Aquele 25 de Dezembro era um dia invulgarmente sossegado nas urgências.
Sossegado, isto é, exceto no caso dos enfermeiros, especados em torno do posto
de enfermagem, resmungando por terem de trabalhar no Dia de Natal.
Naquele dia eu era a enfermeira de triagem e tinha acabado de sair para a
sala de espera para fazer umas limpezas. Como de momento não se viam doentes à
espera, voltei ao posto de enfermagem para tomar uma chávena de cidra quente do
jarro que alguém tinha levado para beber no Natal. Nessa altura, um funcionário
das admissões regressou ali e disse-me que tinha cinco doentes à espera de
serem avaliados.
Eu lamentei-me:
— Cinco? Como é que fiquei com cinco? Ainda agora estive lá fora e não
havia ninguém na sala de espera.
— Bom, há cinco pessoas inscritas.
Portanto, eu saí dali e chamei o primeiro nome. Cinco corpos
vislumbravam-se no meu balcão de triagem, uma mulher pequenina e pálida e
quatro criancinhas com roupas um tanto amarrotadas.
— Estão todas doentes? — perguntei com algumas suspeitas.
— Sim — disse ela em voz débil e baixou a cabeça.
— Muito bem — respondi, sem convicção. — Quem é a primeira?
Uma a uma elas sentaram-se, e eu fiz as habituais perguntas preliminares.
Quando chegou ao momento de descrever os problemas que as levavam ali, as
coisas tornaram-se um tanto vagas.
Duas das crianças tinham dores de cabeça, mas essas dores de cabeça não eram
acompanhadas da linguagem corporal habitual, como segurar a cabeça ou tentar
mantê-la imóvel ou semicerrar os olhos ou fazer caretas. Outras duas tinham
dores de ouvidos, mas apenas uma conseguia dizer-me qual dos ouvidos estava
afetado. A mãe queixava-se de tosse, mas parecia esforçar-se por produzi-la.
Algo estava errado naquele cenário. A política do nosso hospital, contudo,
não era a de recusar pacientes, portanto nós iríamos vê-los. Quando expliquei à
mãe que poderia demorar algum tempo até que um médico pudesse vê-la, mesmo
estando a sala de espera vazia, que as ambulâncias tinham trazido vários
doentes em estado crítico para as traseiras do hospital, ela respondeu:
— Levem o tempo que for preciso; aqui está quentinho.
Depois voltou-se e, com um sorriso,
conduziu a sua prole para a sala de espera.
Num pressentimento (chamem-lhe instinto de enfermeira) espreitei a ficha
depois do funcionário das admissões ter acabado a inscrição da família. Morada
não havia — eram sem-abrigo. A sala de espera estava quente.
Espreitei a família amontoada à volta da árvore de Natal. A mais pequenita
estava a apontar para a televisão e a dizer qualquer coisa à mãe. A mais velha
olhava para o seu reflexo num enfeite da árvore de Natal.
Regressei ao posto de enfermagem e referi que tínhamos uma família de
sem-abrigos na sala de espera — uma mãe e quatro crianças, entre os quatro e os
dez anos de idade. Os enfermeiros, a resmungar por causa do trabalho no Natal,
passaram a preocupar-se com uma família que apenas tentava aquecer-se no Natal.
A equipa passou à ação, tal como quando temos uma emergência médica. Mas esta
era uma emergência de Natal.
No dia de Natal todos nós tínhamos a oferta de uma refeição grátis na
cafetaria do hospital, portanto pedimos essa refeição e preparámos um banquete
para os nossos convidados de Natal.
Precisávamos de presentes. Juntámos laranjas e maçãs num cesto que um dos
nossos fornecedores tinha trazido para o departamento para o Natal. Fizemos
pequenos pacotes para presente com autocolantes que fomos buscar ao
departamento de radiologia, doces que um dos médicos tinha trazido para as
enfermeiras, lápis de cor que o hospital tinha de um recente concurso de
pintura, botões em forma de ursinhos que o hospital tinha dado aos enfermeiros
na formação anual, e ursinhos felpudos que os enfermeiros prendiam nos seus
estetoscópios. Encontrámos também uma caneca, uma embalagem de cacau em pó e
mais uma miscelânea de coisas. Tirámos laços e papel de embrulho e sininhos das
decorações do departamento para as quais todos tínhamos contribuído.
Tão a sério como quando tentámos ir ao encontro das necessidades físicas
dos doentes que vieram até nós naquele dia, a nossa equipa trabalhou para
suprir as necessidades e superar as expectativas de uma família que apenas
queria estar quente no dia de Natal.
Fizemos turnos para podermos juntar-nos à festa de Natal na sala de espera.
Cada enfermeiro ou enfermeira fazia a sua pausa para almoço com a família, mas
escolheram passar o seu tempo de “folga” com estas pessoas cujas risadas e
tagarelice deliciosas se tornavam bem contagiantes. Quando chegou a minha vez,
sentei-me com elas na pequena mesa de banquete que tínhamos preparado na sala
de espera. Falámos durante um pedaço acerca de sonhos. As quatro crianças começaram
a contar-me o que queriam ser quando crescessem. A de seis anos deu início à
conversa:
— Eu quero ser enfermeira e ajudar as pessoas — afirmou ela.
Depois de as quatro crianças terem partilhado os seus sonhos, olhei para a
mãe.
Ela sorriu e disse:
— Eu só quero que a minha família esteja em segurança, quente e satisfeita
— assim como estão agora.
A “festa” durou a maior parte do turno, até conseguirmos encontrar um
abrigo que daria guarida à família no Dia de Natal. A mãe tinha pedido que as
suas fichas fossem retiradas, para que estes doentes não fossem vistos nesse
dia no serviço de urgências. Mas foram tratados.
À medida que caminhavam em direção à porta para se ir embora, a de quatro
anos veio para trás a correr, deu-me um abraço e suspirou:
— Obrigada por terem sido os nossos anjos hoje.
Quando correu de novo para ter com a família, todas me disseram adeus mais
uma vez antes que a porta se fechasse. Dei meia volta, devagar, para voltar ao
trabalho, um pouco envergonhada pelas lágrimas que tinha nos olhos. Uma colega
nossa tinha com ela uma caixa de lenços que foi passando a cada enfermeira que
estava a trabalhar.
Num dia de Natal que nunca mais iríamos esquecer.
Victoria Schlintz
12 comentários:
Triste ,mas lindo! Belo e comovente final! Bjs,chica
Uma história inquietante....
Isabel Sá
Brilhos da Moda
Gostei deste conto.
Um abraço e bom fim-de-semana.
Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
Livros-Autografados
Nos tornarmos melhores pessoas faz parte do Natal.
Abraço.
Bom fim de semana.
Es, Elvira, cuando todos desearían más días de Navidad.
Mais um brilhante conto de Natal! Obrigada:)
-
--> Não desapareces do meu sentimento
.
--> Invenções
Linke do blogue dos netos. https://imagensquedispensampalavras.blogspot.com/
Beijo, e um excelente fim de semana!
Excelente... Bj
Se todas as pessoas fossem tratadas como foi essa mãe e suas filhas, sem abrigo, Que se dirigiram ao hospital, onde foram acolhidas e não escorraçadas pelos medicos e enfermeiros, na noite de Natal. Muita gente devia ler esse conto e seguir o exemplo…
Tenha um bom fim de semana amiga Elvira. Um abraço.
Vim aqui fazer uma visita e parei logo nesse conto que me deixou bem emocionada, até porque minha filha mais velha é enfermeira e muito envolvida emocionalmente com os pacientes e pessoas em situação de sofrimento, de um modo geral... ela, inclusive, vai estar de plantão na noite de Natal no hospital do Cérebro, onde trabalha.
Minha filha me conta várias situações, e me disse que muitos pacientes fica mais calmos quando ela segura nas mãos deles... a prática da enfermagem aqui no Brasil é de pouco envolvimento com os pacientes, dificilmente a equipe médica ou de técnicos e enfermeiros olham nos olhos dos pacientes. Tá faltando amor no mundo!
Ainda bem que existem finais felizes e emocionantes também.
Adorei ler!
Um beijo e tenham uma semana muito abençoada.
O final não poderia ser melhor. Adorei o conto Elvira. Parabéns pela escolha.
Abraços,
Furtado
O Natal também serve para isto… para termos a noção do privilégio que temos e de que por vezes podemos dar até mais sentido às nossas vidas se ajudarmos outras a terem sentido…
Abraço, gostei muito
Só mesmo num conto, porque a realidade seria bem diferente, infelizmente.
Abraço Elvira
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