HOJE É NATAL
O avô Fernando chegou de longe com uma mala muito pesada.
Ajudei-o a levá-la para o meu quarto e não o larguei mais, enquanto não a
abriu. O que traria ele dentro daquela mala tão grande? Prendas de Natal?
Surpresas? Brinquedos? Livros? – perguntava a mim próprio. Mortinho de
curiosidade, andei à sua volta como uma mosca, a zumbir perguntas.
— Ó avô, o que é que trazes?
— Tem calma, tem paciência, que logo te mostro! –
aconselhou, ainda com a voz ofegante por ter carregado comigo aquela mala.
— Anda lá, diz-me só a mim, que eu não digo a mais ninguém!
— As prendas e as surpresas só se mostram logo, depois da
ceia. Não sejas chato!
— Diz-me, que eu prometo guardar segredo! – insisti.
Como tinha de entregar à minha mãe uns produtos para a
ceia, que tinha trazido da sua terra, começou a abrir a mala devagarinho e eu
fiquei à espera que de lá de dentro saísse qualquer coisa de mágico: um avião
que voasse – vrrruuum, vrrruuummm – ou uma coisa assim… capaz de fazer pasmar
os meus amigos.
Mas não. Apareceram, entre a escova de dentes, a gilete, o
pincel da barba, uma toalha de rosto e o pijama do meu avô, vários embrulhinhos
amarrados com fitas coloridas, uma garrafa de azeite, um queijo, uma broa de
Avintes, um frasco de azeitonas e uma garrafa que parecia ter dentro água
amarela.
— Avô, que prenda me vais oferecer?
— Que prenda me vais dar a mim?
Não lhe respondi. A um canto, estava um rolo envolvido em
papel azul-marinho, prateado.
— E isso, o que é? É um telescópio? É um caleidoscópio?
— Olha que tu és muito pegajoso! Está bem, pronto! Eu
digo-te, se não, nunca mais te calas. Isso é uma luz para o Natal!
— É de ligar à electricidade? É de acender? É uma estrela
para pôr no presépio? – perguntei, agitado.
— Não. Isto é o Espírito do Natal! – exclamou o meu avô,
com mistério na voz.
— Espírito? Igual àquele da Lâmpada do Aladino? Se
esfregar, sai um génio que faz tudo o que a gente quer? Ó avô és mesmo fixório!
Mostra, avô, mostra!
Para não me aturar mais, ele ia a desembrulhar o rolo de
papel prateado, quando foi salvo da minha curiosidade pelo chamamento da minha
mãe:
— Venham para a mesa!
O meu avô, ainda a arfar da viagem, desceu devagar com a
mão no corrimão, e eu acompanhei-lhe os passos.
O meu pai fechou-se na sala de jantar e, querendo fazer um
bonito, não nos deixou entrar na sala, onde a mesa já estava posta para a ceia.
As luzes estavam apagadas e a porta fechada. Quando íamos
para entrar, o meu pai, muito teatreiro e eufórico, fez:
— Te te te tzzéééé! ! ! – e abriu a porta e as luzes.
Senti uma baforada quente e fui abraçado por um cheirinho a
rabanadas, a sonhos, a filhoses, a aletria com desenhos de canela e a
bilharacos, que era um doce que o meu avô apreciava muito.
A iluminação da sala estava um espanto, a mesa um
espectáculo, a lareira soltava línguas de fogo e a música ambiente eram as
vozes de anjos de um CD que a minha mãe comprara de propósito para aquela
noite.
Por cima da lareira, o meu pai pôs o presépio e ao canto
construiu uma Árvore de Natal, apenas com ramos de pinheiro, porque pensava ele
que as árvores não se deviam abater.
Disse-me uma vez:
— Se um dia tiveres de cortar uma árvore, deves pedir-lhe
desculpa, ouviste? Uma árvore é um ser vivo!
O meu avô dirigiu-se ao presépio, mirou-o e remirou-o e,
por fim, disse:
— Que engraçado! Nunca vi um presépio assim: o Menino Jesus
está ao colo da mãe e a manjedoura vazia. Ó Castro, dou-te os meus parabéns, o
presépio está muito bonito!
Os olhos do meu pai brilharam com o elogio.
E sabem porquê? É que o meu avô achava que o meu pai era um
bocado azelhote para fazer coisas e habilidades com as mãos.
Era a primeira vez que ele vinha a nossa casa, depois do
segundo casamento da minha mãe.
Para o impressionar, os meus pais receberam-no com mimos e
atenções como se fosse um rei.
Por causa disso, eu comecei a ficar um bocado chateado. Até
parecia que os meus pais, naquela noite, decidiram riscar-me do mapa das suas
atenções.
Mas não, para mim, aquele Natal não foi só uma noite de
paz, foi uma noite de pazes.
— Ah, já me esquecia… Olha, Mário, vai à minha mala buscar
o Espírito do Natal, mas trá-lo com cuidado, não lhe mexas, ouviste? – pediu-me
o avô Fernando.
O meu pai e a minha mãe cruzaram os olhos de interrogação,
ao saber que o meu avô tinha trazido para casa um espírito.
Subi a correr as escadas que davam para o meu quarto e
senti que os bichos carpinteiros da curiosidade me atacavam com perguntas:
— O que estaria dentro daquele rolo de papel prateado?
Seria mesmo um espírito? E os espíritos têm a forma de um charuto comprido?
Seria uma brincadeira ou uma história do meu avô? Pelo sim e pelo não, passei
os dedos, ao de leve, pelo rolo.
E se o tal espírito saísse do tubo e me falasse: “Diz-me,
Mário, meu amo, que desejas? Diz-me, que a tua vontade será satisfeita!”
Se isso me acontecesse, o que é que eu desejaria? Sei lá,
se não ficasse atrapalhado, era capaz de pedir:
— Ó alma boa, ó espírito da luz, quero que arranjes alguém
que me faça os deveres de casa, quero um avião a sério que aterre no meu pátio
e quero uma moto a motor!
Estava a minha imaginação com gás na tábua quando ouvi a
voz do meu avô:
— Então, vens ou não?!
Desci as escadas a correr e entreguei-lhe o rolo de papel
prateado. Fiquei à espera, para ver o que de lá saía.
Era agora, era agora que eu ia conhecer o tal Espírito do
Natal. Como o avô desembrulhou o rolo com muito cuidadinho, eu comecei a
acreditar que, se calhar, havia ali mesmo qualquer mistério.
Desenrolou, desenrolou, até que… apareceu uma simples vela
de cera branca.
— Oooohhhh! Uma vela! – disse de mim para mim, muito
desiludido.
Embora a sala estivesse inundada de luz, o avô Fernando
riscou um fósforo, pediu à minha mãe um castiçal, acendeu a vela e colocou-a no
centro da mesa. Depois, disse:
— Na chama desta vela mora o Espírito do Natal! Nesta
noite, nesta mesa e nesta chama, para mim estarão presentes todos os nossos
antepassados, todas as nossas recordações e todas as pessoas de quem gostamos.
Está o meu pai e a minha mãe, está a tua… está a tua… avó que Deus tenha…
O meu avô parou de falar e, em vez de palavras, saíram
apenas lágrimas grossas que escorreram pela cara abaixo.
O silêncio que se fez foi tão grande que ficámos todos
muito encolhidos, sem saber o que dizer.
Quem nos salvou do peso do silêncio e das lágrimas foi a
minha mãe:
— Então, então, pai, hoje é Natal! – falou baixinho a minha
mãe, misturando a fala com um beijo.
— Vamos à ceia! – disse, por fim, o avô, ainda com a
coragem engasgada.
Depois, comemos, rimos, jogámos ao rapa, ao tira, ao deixa
e ao põe até que chegou a hora da distribuição das prendas.
O meu pai deu-me um livro, a minha mãe uma camisa aos
quadrados e o meu avô umas grossas meias de lã.
Eu fiquei muito desconsolado porque esperava um brinquedo
de espanto, daqueles que fizessem roer de inveja os colegas da rua. O meu avô
andava sempre com os pés frios e trouxe meias de lã porque, se calhar, pensou
que sofríamos todos do mesmo mal.
Estava tudo a correr bem. Até o meu pai, que andava quase
sempre, “cabisbundo” e “meditabaixo”, ria-se, ria-se até mais não. A certa
altura, o avô chamou-me para a sua beira e disse-me:
— Olha para a luz da vela. Fixa o Espírito do Natal! O que
vês? Eu lá olhei, mas o que via era que a chama se inclinava, lenta mente, ora
para um lado, ora para o outro.
— Vês alguma coisa?
— Não vejo nada. Só a chama a dizer não, devagarinho!
— Para mim, na Noite de Natal, esta chama significa tudo o
que o ser humano tem de bom dentro de si: a saudade do amor, da amizade e da
partilha das coisas. É por isso que lhe chamo o Espírito do Natal. Nesta noite,
quando fixo a luz da vela, diante dos meus olhos passam, como se fosse em
cinema, histórias e vidas das pessoas que amei e se cruzaram comigo ao longo
dos anos.
Estou agora a olhar para ela e estou a lembrar-me do Natal
mais lindo que eu tive em toda a minha vida. Queres que te conte?
— Conta, avô, conta!
— Mas olha que é uma história triste! Mas verdadeira!
— Não faz mal! Mesmo assim, conta!
A minha mãe e o meu pai aproximaram-se do sítio onde nós
estávamos. O avô fixou os seus olhos de formiga na chama da vela e, com uma voz
quente e pausada…
— No tempo em que o Natal custava a chegar, vivia eu numa
casa pequenina. Eu era pobre e não tinha brinquedos, mas não me importava.
Bastava o cheiro que andava pelas ruas e pelos caminhos a fazer miminhos de
fraternidade no coração das pessoas.
Era por isso que, quando tinha a tua idade, na véspera de
Natal, ao passar pelas outras pessoas, dizia, cheio de alegria:
— Hoje é Natal!
A pouca distância de minha casa, havia uma outra, que não
era bem casa. As paredes eram de chapa velha e o chão de terra batida.
O vento entrava por tudo o que era frincha e o frio estava
ali plantado.
Uma fogueira fazia de fogão e a única cama que havia era
feita de paus de pinheiro, ainda por descascar.
E nessa casa que não era bem casa, tão pequenininha e tão
pobre de tudo, morava a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos: a Rosa e o
Domingos.
Esta mulher de pele enrugada, de olhos verdes e vida amargurada
foi, um dia, transformada em pássaro negro. Por duas vezes se quis matar,
atirando-se da ponte de D. Luís para o rio Douro.
Da primeira vez, as saias largas que usava amorteceram a
queda e um barqueiro que por ali andava viu-a e, remando rapidamente, retirou-a
do rio, ainda com vida.
Da segunda vez que se quis matar estava muito vento. Ao
atirar-se da ponte, uma rajada empurrou-a contra os fios de electricidade e
neles ficou enrodilhada. Os bombeiros tiraram-na com vida, apenas ficando
magoada no peito.
Disseram as velhas da aldeia que tudo isso aconteceu porque
o Anjo da Guarda da Ti Adelaide Tintureira, cansado de a proteger durante uma
vida cheia de aflições, adormeceu duas vezes.
E, nessas duas vezes, a Morte, ao ver aquela mulher de
olhos tristes, transformada em ave negra, não a quis e devolveu-a, sã e salva,
para viver o resto do seu destino.
Naquele tempo, a Ti Adelaide Tintureira e os filhos viviam
da venda da lenha, apanhada nos pinhais, e de pequenos serviços que lhe
encomendavam. Ela e os filhos vestiam do que algumas “almas caridosas” lhe
davam.
Passavam muito mal e, quando se vive assim, nem é bom
sentir o cheiro do Natal nem ouvir falar de prendas nem de rabanadas. Isso só
serve para entristecer a vida de quem tem pouquinho.
— Natal é um dia como os outros! – dizia a Ti Adelaide
Tintureira para tentar convencer os filhos a não olharem para as roupas novas
que os outros meninos vestiriam no dia seguinte.
Na noite de Natal, em cima da nossa pequena mesa, já
fumegava a travessa de bacalhau cozido com batatas e couves-galegas.
Nesse ano, para além das rabanadas, havia um bocadinho de
queijo, uns pastéis comprados no Porto e uma garrafa de vinho fino, oferecida
pelo Ti Zé Estureta, como consoada, por lhe gastarmos da mercearia.
Para operários de vida dura, aquela ceia de Natal era quase
um banquete de rei.
Quando íamos iniciar a refeição da noite de Natal…
— E se fôssemos chamar a Ti Adelaide Tintureira e os seus
filhos para cearem com a gente? – propôs o meu pai.
A minha mãe disse que sim e, momentos depois, eu batia à
porta da barraca da Ti Adelaide Tintureira.
Lá dentro, a chama da candeia de azeite furava a escuridão
e os olhos da Rosa e do Domingos enchiam de tristeza aquela noite, que não era
bem igual às outras.
Sem saber o que dizer nem fazer, seguiram-me até à porta da
minha cozinha.
Disseram boa noite com voz sumida e, quando se sentaram à
volta da mesa daquela família de pobres operários, que era a minha, dei com uns
olhos verdes, acesos de alegria.
Eram os da Ti Adelaide Tintureira que pagava aquele gesto
bonito com um olhar que já não usava há muito tempo: um olhar de felicidade.
Quando acabámos de comer e de jogarmos o rapa a pinhões,
vim cá fora e, pelo intervalo das folhas de uma laranjeira, vi, lá longe, o
brilho de uma estrelinha que mais ninguém viu.
Agora, quando olho para o céu, lembro-me dos olhos acesos
da Ti Adelaide Tintureira, que foram morar para as estrelas e que me aparecem,
na noite de Natal, para me recordarem dos bons sentimentos que ainda não foram
apagados do coração das pessoas.
Quando o avô Fernando se calou, olhei para a chama da vela
e senti que o Espírito do Natal estava ali e me tinha visitado naquela noite.
José Vaz
Hoje é Natal
Ed. Gailivro, 2000