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31.12.20

FELIZ ANO NOVO


 A todos os amigos que me acompanharam neste ano tão difícil, eu quero agradecer pela companhia e pelo carinho com que me brindaram ao longo do ano. E de todo o coração vos deixo com esta bênção



Antiga Bênção Celta

Que o caminho venha ao teu encontro.

Que o vento sempre sopre às tuas costas e a chuva caia suave sobre teus campos.

E até que voltemos a nos encontrar, que Deus te sustente suavemente na palma de sua mão.

Que vivas todo o tempo que quiseres e que sempre possas viver plenamente.

Lembra sempre de esquecer as coisas que te entristeceram,
porém nunca esqueças de lembrar aquelas que te alegraram.

Lembra sempre de esquecer os amigos que se revelaram falsos, porém nunca esqueças de lembrar aqueles que permaneceram fiéis

Lembra sempre de esquecer os problemas que já passaram,
porém nunca esqueças de lembrar as bênçãos de cada dia.

Que o dia mais triste de teu futuro não seja pior que o dia mais feliz de teu passado.

Que o teto nunca caia sobre ti e que os amigos reunidos debaixo dele nunca partam.

Que sempre tenhas palavras cálidas em um anoitecer frio,
uma lua cheia em uma noite escura, e que o caminho sempre se abra à tua porta

Que vivas cem anos, com um ano extra para arrepender-te.

Que o Senhor te guarde em sua mão, e não aperte muito seus dedos.

Que teus vizinhos te respeitem, os problemas te abandonem,
os anjos te protejam, e o céu te acolha.
E que a sorte das colinas Celtas te abrace.

Que as bênçãos de São Patrício te contemplem.

Que teus bolsos estejam pesados e teu coração leve.

Que a boa sorte te persiga, e a cada dia e cada noite tenhas muros contra o vento, um teto para a chuva, bebidas junto ao fogo, risadas que consolem aqueles a quem amas,
e que teu coração se preencha com tudo o que desejas.

Que Deus esteja contigo e te abençoe, que vejas os filhos de teus filhos, que o infortúnio te seja breve e te deixe rico de bênçãos.

Que não conheças nada além da felicidade, deste dia em diante.

Que Deus te conceda muitos anos de vida; com certeza Ele sabe que a terra não tem anjos suficientes… suficientes…
... e assim seja a cada ano, para sempre!


(autor desconhecido)


Feliz 2021


E já agora os votos das minhas princesas...



30.12.20

CONTOS DE NATAL


Fim do Natal

 Os reclames na televisão anunciavam o tempo das prendas. Era um tempo 
mágico. A mãe e o pai ensinaram-me que na véspera de Natal devia pôr o 
sapatinho na chaminé e ir dormir se não o Menino Jesus não vinha para dar as
 prendas. O mano, sempre mandão repetia:

 — Não podes ficar acordado senão o Menino não te dá nada!

 Eu cumpria. E o Menino Jesus não faltava ao prometido.

 Houve uma vez - devia ter três ou quatro, não sei - que a ansiedade me acordou 
de madrugada, ainda não amanhecera.

 Chamei baixinho pelo meu irmão:

 — Mano! O Menino Jesus já veio?

 — Não sei — respondeu. — A mãe é que sabe.

 A mãe sabia que sim:

 - Vamos lá ver - disse ela quando a fui acordar.

 Em casa acenderam-se muitas luzes e num instante demos com os sapatinhos e
 a chaminé cheios de prendas. Ena! Aquilo é que foi uma alegria! Ao lado do meu 
sapatinho, havia um camião gigante azul e amarelo embrulhado com uma fita 
encarnada. E a seu lado uma escavadeira do mesmo tamanho que elevava a pá!
 Fiquei felicíssimo e quis logo ir brincar às obras, mas a mãe disse que ainda
 eram horas de dormir; o Menino Jesus podia ainda tornar outra vez com mais prendas. Demasiado excitado, lá aceitei ir-me deitar.

 Na manhã de Natal, corri a desembrulhar as prendas para a cama dos pais. No
 sapatinho, além de roupas e coisas menos engraçadas ainda achei uma 
debulhadora...

 Esbagoando e enfardando agora estas histórias lembro-me que depois desse 
Natal tudo se baralhou: o Pai Natal apareceu também a dar prendas e na 
confusão veio-me à ideia que ele devia ser pai do Menino Jesus... 
Ao depois os miúdos da taberna - os cabacinhos como lhes chamava a Dª Joana  
mais o primo deles, disseram-me que não havia Pai Natal nem Menino Jesus nem
 nada; que eram os pais a fingir. 
Foi o desencantamento mais custoso que passei


Retirado daqui

29.12.20

CONTOS DE NATAL - O MEU SEMÁFORO ÚNICO


O meu semáforo único

O semáforo à esquina da minha rua tem caprichos que são dele, só dele e de mais nenhum semáforo que eu conheça.

Posso garantir que é caso único, porque tenho convivido com imensos semáforos por todo o mundo e não sei de nenhum com os caprichos do meu, isto é, do semáforo da minha rua.

O que vou contar é segredo, mas eu sei que fica tudo entre nós.

Calcule-se que o semáforo, farto de passar o dia a dar luz verde, amarela, encarnada, vai daí, à noite, noite alta, volta não volta, dá-se ao gosto de experimentar outras cores.

Primeiro certifica-se de que não há trânsito nem transeuntes, porque ele é um semáforo muito escrupuloso. Só estou eu à janela, quando trabalho até mais tarde. Sou o seu único confidente.

— Uma vida inteira, sujeito a três únicas cores é de rebentar com a paciência de qualquer um — diz-me o semáforo. — Ora repara neste lilás, que tal?

Eu aprecio e aplaudo, mas moderadamente, para não acordar os vizinhos.

— E este azul-marinho, não é lindo? — pergunta-me ele, sabendo antecipadamente a resposta.

Não para de experimentar. Cor-de-rosa, verde-oliva, azul-ultramarino, encarnado-
-beringela, roxo, laranja, amarelo-torrado, amarelo-canário, amarelo-gema-de-ovo (tantos amarelos!), verde-folha, azul da Prússia, violeta-carmesim, cor-de-púrpura e mais mais e mais cores sem nome, tantas, que o semáforo da minha rua, a meio da noite, parece um arco-íris aos soluços. Acreditem ou não acreditem, é um espectáculo deslumbrante.

Os gatos vadios até se esquecem daquilo ao que andam e ficam estarrecidos, a olhar para o semáforo. Eu e os gatos somos os únicos espectadores, os seus admiradores fiéis.

Fosse da aragem mais fresca de uma destas noites ou do que fosse, apanhei um resfriado e passei vários dias fechado em casa, a curar-me da constipação. Quando voltei a sentir-me bom, fui logo postar-me no meu miradoiro de janela.

Mas para estranheza minha, o semáforo nunca mais passava do verde, amarelo e vermelho dos seus mais ajuizados dias. Que lhe sucedera? Seria ainda cedo para a grande gala das cores, em passagem de modelos?

Perguntei-lhe e ele respondeu-me:

— Ontem à noite apanhei um susto que nem queiras saber. Estava eu a ensaiar um novo pigmento, entre o azul-cobalto e o cinzento-de-mercúrio, quando dou com um polícia a olhar para mim e a esfregar os olhos, abismado. Atrapalhei-me, não consegui recompor-me e disparei uma quantidade de cores, à doida. O verde, o amarelo e o encarnado é que não havia meio.

— E o polícia de boca aberta — ri-me eu.

— O caso não é para rir, porque o polícia agarrou-se ao telemóvel e pôs-se a chamar por outros polícias. Eles quase a chegarem e eu cada vez mais aflito, sem atinar com as cores do costume. Ora me saía azul-celeste ora castanho-terra ora rosa-pálido.

— E o polícia? — perguntei-lhe eu, em brasa.

— O polícia só gritava: “1035… Semáforo avariado. Perigo público. Remoção urgente. Escuto!” Já me via a ser arrancado, atirado para um monte de sucata, substituído por um desses semáforos vulgares, sem imaginação nenhuma.

— O que seria uma péssima vizinhança — comentei.

— Tanto mais que já estou habituado a esta rua. À noite, é pacata. De dia, não dá muito trabalho — continuou ele. — Enfim, lá consegui estabilizar as cores. Quando a carrinha da polícia chegou, encontraram um semáforo normalíssimo.

— E o polícia que deu o alarme? — quis eu saber, condoído.

— Passou um mau bocado. O chefe recomendou-lhe que só bebesse laranjada ao jantar e, dentro da carrinha em que regressaram à esquadra, deve ter-lhe dito mais coisas desagradáveis.

— E tu? — perguntei.

— Eu fiquei penalizado e com remorsos. Tanto assim que decidi não voltar às experiências.

— Nunca mais?

A minha voz saiu-me como se estivesse quase a fazer beicinho. Mas o semáforo tranquilizou-me, a tempo:

— Decidi que uma vez por ano, mas só uma vez por ano, na noite de Natal, quando estiverem todos agasalhados em casa, até os polícias, nessa noite, só nessa noite é que apresento o meu espectáculo total furta-cores.

Respirei fundo.

Está a chegar o frio e eu vou juntar camisolas e cachecóis e casacão e sobretudo e carapuço e boné, para não perder um único segundo da feérica noite que me espera.

Claro que, como já avisei, tudo isto é segredo. Eu até nem digo onde moro.



António Torrado
Dezembro à porta
Porto, Edições Asa, 2005


28.12.20

CONTOS DE NATAL - UMA CEIA INESPERADA

 







Numa noite gelada de Dezembro, dois pobres cães vadios procuravam abrigo debaixo de uma grande árvore de Natal erguida no meio de uma praça, com uma vistosa iluminação que podia ser observada até do céu. Debaixo dos ramos da árvore e próximo do calor das lâmpadas fortes, eles conseguiam ter algum conforto, protegendo-se da chuva e do frio intenso.
Disse um dos cães para o companheiro:
— Há quanto tempo andas nesta vida?
— Desde o Verão passado. Os meus donos foram de férias e, como acharam que dava muito trabalho arranjar quem tomasse conta de mim, abandonaram-me. Foi assim que me tornei vadio, embora seja um cão de raça.
— Quer então dizer que é o primeiro Natal que passas na rua?
— Sim, é o primeiro. E tu?
— Para mim já é o terceiro. Eu não sou um cão de raça, sou um vira-lata, e tinha uma dona que gostava muito de mim. Eu era a sua única companhia. Um dia ela adoeceu e acabou por morrer.
— E o que foi que te aconteceu?
— Os filhos da minha dona não quiseram ficar com este encargo e puseram-me na rua. Já por cá ando há algum tempo, remexendo nas lixeiras, bebendo água das poças e das sarjetas e fugindo das camionetas da Câmara que trazem homens com redes para nos apanharem.
— Pois olha que eu ainda não me habituei a esta vida e nem sei se alguma vez me habituarei. Ainda estou muito zangado com os meus donos por me terem feito o que fizeram. Pareciam gostar muito de mim, gabavam-se muito da minha beleza e da minha raça, mas acabaram por me abandonar, dizendo aos filhos que alguém me roubou quando eu passeava sem coleira.
— Já ouvi contar muitas histórias como a tua, e olha que cada vez há mais. As pessoas são egoístas e quando nos põem em casa não pensam nas responsabilidades que têm para connosco.
— Mas parece que com os gatos isso não acontece, e repara que eu não gosto nada de gatos.
— Estás enganado. Também há muitos gatos abandonados e há alguns pontos em que podemos nos entender, já que os nossos problemas são os mesmos quando se trata de abandono.
— Então e qual é o teu desejo para esta noite de Natal?
— Para dizer a verdade, o que eu desejava é que estas lâmpadas se transformassem em ossos saborosos e numa refeição quente. Se isso acontecesse, eu até era capaz de acreditar que há um céu para os cães.
Mal ele acabou de pronunciar estas palavras, caíram sobre eles vários ossos e duas latas de comida apetitosa. Ambos se refastelaram com a abundância e com a qualidade da refeição que iria marcar para sempre a memória que ambos guardariam daquela noite de Natal.
Certamente haverá quem diga que nunca as lâmpadas coloridas de uma árvore de rua se poderiam transformar em comida para cães abandonados. Mas também é verdade que os cães não costumam falar, e os desta história, para que nos lembremos sempre da solidão dos que são condenados a tornar-se vadios, falaram durante um bom bocado. Vale esta história para que não esqueçamos os que não têm teto, neste ou nos próximos Natais.
José Jorge Letria



27.12.20

CONTOS DE NATAL - A ÁRVORE DOS GROUS







A ÁRVORE DOS GROUS*


Quando ainda não era suficientemente crescido para usar calças, a minha mãe tinha sempre medo de que eu me afogasse no lago que ficava à beira de casa. Estava constantemente a dizer-me que não fosse brincar para lá, mas eu não fazia caso, porque nele havia peixes de cores deslumbrantes.

A última vez que fui para o lago era um dia triste de Inverno, demasiado frio para os peixes se mostrarem. Nunca saíram debaixo das pedras e o que eu arranjei foi uma grande constipação. A minha mãe ia, de certeza ficar zangada comigo e adivinhar logo como é que eu tinha molhado as luvas. Mas talvez ficasse feliz por me ver.

— Mãe, já cheguei — gritei eu.

Não houve resposta.

Costumava vir sempre à porta receber-me. Voltei a chamar, e por fim respondeu. A voz parecia vir de muito longe. Ouviu-me, mas não veio ter comigo. Deve estar doente, pensei. Encontrei-a na sala a fazer dobragens em papel. Limitou-se a menear a cabeça, mal olhando para mim. Mas havia à minha espera duas fatias do meu bolo preferido, o que me reconfortou um pouco.

— Porque estás a fazer grous* de papel? — perguntei eu.

— Porque quero realizar um grande desejo — respondeu, sem levantar os olhos.

— Vais dobrar mil pássaros para o teu desejo se realizar?

— Nem que seja dois mil… — estendeu os braços e passou-me a mão fria pelo rosto. — Tens a cara a arder!

Franziu o sobrolho e olhou para mim em silêncio. Baixei a cabeça e não me atrevi a falar. Ela sabia… Sempre que a minha mãe achava que eu estava constipado, dava-me um banho quente.

— Dez minutos, nem menos um segundo — disse ela.

E nem as costas me limpou. Ouvi os chinelos a afastarem-se ao longo do corredor. Depois fechou-se uma porta. Não regressou para me fazer companhia. É melhor pedir desculpa,disse eu, a pensar em mim. Mas antes que pudesse dizer que estava arrependido, a minha mãe pôs-me em pijama!

— Não tenho vontade de ir para a cama.

— Tens de ficar muito agasalhado e quente.

— Toda a tarde?

— Sim, toda a tarde.

— Vais ler-me histórias?

— Não há histórias, mas vou preparar-te um almoço quente.

Eu bem sabia o que aquilo queria dizer. Papas de arroz. Papas de arroz são só para quem está doente. E foi o que eu tive, com uma ameixa de conserva de vinagre e umas rodelas de cenoura. Comi tudo sozinho e bebi um chá quente, pela chávena grande do meu pai. Depois, meti-me na cama, e fiquei à espera, à espera que a minha mãe viesse com uma maçã e me lesse uma história. Mas a porta não se abriu.

— Mãe! — acabei por gritar.

Não respondeu. Após um longo momento, ouvi um ruído vindo do jardim. Talvez o velho jardineiro tivesse vindo podar mais uma vez as nossas árvores. Levantei-me e abri a janela. Lá fora, nevava. E a minha mãe cavava em redor de uma pequena árvore.

— O que estás a fazer? — gritei eu.

Ela parou e olhou para mim.

— Fecha imediatamente essa janela e volta para a cama!

Fechei logo a janela e fui para a cama. Hoje está mesmo zangada, pensei eu. Mas porque andará a cavar debaixo de neve? Terá ficado aborrecida comigo? Não sabia o que pensar. Começava a adormecer quando ela entrou. Trazia uma árvore num vaso azul. Era o pinheirinho que os meus pais tinham plantado quando nasci, para que eu vivesse muitos anos, tal como a árvore.

— O que estás a fazer com a minha árvore? — perguntei eu.

— Já vais ver — respondeu ela, ao colocar o vaso no chão. — Sabes que dia é hoje?

— Hum… Falta uma semana para a passagem de Ano.

— Exactamente — disse a sorrir!

Depois, foi à sala buscar os grous prateados e alguns apetrechos de costura. Por fim, sentou-se. Passou um fio por um dos pássaros e pendurou-o na árvore.

— Hoje portei-me o dia todo de uma forma um tanto esquisita — disse ela.

Eu ia começar a falar, mas interrompeu-me.

— Se prometeres ficar na cama, digo-te porquê.

— Prometo — disse eu.

— Como sabes, muito antes de vir para aqui, onde encontrei o teu pai, nasci e vivi num país muito distante.

Acenei que sim com a cabeça.

— Na Califórnia — respondi.

— Lá, hoje não é um dia como os outros. Se estivesses na Califórnia, verias, por todo o lado, árvores como esta, enfeitadas com luzes cintilantes e bolinhas de ouro e prata. E debaixo de cada árvore presentes que as pessoas oferecem aos amigos e àqueles que amam.

— Eu gostaria de ter um papagaio samurai — disse eu.

— Damos e recebemos, filho. É um dia de amor e de paz. Os desconhecidos sorriem uns para os outros. Os inimigos fazem uma trégua. Precisamos de mais dias como este!

E pendurou na árvore o último pássaro.

— Que lindo! — gritei eu.

— Ainda não é tudo — disse.

E foi à cozinha buscar velas, que prendeu aos ramos.

— Vais queimar a minha árvore? — perguntei eu.

A minha mãe riu-se.

— Só as velas, e apenas por um instante. Amanhã voltamos a plantar a tua árvore.

— Quero acendê-las! Posso, mãe? Posso?

— Sim, mas despacha-te.

A minha mãe deixou-me riscar os fósforos.

E quando acabámos de acender as velas, ela ficou em silêncio.

Estava a recordar. Via uma outra árvore, num país longínquo onde tinha sido criança como eu. Pegou em mim e sentou-me nos joelhos. Os grous oscilavam lentamente e brilhavam à luz das velas. Não pode haver uma árvore mais linda do que a minha, pensei. Nem mesmo lá, onde a minha mãe nasceu.

— Que presente gostavas de receber? — perguntei.

— Serenidade e harmonia — respondeu.

— Não! Para eu te dar.

— Oh, uma coisa muito especial… talvez uma promessa.

— Já prometi que ficava na cama.

— Outra, então.

— Está bem.

— Dá-me a tua palavra que nunca mais voltas ao lago.

Prometi.

Dormia a sono solto quando o meu pai chegou!

Na manhã do dia seguinte, saltei da cama porque um feroz guerreiro me olhava fixamente. Mas não passava de um papagaio de papel. Um papagaio! O que eu sempre desejara!

E depois, por detrás, vi a árvore, a minha árvore. De repente, lembrei-me da tarde do dia anterior e daquilo que a minha mãe me tinha contado.

— Obrigado, mãe! Obrigado, pai! — e corri lá para fora com a minha prenda.

Estava tudo coberto de neve.

— Vais ter dias melhores — disse a minha mãe. — Dias com vento e sem neve.

— Há neve que chegue para fazer um boneco! — disse o meu pai. — Anda, vamos fazer um.

E o nosso boneco de neve daquele dia derreteu.

Já se passaram muitos anos. Mas nunca esquecerei aquele dia de harmonia e de serenidade. O meu primeiro Natal.

 

Allen Say
L’arbre aux oiseaux
Paris, l’école des loisirs, 1994
(Tradução e adaptação)

* No Japão, a arte tradicional de dobrar papel chama-se origami (do japonês: oru, “dobrar”, e kami, “papel”). Criam-se representações de determinados seres ou objectos apenas com as dobras geométricas de uma folha, sem a cortar ou colar, e o pássaro mais célebre dá pelo nome de grou. Reza a lenda que, quando alguém consegue fazer 1000 grous de papel, o desejo de uma vida longa e feliz é sempre realizado!

26.12.20

PENSAMENTO DO DIA


CONTOS DE NATAL - UM SIMPLES CARTÃO DE NATAL







UM SIMPLES CARTÃO DE NATAL

 Parece totalmente filantrópico, mas, na realidade, o nosso pedido baseou-se tanto no altruísmo como na conservação da própria vida.

Paul Knowles

 Maxime e eu estamos casados há apenas cinco anos. Casar na nossa idade (já muito para lá dos 40 anos) é o oposto de o fazer no princípio da idade adulta. Nessa altura, a questão que se coloca é: «Será que nos vão oferecer as coisas de que necessitamos?» Agora, e em vez disso, é: Como é que nos vamos ver livres de metade das coisas que temos?» Estamos naquela fase feliz da vida em que não necessitamos de nada. Isto torna as coisas um pouco difíceis para os que querem dar-nos prendas.

Essa dificuldade estende-se aos nossos oito filhos, dois dos quais ainda não saíram de casa. Dos que saíram, todos têm casa e companhia (uma dessas combinações já produziu o nosso primeiro neto); alguns só agora começaram a aventura da independência. Para estes jovens, cujas idades vão dos 13 aos 27 anos, um dólar ganho é um dólar para ser investido na vida.

É assim que, a caminho do Natal de 2002, Max aparece com uma óptima ideia. Dissemos aos nossos filhos que tudo o que queríamos para o Natal era um cartão.

— Só um cartão? — respondiam, insatisfeitos.

— Não — continuámos. — Queremos um cartão em que nos digam o que é que fizeram pela vossa comunidade. Qualquer trabalho de voluntariado que tenham feito em favor de alguém do vosso bairro. Tendo em conta o sentido lato de “bairro”.

Não ficaram muito convencidos com isto, mas, na manhã de Natal, a maioria deles reuniu-se na saleta para trocar prendas entre si. Depois, um a um, os cartões foram aparecendo.

Um deles dizia: Neste Natal, enviei uma caixa de sapatos cheia de brinquedos e outras coisas essenciais a uma menina da Guatemala. Comprei livros, marcadores, lápis, papel, produtos para a higiene dentária, champô, bonecas, plasticina, etc. Senti-me muito bem por dar estas coisas a uma pessoa que deve ter ficado agradecida e feliz… Embora tivesse sido para uma criança que nunca conheci, senti que fiz uma coisa muito importante.

Outro cartão dizia simplesmente: Como prenda para vocês, colaborei no leilão da igreja e vou ajudar na missa, na véspera de Natal.

Uma das nossas filhas deu-nos como presente ter-se oferecido como voluntária para a Associação dos Direitos dos Não-Fumadores, uma causa que ela acha que é importante. Outro participou no coro da Catedral de S. Jorge, em Kingston – uma actividade extracurricular pouco vulgar para um estudante do 2º ano da universidade. O nosso mais novo entregou-nos um cartão onde dizia que a sua prenda era fazer trabalho voluntário nas Olimpíadas Especiais: todas as semanas dava assistência, tanto na natação como no bowling, aqui na nossa comunidade. O mais velho, juntamente com a mulher, escreveu: Em Outubro, enviámos um correio electrónico a todos os nossos amigos e familiares dizendo-lhes que este ano, para a vossa prenda de Natal, estávamos a angariar dinheiro para comprar prendas para a árvore de Natal do Exército de Salvação. Em resposta ao nosso pedido, obtivemos 385 euros, e com esse dinheiro comprámos presentes para 18 crianças. Como os recém-nascidos e as crianças com mais de 10 anos são normalmente os mais esquecidos, propusemo-nos comprar prendas para bebés e para os miúdos mais velhos. Depois, enviámos um correio electrónico a todas as pessoas que contribuíram e, em anexo, uma fotografia digital com todas as prendas que comprámos.

A sugestão da minha mulher foi, literalmente, muito importante para dezenas de vidas, sem falar das vidas dos nossos próprios filhos, que perceberam, em primeira mão, que é preciso muito pouco esforço para se conseguir um impacto a valer.

As velas e os doces dos Natais anteriores há muito tempo que desapareceram. Ou porque foram consumidos ou arrumados sabe-se lá onde. Mas os presentes deste Natal estão numa caixa especial para ser apreciados vezes sem conta. E este ano sabe exactamente o que vamos pedir outra vez aos nossos filhos para o Natal.

Preparem-se, aí vão eles!
Selecções do Reader’s Digest
Lisboa, Dezembro de 2004

25.12.20

CONTO DE NATAL - HOJE É NATAL

 




HOJE É NATAL

 

O avô Fernando chegou de longe com uma mala muito pesada. Ajudei-o a levá-la para o meu quarto e não o larguei mais, enquanto não a abriu. O que traria ele dentro daquela mala tão grande? Prendas de Natal? Surpresas? Brinquedos? Livros? – perguntava a mim próprio. Mortinho de curiosidade, andei à sua volta como uma mosca, a zumbir perguntas.

 

— Ó avô, o que é que trazes?

 

— Tem calma, tem paciência, que logo te mostro! – aconselhou, ainda com a voz ofegante por ter carregado comigo aquela mala.

 

— Anda lá, diz-me só a mim, que eu não digo a mais ninguém!

 

— As prendas e as surpresas só se mostram logo, depois da ceia. Não sejas chato!

 

— Diz-me, que eu prometo guardar segredo! – insisti.

 

Como tinha de entregar à minha mãe uns produtos para a ceia, que tinha trazido da sua terra, começou a abrir a mala devagarinho e eu fiquei à espera que de lá de dentro saísse qualquer coisa de mágico: um avião que voasse – vrrruuum, vrrruuummm – ou uma coisa assim… capaz de fazer pasmar os meus amigos.

 

Mas não. Apareceram, entre a escova de dentes, a gilete, o pincel da barba, uma toalha de rosto e o pijama do meu avô, vários embrulhinhos amarrados com fitas coloridas, uma garrafa de azeite, um queijo, uma broa de Avintes, um frasco de azeitonas e uma garrafa que parecia ter dentro água amarela.

 

— Avô, que prenda me vais oferecer?

 

— Que prenda me vais dar a mim?

 

Não lhe respondi. A um canto, estava um rolo envolvido em papel azul-marinho, prateado.

 

— E isso, o que é? É um telescópio? É um caleidoscópio?

 

— Olha que tu és muito pegajoso! Está bem, pronto! Eu digo-te, se não, nunca mais te calas. Isso é uma luz para o Natal!

 

— É de ligar à electricidade? É de acender? É uma estrela para pôr no presépio? – perguntei, agitado.

 

— Não. Isto é o Espírito do Natal! – exclamou o meu avô, com mistério na voz.

 

— Espírito? Igual àquele da Lâmpada do Aladino? Se esfregar, sai um génio que faz tudo o que a gente quer? Ó avô és mesmo fixório! Mostra, avô, mostra!

 

Para não me aturar mais, ele ia a desembrulhar o rolo de papel prateado, quando foi salvo da minha curiosidade pelo chamamento da minha mãe:

 

— Venham para a mesa!

 

O meu avô, ainda a arfar da viagem, desceu devagar com a mão no corrimão, e eu acompanhei-lhe os passos.

 

O meu pai fechou-se na sala de jantar e, querendo fazer um bonito, não nos deixou entrar na sala, onde a mesa já estava posta para a ceia.

 

As luzes estavam apagadas e a porta fechada. Quando íamos para entrar, o meu pai, muito teatreiro e eufórico, fez:

 

— Te te te tzzéééé! ! ! – e abriu a porta e as luzes.

 

Senti uma baforada quente e fui abraçado por um cheirinho a rabanadas, a sonhos, a filhoses, a aletria com desenhos de canela e a bilharacos, que era um doce que o meu avô apreciava muito.

 

A iluminação da sala estava um espanto, a mesa um espectáculo, a lareira soltava línguas de fogo e a música ambiente eram as vozes de anjos de um CD que a minha mãe comprara de propósito para aquela noite.

 

Por cima da lareira, o meu pai pôs o presépio e ao canto construiu uma Árvore de Natal, apenas com ramos de pinheiro, porque pensava ele que as árvores não se deviam abater.

 

Disse-me uma vez:

 

— Se um dia tiveres de cortar uma árvore, deves pedir-lhe desculpa, ouviste? Uma árvore é um ser vivo!

 

O meu avô dirigiu-se ao presépio, mirou-o e remirou-o e, por fim, disse:

 

— Que engraçado! Nunca vi um presépio assim: o Menino Jesus está ao colo da mãe e a manjedoura vazia. Ó Castro, dou-te os meus parabéns, o presépio está muito bonito!

 

Os olhos do meu pai brilharam com o elogio.

 

E sabem porquê? É que o meu avô achava que o meu pai era um bocado azelhote para fazer coisas e habilidades com as mãos.

 

Era a primeira vez que ele vinha a nossa casa, depois do segundo casamento da minha mãe.

 

Para o impressionar, os meus pais receberam-no com mimos e atenções como se fosse um rei.


Por causa disso, eu comecei a ficar um bocado chateado. Até parecia que os meus pais, naquela noite, decidiram riscar-me do mapa das suas atenções.

 

Mas não, para mim, aquele Natal não foi só uma noite de paz, foi uma noite de pazes.

 

— Ah, já me esquecia… Olha, Mário, vai à minha mala buscar o Espírito do Natal, mas trá-lo com cuidado, não lhe mexas, ouviste? – pediu-me o avô Fernando.

 

O meu pai e a minha mãe cruzaram os olhos de interrogação, ao saber que o meu avô tinha trazido para casa um espírito.

 

Subi a correr as escadas que davam para o meu quarto e senti que os bichos carpinteiros da curiosidade me atacavam com perguntas:

 

— O que estaria dentro daquele rolo de papel prateado? Seria mesmo um espírito? E os espíritos têm a forma de um charuto comprido? Seria uma brincadeira ou uma história do meu avô? Pelo sim e pelo não, passei os dedos, ao de leve, pelo rolo.

 

E se o tal espírito saísse do tubo e me falasse: “Diz-me, Mário, meu amo, que desejas? Diz-me, que a tua vontade será satisfeita!”

 

Se isso me acontecesse, o que é que eu desejaria? Sei lá, se não ficasse atrapalhado, era capaz de pedir:

 

— Ó alma boa, ó espírito da luz, quero que arranjes alguém que me faça os deveres de casa, quero um avião a sério que aterre no meu pátio e quero uma moto a motor!


Estava a minha imaginação com gás na tábua quando ouvi a voz do meu avô:

 

— Então, vens ou não?!

 

Desci as escadas a correr e entreguei-lhe o rolo de papel prateado. Fiquei à espera, para ver o que de lá saía.

 

Era agora, era agora que eu ia conhecer o tal Espírito do Natal. Como o avô desembrulhou o rolo com muito cuidadinho, eu comecei a acreditar que, se calhar, havia ali mesmo qualquer mistério.

 

Desenrolou, desenrolou, até que… apareceu uma simples vela de cera branca.

 

— Oooohhhh! Uma vela! – disse de mim para mim, muito desiludido.

 

Embora a sala estivesse inundada de luz, o avô Fernando riscou um fósforo, pediu à minha mãe um castiçal, acendeu a vela e colocou-a no centro da mesa. Depois, disse:

 

— Na chama desta vela mora o Espírito do Natal! Nesta noite, nesta mesa e nesta chama, para mim estarão presentes todos os nossos antepassados, todas as nossas recordações e todas as pessoas de quem gostamos. Está o meu pai e a minha mãe, está a tua… está a tua… avó que Deus tenha…

 

O meu avô parou de falar e, em vez de palavras, saíram apenas lágrimas grossas que escorreram pela cara abaixo.

 

O silêncio que se fez foi tão grande que ficámos todos muito encolhidos, sem saber o que dizer.

 

Quem nos salvou do peso do silêncio e das lágrimas foi a minha mãe:

 

— Então, então, pai, hoje é Natal! – falou baixinho a minha mãe, misturando a fala com um beijo.

 

— Vamos à ceia! – disse, por fim, o avô, ainda com a coragem engasgada.

 

Depois, comemos, rimos, jogámos ao rapa, ao tira, ao deixa e ao põe até que chegou a hora da distribuição das prendas.

 

O meu pai deu-me um livro, a minha mãe uma camisa aos quadrados e o meu avô umas grossas meias de lã.

 

Eu fiquei muito desconsolado porque esperava um brinquedo de espanto, daqueles que fizessem roer de inveja os colegas da rua. O meu avô andava sempre com os pés frios e trouxe meias de lã porque, se calhar, pensou que sofríamos todos do mesmo mal.

 

Estava tudo a correr bem. Até o meu pai, que andava quase sempre, “cabisbundo” e “meditabaixo”, ria-se, ria-se até mais não. A certa altura, o avô chamou-me para a sua beira e disse-me:

 

— Olha para a luz da vela. Fixa o Espírito do Natal! O que vês? Eu lá olhei, mas o que via era que a chama se inclinava, lenta mente, ora para um lado, ora para o outro.

 

— Vês alguma coisa?

 

— Não vejo nada. Só a chama a dizer não, devagarinho!

 

— Para mim, na Noite de Natal, esta chama significa tudo o que o ser humano tem de bom dentro de si: a saudade do amor, da amizade e da partilha das coisas. É por isso que lhe chamo o Espírito do Natal. Nesta noite, quando fixo a luz da vela, diante dos meus olhos passam, como se fosse em cinema, histórias e vidas das pessoas que amei e se cruzaram comigo ao longo dos anos.

 

Estou agora a olhar para ela e estou a lembrar-me do Natal mais lindo que eu tive em toda a minha vida. Queres que te conte?

 

— Conta, avô, conta!

 

— Mas olha que é uma história triste! Mas verdadeira!

 

— Não faz mal! Mesmo assim, conta!

 

A minha mãe e o meu pai aproximaram-se do sítio onde nós estávamos. O avô fixou os seus olhos de formiga na chama da vela e, com uma voz quente e pausada…

 

— No tempo em que o Natal custava a chegar, vivia eu numa casa pequenina. Eu era pobre e não tinha brinquedos, mas não me importava. Bastava o cheiro que andava pelas ruas e pelos caminhos a fazer miminhos de fraternidade no coração das pessoas.

 

Era por isso que, quando tinha a tua idade, na véspera de Natal, ao passar pelas outras pessoas, dizia, cheio de alegria:

 

— Hoje é Natal!

 

A pouca distância de minha casa, havia uma outra, que não era bem casa. As paredes eram de chapa velha e o chão de terra batida.

 

O vento entrava por tudo o que era frincha e o frio estava ali plantado.

 

Uma fogueira fazia de fogão e a única cama que havia era feita de paus de pinheiro, ainda por descascar.

 

E nessa casa que não era bem casa, tão pequenininha e tão pobre de tudo, morava a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos: a Rosa e o Domingos.

 

Esta mulher de pele enrugada, de olhos verdes e vida amargurada foi, um dia, transformada em pássaro negro. Por duas vezes se quis matar, atirando-se da ponte de D. Luís para o rio Douro.

 

Da primeira vez, as saias largas que usava amorteceram a queda e um barqueiro que por ali andava viu-a e, remando rapidamente, retirou-a do rio, ainda com vida.

 

Da segunda vez que se quis matar estava muito vento. Ao atirar-se da ponte, uma rajada empurrou-a contra os fios de electricidade e neles ficou enrodilhada. Os bombeiros tiraram-na com vida, apenas ficando magoada no peito.

 

Disseram as velhas da aldeia que tudo isso aconteceu porque o Anjo da Guarda da Ti Adelaide Tintureira, cansado de a proteger durante uma vida cheia de aflições, adormeceu duas vezes.

 

E, nessas duas vezes, a Morte, ao ver aquela mulher de olhos tristes, transformada em ave negra, não a quis e devolveu-a, sã e salva, para viver o resto do seu destino.

 

Naquele tempo, a Ti Adelaide Tintureira e os filhos viviam da venda da lenha, apanhada nos pinhais, e de pequenos serviços que lhe encomendavam. Ela e os filhos vestiam do que algumas “almas caridosas” lhe davam.

 

Passavam muito mal e, quando se vive assim, nem é bom sentir o cheiro do Natal nem ouvir falar de prendas nem de rabanadas. Isso só serve para entristecer a vida de quem tem pouquinho.

 

— Natal é um dia como os outros! – dizia a Ti Adelaide Tintureira para tentar convencer os filhos a não olharem para as roupas novas que os outros meninos vestiriam no dia seguinte.

 

Na noite de Natal, em cima da nossa pequena mesa, já fumegava a travessa de bacalhau cozido com batatas e couves-galegas.

 

Nesse ano, para além das rabanadas, havia um bocadinho de queijo, uns pastéis comprados no Porto e uma garrafa de vinho fino, oferecida pelo Ti Zé Estureta, como consoada, por lhe gastarmos da mercearia.

 

Para operários de vida dura, aquela ceia de Natal era quase um banquete de rei.

 

Quando íamos iniciar a refeição da noite de Natal…

 

— E se fôssemos chamar a Ti Adelaide Tintureira e os seus filhos para cearem com a gente? – propôs o meu pai.

 

A minha mãe disse que sim e, momentos depois, eu batia à porta da barraca da Ti Adelaide Tintureira.

 

Lá dentro, a chama da candeia de azeite furava a escuridão e os olhos da Rosa e do Domingos enchiam de tristeza aquela noite, que não era bem igual às outras.

 

Sem saber o que dizer nem fazer, seguiram-me até à porta da minha cozinha.

 

Disseram boa noite com voz sumida e, quando se sentaram à volta da mesa daquela família de pobres operários, que era a minha, dei com uns olhos verdes, acesos de alegria.

 

Eram os da Ti Adelaide Tintureira que pagava aquele gesto bonito com um olhar que já não usava há muito tempo: um olhar de felicidade.

 

Quando acabámos de comer e de jogarmos o rapa a pinhões, vim cá fora e, pelo intervalo das folhas de uma laranjeira, vi, lá longe, o brilho de uma estrelinha que mais ninguém viu.

 

Agora, quando olho para o céu, lembro-me dos olhos acesos da Ti Adelaide Tintureira, que foram morar para as estrelas e que me aparecem, na noite de Natal, para me recordarem dos bons sentimentos que ainda não foram apagados do coração das pessoas.

 

Quando o avô Fernando se calou, olhei para a chama da vela e senti que o Espírito do Natal estava ali e me tinha visitado naquela noite.

 

José Vaz

Hoje é Natal

Ed. Gailivro, 2000