Seguidores

28.10.20

CILADAS DA VIDA - PARTE LI

 



No seu escritório, João serviu-se de um uísque e com o copo na mão sentou-se, abriu a gaveta e retirou a foto da sua mãe com ele ao colo, e o envelope ainda fechado. Durante alguns segundos rodou-o entre os dedos. Depois decidido pegou num estilete, abriu-o  e leu.

 

“Meu querido e nunca esquecido filho.

Quando leres esta missiva, eu já terei partido para a minha última viagem.

Não sei o que tu saberás sobre mim, nem o que teu pai te terá dito, mas acredita que te amo muito, sempre te amei e que foi com o coração sangrando que te deixei, todavia não tinha forças para continuar a viver como vivia. Receava endoidecer, e não podia levar-te comigo, pois não tinha meios de poder satisfazer as tuas necessidades mais básicas. Não tinha dinheiro, nem emprego, nem família a quem recorrer pois talvez não saibas, mas nunca conheci meus pais, fui criada num orfanato. Quando três anos depois a minha vida estabilizou, procurei o teu pai, a fim de um entendimento que me permitisse partilhar a tua guarda, porém ele disse-me que ou voltava para ele ou nunca mais te via, e se insistisse na guarda partilhada, antes disso, ele te mandaria para um internato onde nunca te iria descobrir. Conhecia o teu pai, sei que era capaz de cumprir essa ameaça, e para que não o fizesse eu prometi-lhe que nunca mais te procuraria.  Todavia embora longe, através de uma amiga dos meus tempos do orfanato, fui sabendo notícias de ti e recebendo fotografias que me iam mostrando como crescias, e ias aos poucos caminhando para a idade adulta.

Não vou falar-te das minhas razões para fugir, não quero falar mal do teu pai, ele já terá prestado contas à justiça divina.

Talvez eu devesse ter-te procurado quando ele morreu, mas nessa altura tu já eras um homem de sucesso, não irias decerto acreditar no meu amor, pensarias que te procurava por saber que estavas bem na vida; e eu não ia conseguir viver com a tua rejeição.

Quero que saibas, que o ter-te abandonado, foi a maior dor que sofri em toda a vida, foi como se me amputasse a mim mesma.

Um dia conheci um bom homem, e com ele vivi cinco anos, que só não foram de felicidade absoluta, porque tu não estavas lá. Com ele tive o David, mas é bem verdade, que um filho não faz esquecer o outro.

Se estás a ler esta carta, significa que já conheceste o teu irmão. Gostaria que se dessem bem, ele também foi uma criança sofrida, não só porque o seu pai morreu quando tinha apenas dois anos, mas porque a mãe, sempre foi uma mulher triste, por carregar no peito, uma mágoa maior que ela.

 Não te peço perdão, peço-te que compreendas a mulher que te deu o ser e que acredites que a maior dor que me acompanhará até ao último suspiro é sem dúvida o não poder abraçar-te uma vez que seja.

Termino desejando que sejas muito feliz.

Olinda Braizinha.”

 

Leu e releu a carta várias vezes, as letras dançando nos olhos rasos de água. Sem vergonha, João chorou amargamente. Chorou a sua dor de criança solitária, criada sem amor, chorou a dor da sua mãe, separada do filho que amava, chorou pela maldade do pai, que lhe fez acreditar que a mãe era pouco menos que uma prostituta, sem sentimentos. Levantou-se foi ao bar e trouxe a garrafa de uísque para cima da mesa. Precisava beber. Beber até anestesiar o cérebro de modo que esquecesse tudo o que o seu pai fizera com a sua vida,  a da mulher e do filho. Porém quando ia levar o copo aos lábios, lembrou-se de Teresa e das crianças que ela esperava. Sacudiu a cabeça, para afastar os maus pensamentos, e foi guardar a garrafa no sítio. Depois lentamente as costas fletidas como quem carrega um pesado fardo, saiu e foi para o seu quarto onde se jogou em cima da cama sem sequer se despir.

 

 

22 comentários:

Emília Pinto disse...

Agora, sim, vai conseguir '" fazer as pazes" com o passado, apesar do sofrimento que irá sentir por nunca ter tentado procurar a mãe. Acho que isso vai pesar-lhe . Mas tem o irmão e tem a Teresa e irá recuperar a paz interior. Beijinhos, Elvira! Fica bem, com SAÚDE para todos.
Emília

Pedro Coimbra disse...

Ele carrega um pesadíssimo fardo.
E isso nunca é bom.
Abraço

Isa Sá disse...

A passar por cá para continuar a acompanhar a história!

Isabel Sá  
Brilhos da Moda

Tintinaine disse...

Pelo menos, dessa ele já está livre. Agora as outras preocupações tomarão conta do seu tempo e o assunto ficará arquivado no escaninho das memórias, de onde só sairá em momentos raros e sem provocar qualquer dor.

chica disse...

Sentimentos fortes da mãe ao escrever tal carta e dele ao só agora ler... Muito lindo capítulo! beijos, chica

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
Um capitulo esperado , é certo que dos mais tristes , mas que infelizmente faz parte da vida e do destino de cada um ao qual não podemos fugir.

JR

Ailime disse...

Bom dia Elvira,
Um momento muito difícil para João ao ler a carta de sua mãe.
Gostei muito da intensidade que colocou em cada palavra para descrever as emoções sentidas por João.
Beijinhos e ótimo dia.
Ailime

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Estou a gostar e continuo a acompanhar.

Janita disse...

Não há dúvida alguma de que a Elvira sabe tocar as cordas sensíveis do coração de quem é mãe.... bem como de quantos a lêem.

Parabéns!

Um abraço emocionado.

noname disse...

A vida na maior parte do tempo é bruxa má, porém vão aparecendo uns intervalitos onde aparece a fada sininho :-)


Bom dia, Elvira
Muita saúde e uma beijoca virtual

Maria João Brito de Sousa disse...

Não vai ser fácil, para o João, gerir em simultâneo tantas e tão fortes emoções...

Forte abraço, Elvira!

Cidália Ferreira disse...

Ui... Mas que fado- Esperamos agora que haja "paz"
--
Lembraste do meu primeiro sorriso?
-
Beijo, e um excelente dia...

Fá menor disse...

Emocionante até às lágrimas. Parabéns, Elvira, por tão grande inspiração.

Beijinhos.

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Elvira

este conto está mesmo muito bem escrito, sempre com novidades e sempre em sintonia.
gosto deste enredo.
beijinhos
:)

Edum@nes disse...

Até que enfim João resolveu abrir o envelope e ler a carta de sua mãe. Mãe é sempre mãe. Mesmo que tivesse sido prostituta, não deixou de ser mãe!

Com saúde, tenha uma boa tarde amiga Elvira. Um abraço.

lis disse...

Certo que a melhor forma de diminuir a dor não seria embriagar-se e ele pensou na Teresa isso prova o quão importante ela é ,nesse momento.
E a carta da mãe vai ajudar a seguir em frente .
Gostei Elvira _ meu abraço e fica bem ,com saúde e inspiração.

Teresa Isabel Silva disse...

Espero que seja desta que as coisas se resolvam...


Bjxxx
Ontem é só Memória | Facebook | Instagram | Youtube

teresa dias disse...

Emília, mas que grande grande capítulo!
Me emocionei de verdade.
Beijo.

Rosemildo Sales Furtado disse...

Quem sabe após a leitura da carta da mãe, acabe com o mau juízo que fazia das mulheres, e se decida quanto ao amor que sente por Teresa. Aguardemos.

Abraços,

Furtado

aluap disse...

A mim, confesso, também me deixou os olhos cheios d´água.

Bom fim-de-semana.

João Santana Pinto disse...

Perdoar o passado para ser feliz no presente e desta vez, com razões para numa acrescentar, não um mas dois familiares, o irmão numa idade não assim tão distante da sua e a memória da mãe, com todo o valor que lhe acresce...

Bonito, emotivo história extraordinária

Lúcia Silva Poetisa do Sertão disse...

Meu Deus quanto sofrimentos a mãe e ele passaram, devido o pai mau caráter e sem um mínimo de sentimentos e respeito pelo outro.
Abraços fraternos!