ia começar a falar, mas interrompeu-me.
— Se prometeres ficar na cama, digo-te porquê.
— Prometo — disse eu.
— Como sabes, muito antes de vir para aqui, onde encontrei o teu pai, nasci e vivi num país muito distante.
Acenei que sim com a cabeça.
— Na Califórnia — respondi.
— Lá, hoje não é um dia como os outros. Se estivesses na Califórnia, verias, por todo o lado, árvores como esta, enfeitadas com luzes cintilantes e bolinhas de ouro e prata. E debaixo de cada árvore presentes que as pessoas oferecem aos amigos e àqueles que amam.
— Eu gostaria de ter um papagaio samurai — disse eu.
— Damos e recebemos, filho. É um dia de amor e de paz. Os desconhecidos sorriem uns para os outros. Os inimigos fazem uma trégua. Precisamos de mais dias como este!
E pendurou na árvore o último pássaro.
— Que lindo! — gritei eu.
— Ainda não é tudo — disse.
E foi à cozinha buscar velas, que prendeu aos ramos.
— Vais queimar a minha árvore? — perguntei eu.
A minha mãe riu-se.
— Só as velas, e apenas por um instante. Amanhã voltamos a plantar a tua árvore.
— Quero acendê-las! Posso, mãe? Posso?
— Sim, mas despacha-te.
A minha mãe deixou-me riscar os fósforos.
E quando acabámos de acender as velas, ela ficou em silêncio.
Estava a recordar. Via uma outra árvore, num país longínquo onde tinha sido criança como eu. Pegou em mim e sentou-me nos joelhos. Os grous oscilavam lentamente e brilhavam à luz das velas. Não pode haver uma árvore mais linda do que a minha, pensei. Nem mesmo lá, onde a minha mãe nasceu.
— Que presente gostavas de receber? — perguntei.
— Serenidade e harmonia — respondeu.
— Não! Para eu te dar.
— Oh, uma coisa muito especial… talvez uma promessa.
— Já prometi que ficava na cama.
— Outra, então.
— Está bem.
— Dá-me a tua palavra que nunca mais voltas ao lago.
Prometi.
Dormia a sono solto quando o meu pai chegou!
Na manhã do dia seguinte, saltei da cama porque um feroz guerreiro me olhava fixamente. Mas não passava de um papagaio de papel. Um papagaio! O que eu sempre desejara!
E depois, por detrás, vi a árvore, a minha árvore. De repente, lembrei-me da tarde do dia anterior e daquilo que a minha mãe me tinha contado.
— Obrigado, mãe! Obrigado, pai! — e corri lá para fora com a minha prenda.
Estava tudo coberto de neve.
— Vais ter dias melhores — disse a minha mãe. — Dias com vento e sem neve.
— Há neve que chegue para fazer um boneco! — disse o meu pai. — Anda, vamos fazer um.
E o nosso boneco de neve daquele dia derreteu.
Já se passaram muitos anos. Mas nunca esquecerei aquele dia de harmonia e de serenidade. O meu primeiro Natal.
Allen Say
L’arbre aux oiseaux
Paris, l’école des loisirs, 1994
(Tradução e adaptação)
* No Japão, a arte tradicional de dobrar papel chama-se origami (do japonês: oru, “dobrar”, e kami, “papel”). Criam-se representações de determinados seres ou objectos apenas com as dobras geométricas de uma folha, sem a cortar ou colar, e o pássaro mais célebre dá pelo nome de grou. Reza a lenda que, quando alguém consegue fazer 1000 grous de papel, o desejo de uma vida longa e feliz é sempre realizado!
7 comentários:
Um simples papagaio de papel fez tanta alegria...Adorei o conto! Lindo domingo! bjs, chica
Tenho que começar a fazer grous também! Não deve ser assim tão difícil!
Uma história muito bonita e cheia de ternura. E também a delicadeza do origami.
Um beijinho e um domingo muito feliz.
M.
olamariana.blogspot.com
Uma história muito comovente e que gostei muito de ler.
Há dias que ficam para sempre marcados na nossa memória.
Abraço e saúde Elvira
Desejo-lhe a si minha amiga e à sua família umas Boas Festas.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Um bonito conto.
Uma bonita história. Amei!
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Não há frio que gele um coração...
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Beijos. Continuação de Boas Festas, com muita saúde.
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