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5.10.20

CILADAS DA VIDA - PARTE XLI

                                        


Após alguns minutos de indecisão, Olga entrou no gabinete do empresário e encontrou-o de costas junto à janela. Conhecia-o bem demais, para não saber que era a atitude que tomava quando alguma coisa o incomodava. Não se atreveu a perguntar sobre a visita do advogado, limitou-se a recolher o tabuleiro com as chávenas vazias e a perguntar:

- Precisas de alguma coisa?

Sobressaltado voltou-se. Perdido nos seus pensamentos não dera pela entrada da sua assistente.

- Não. Pousa isso e senta-te. Preciso falar contigo, - disse encaminhando-se para a sua secretária e sentando-se.

Olga obedeceu e aguardou. O patrão parecia-lhe tão transtornado, que apesar de toda a confiança que os unia, não se atreveu a fazer-lhe perguntas. Depois de um curto silêncio ele perguntou:

- Tu tens mais dez anos do que eu, verdade?

- Quase onze, sabes bem disso, - respondeu Olga sem descortinar a razão de semelhante pergunta.

- E aos dez, onze anos,  as crianças já guardam recordações que ficam para a vida. Sempre moraste naquela casa?

Cada vez mais intrigada, ela respondeu;

-Nasci lá. Meu pai recebeu-a do meu avô, como prenda de casamento.

- Tu lembras-te da minha mãe?

- Sim.

- Como era ela? Não me refiro ao físico, mas como pessoa.

- Porque queres saber isso agora, se nunca permitiste a ninguém que te falasse dela? O que aconteceu? Quem era aquele advogado, e porque é que quando eu entrei vocês pareciam dois galos de combate antes de uma luta?

- Mais tarde eu te conto, agora por favor, responde à minha pergunta.

- Sim lembro-me bem da tua mãe. Era uma mulher de sorriso doce com uns olhos iguais aos teus, mas tão tristes, que pareciam estar sempre cheios de lágrimas, embora na verdade nunca me lembre de a ver chorar. Devia ser por causa das brigas que tinha com o teu pai.

- O quê? Ele maltratava-a? – perguntou levantando-se e encaminhando-se de novo para a janela.

- Queres saber se lhe batia? Penso que não, pelo menos nem eu nem a mãe, demos alguma vez por ela ter marcas físicas. Nas sabes bem que muitas vezes nem são os maus tratos físicos os que causam mais danos, A minha mãe, dizia que a pobre vivia enclausurada por causa dos ciúmes doentios do marido. Ela só saía de casa acompanhada por ele, e não podia falar com ninguém. Mesmo connosco só o fazia, quando ele estava na oficina. Hoje quando penso nisso, acho que ela tinha chegado a um ponto que só tinha dois caminhos à sua frente. Ou fugia para onde ele não a encontrasse, ou acabava com a vida. E nós nunca acreditámos que ela fugiu com um amante. Isso foi invenção do teu pai. Um dia no fim da manhã, quando cheguei da escola, encontrei a mãe a dar-te o biberão. Disse-me que a vizinha lhe pediu se ficava contigo enquanto ia ao posto médico onde tinha uma consulta. Nunca voltou. Mais tarde a mãe disse que desconfiara de alguma coisa, porque se despediu de ti a chorar.

- Meu Deus, e ele sempre me fez acreditar que ela era uma galdéria, capaz de nos abandonar para correr atrás de um dos seus amantes. E mesmo na hora da morte, quando me pediu perdão por não ter sido um bom pai, me disse que a culpa de ele ter sido assim fora dela, que toda a vida a amara e que depois que ela o abandonara se sentira morto por dentro e talvez por isso não tivesse sabido ser bom pai.

- Talvez ele acreditasse nisso. A minha mãe sempre dizia que aquilo não eram ciúmes, era doença.

-Mas vocês cuidavam da casa. Eu sempre pensei que eram amigas dele.

- O teu pai não era homem que tivesse amizade com ninguém. E nós cuidávamos da casa, das roupas, da comida, por ti. Diz-me quantas vezes te lembras do teu pai cozinhar para vós? Tu não terás memória disso, mas até quase aos quatro anos comias e dormias na nossa casa, como se fosses meu irmão. E durante esses quatro anos ele nunca bateu à nossa porta para perguntar como estavas.  Um dia, sem qualquer explicação chegou lá, pegou-te num braço, levou-te para casa e nunca mais te deixou ficar connosco passando a levar-te com ele para a oficina. Mas porque nós víamos a pouca importância que ele te ligava, é que lá íamos fazer a comida e limpar a casa. Era por ti, não por ele.

- Obrigado Olga.  Vou sair. Amanhã ou depois conto-te tudo. Tudo isto é muito doloroso para mim.  Agora preciso arrumar ideias, respirar ar puro.

 

18 comentários:

Isa Sá disse...

A passar por cá para acompanhar a história e desejar um ótimo feriado.

Isabel Sá  
Brilhos da Moda

Maria João Brito de Sousa disse...

É bem verdade que nem só as pancadas físicas maltratam e destroem...

Forte abraço, Elvira.

chica disse...

Tantas dúvidas na cabeça ele tem ...Tanto a elucidar. Lindo capítulo! Ótima semana,Elvira! bjs,chica

Pedro Coimbra disse...

Memórias recalcadas de um pai ausente?
Boa semana

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Mais um belo capitulo.
Um abraço e boa semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados

Cidália Ferreira disse...

Fantástico episodio, porém muitas duvidas! :)
-
O silêncio que deslumbra pensamentos
-
Beijos e uma excelente semana!

Janita disse...

E assim, deste modo magistral, vemo-nos passar de uma história, para outra ainda mais apelativa e interessante, como duas histórias dentro de uma só.

Grande sabedoria de vida tem, quem assim sabe descrever situações de gente sofrida e marcada pela dor.

No fundo, no fundo, cada pessoa tem a sua história de vida, umas mais magoadas do que outras, mas pouca gente haverá, que as saiba assim contar. Sobretudo, uma pessoa que sempre teve uma vida conjugal harmoniosa e feliz, como é o caso da autora dos contos.

Parabéns, Elvira. Isto, é a vida tal como ela é.

Abraço e boa semana.

Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Excelente episódio!
Tudo começa a fazer sentido para o João.
Beijinhos e boa semana.
Ailime

Emília Pinto disse...

Concordo com tudo o que a Janita escreveu, Elvira. Não me vou repetir! Quero só dizer que estou a adorar esta parte da história; ganhou um irmão e " fez as pazes " com a mãe; revoltou-se com o pai, mas esta revolta é justa. Um beijinho, Amiga e SAÚDE para todos
Emilia

Tintinaine disse...

Este foi um capítulo e tanto! E com a memória da mãe reabilitada até ele sairá beneficiado com isso. A escola da vida ensina grandes lições.

noname disse...

Coitado, teve um dia de cão.

Boa tarde, Elvira
Bom feriado

Beatriz Pin disse...

Olà Elvira, gostei ler este episodio. Mesmo o li en voz outa para sentir o acento portugues, alá onde son capaz. Agradezo sua visita. Eu so como os cogumelos que conheço bem. Non me aventuro! Ja sei que se prestan a confudions. Boa semana. Abraço

Edum@nes disse...

Nem tudo o que luz é ouro. Por isso, não se deve julgar ninguém pelas suas aparencias. porque elas podem enganar;

Tenha uma boa noite amiga Elvira. Um abraço.

lis disse...

Acredito que agora poderá até ser mais feliz já que está aos poucos se familiarizando com a situação vivida pelos pais.
Seguindo para mais novidades nos proximos capítulos.
abraço, Elvira

Ruthia disse...

Apanho a história a meio, mas numa passagem deveras interessante.
Quando tiver tempo, volto para ler o início.
Beijinhos e uma boa semana

teresa dias disse...

Evira, isto é o dois em um...
Continuo encantada com as voltas da trama.
Beijo

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Capítulo cheio de revelações, emoções e muitas dúvidas na cabeça dele! Uma reviravolta de sentimentos e impressões acerca da mãe e do pai.
Abraços fraternos!

João Santana Pinto disse...

Absolutamente genal, mais uma reviravolta, mais uma alteração de realidade e assim se escreve uma grande grande história