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27.12.20

CONTOS DE NATAL - A ÁRVORE DOS GROUS







A ÁRVORE DOS GROUS*


Quando ainda não era suficientemente crescido para usar calças, a minha mãe tinha sempre medo de que eu me afogasse no lago que ficava à beira de casa. Estava constantemente a dizer-me que não fosse brincar para lá, mas eu não fazia caso, porque nele havia peixes de cores deslumbrantes.

A última vez que fui para o lago era um dia triste de Inverno, demasiado frio para os peixes se mostrarem. Nunca saíram debaixo das pedras e o que eu arranjei foi uma grande constipação. A minha mãe ia, de certeza ficar zangada comigo e adivinhar logo como é que eu tinha molhado as luvas. Mas talvez ficasse feliz por me ver.

— Mãe, já cheguei — gritei eu.

Não houve resposta.

Costumava vir sempre à porta receber-me. Voltei a chamar, e por fim respondeu. A voz parecia vir de muito longe. Ouviu-me, mas não veio ter comigo. Deve estar doente, pensei. Encontrei-a na sala a fazer dobragens em papel. Limitou-se a menear a cabeça, mal olhando para mim. Mas havia à minha espera duas fatias do meu bolo preferido, o que me reconfortou um pouco.

— Porque estás a fazer grous* de papel? — perguntei eu.

— Porque quero realizar um grande desejo — respondeu, sem levantar os olhos.

— Vais dobrar mil pássaros para o teu desejo se realizar?

— Nem que seja dois mil… — estendeu os braços e passou-me a mão fria pelo rosto. — Tens a cara a arder!

Franziu o sobrolho e olhou para mim em silêncio. Baixei a cabeça e não me atrevi a falar. Ela sabia… Sempre que a minha mãe achava que eu estava constipado, dava-me um banho quente.

— Dez minutos, nem menos um segundo — disse ela.

E nem as costas me limpou. Ouvi os chinelos a afastarem-se ao longo do corredor. Depois fechou-se uma porta. Não regressou para me fazer companhia. É melhor pedir desculpa,disse eu, a pensar em mim. Mas antes que pudesse dizer que estava arrependido, a minha mãe pôs-me em pijama!

— Não tenho vontade de ir para a cama.

— Tens de ficar muito agasalhado e quente.

— Toda a tarde?

— Sim, toda a tarde.

— Vais ler-me histórias?

— Não há histórias, mas vou preparar-te um almoço quente.

Eu bem sabia o que aquilo queria dizer. Papas de arroz. Papas de arroz são só para quem está doente. E foi o que eu tive, com uma ameixa de conserva de vinagre e umas rodelas de cenoura. Comi tudo sozinho e bebi um chá quente, pela chávena grande do meu pai. Depois, meti-me na cama, e fiquei à espera, à espera que a minha mãe viesse com uma maçã e me lesse uma história. Mas a porta não se abriu.

— Mãe! — acabei por gritar.

Não respondeu. Após um longo momento, ouvi um ruído vindo do jardim. Talvez o velho jardineiro tivesse vindo podar mais uma vez as nossas árvores. Levantei-me e abri a janela. Lá fora, nevava. E a minha mãe cavava em redor de uma pequena árvore.

— O que estás a fazer? — gritei eu.

Ela parou e olhou para mim.

— Fecha imediatamente essa janela e volta para a cama!

Fechei logo a janela e fui para a cama. Hoje está mesmo zangada, pensei eu. Mas porque andará a cavar debaixo de neve? Terá ficado aborrecida comigo? Não sabia o que pensar. Começava a adormecer quando ela entrou. Trazia uma árvore num vaso azul. Era o pinheirinho que os meus pais tinham plantado quando nasci, para que eu vivesse muitos anos, tal como a árvore.

— O que estás a fazer com a minha árvore? — perguntei eu.

— Já vais ver — respondeu ela, ao colocar o vaso no chão. — Sabes que dia é hoje?

— Hum… Falta uma semana para a passagem de Ano.

— Exactamente — disse a sorrir!

Depois, foi à sala buscar os grous prateados e alguns apetrechos de costura. Por fim, sentou-se. Passou um fio por um dos pássaros e pendurou-o na árvore.

— Hoje portei-me o dia todo de uma forma um tanto esquisita — disse ela.

Eu ia começar a falar, mas interrompeu-me.

— Se prometeres ficar na cama, digo-te porquê.

— Prometo — disse eu.

— Como sabes, muito antes de vir para aqui, onde encontrei o teu pai, nasci e vivi num país muito distante.

Acenei que sim com a cabeça.

— Na Califórnia — respondi.

— Lá, hoje não é um dia como os outros. Se estivesses na Califórnia, verias, por todo o lado, árvores como esta, enfeitadas com luzes cintilantes e bolinhas de ouro e prata. E debaixo de cada árvore presentes que as pessoas oferecem aos amigos e àqueles que amam.

— Eu gostaria de ter um papagaio samurai — disse eu.

— Damos e recebemos, filho. É um dia de amor e de paz. Os desconhecidos sorriem uns para os outros. Os inimigos fazem uma trégua. Precisamos de mais dias como este!

E pendurou na árvore o último pássaro.

— Que lindo! — gritei eu.

— Ainda não é tudo — disse.

E foi à cozinha buscar velas, que prendeu aos ramos.

— Vais queimar a minha árvore? — perguntei eu.

A minha mãe riu-se.

— Só as velas, e apenas por um instante. Amanhã voltamos a plantar a tua árvore.

— Quero acendê-las! Posso, mãe? Posso?

— Sim, mas despacha-te.

A minha mãe deixou-me riscar os fósforos.

E quando acabámos de acender as velas, ela ficou em silêncio.

Estava a recordar. Via uma outra árvore, num país longínquo onde tinha sido criança como eu. Pegou em mim e sentou-me nos joelhos. Os grous oscilavam lentamente e brilhavam à luz das velas. Não pode haver uma árvore mais linda do que a minha, pensei. Nem mesmo lá, onde a minha mãe nasceu.

— Que presente gostavas de receber? — perguntei.

— Serenidade e harmonia — respondeu.

— Não! Para eu te dar.

— Oh, uma coisa muito especial… talvez uma promessa.

— Já prometi que ficava na cama.

— Outra, então.

— Está bem.

— Dá-me a tua palavra que nunca mais voltas ao lago.

Prometi.

Dormia a sono solto quando o meu pai chegou!

Na manhã do dia seguinte, saltei da cama porque um feroz guerreiro me olhava fixamente. Mas não passava de um papagaio de papel. Um papagaio! O que eu sempre desejara!

E depois, por detrás, vi a árvore, a minha árvore. De repente, lembrei-me da tarde do dia anterior e daquilo que a minha mãe me tinha contado.

— Obrigado, mãe! Obrigado, pai! — e corri lá para fora com a minha prenda.

Estava tudo coberto de neve.

— Vais ter dias melhores — disse a minha mãe. — Dias com vento e sem neve.

— Há neve que chegue para fazer um boneco! — disse o meu pai. — Anda, vamos fazer um.

E o nosso boneco de neve daquele dia derreteu.

Já se passaram muitos anos. Mas nunca esquecerei aquele dia de harmonia e de serenidade. O meu primeiro Natal.

 

Allen Say
L’arbre aux oiseaux
Paris, l’école des loisirs, 1994
(Tradução e adaptação)

* No Japão, a arte tradicional de dobrar papel chama-se origami (do japonês: oru, “dobrar”, e kami, “papel”). Criam-se representações de determinados seres ou objectos apenas com as dobras geométricas de uma folha, sem a cortar ou colar, e o pássaro mais célebre dá pelo nome de grou. Reza a lenda que, quando alguém consegue fazer 1000 grous de papel, o desejo de uma vida longa e feliz é sempre realizado!

7 comentários:

chica disse...

Um simples papagaio de papel fez tanta alegria...Adorei o conto! Lindo domingo! bjs, chica

Tintinaine disse...

Tenho que começar a fazer grous também! Não deve ser assim tão difícil!

Maria Dolores Garrido disse...

Uma história muito bonita e cheia de ternura. E também a delicadeza do origami.
Um beijinho e um domingo muito feliz.
M.
olamariana.blogspot.com


Manu disse...

Uma história muito comovente e que gostei muito de ler.
Há dias que ficam para sempre marcados na nossa memória.

Abraço e saúde Elvira

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Desejo-lhe a si minha amiga e à sua família umas Boas Festas.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados

Isa Sá disse...

Um bonito conto.

Cidália Ferreira disse...

Uma bonita história. Amei!
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Não há frio que gele um coração...
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Beijos. Continuação de Boas Festas, com muita saúde.