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16.12.19

CONTOS DE NATAL - O PRESENTE DO "CARA-FEIA"



A mãe estava sentada na cadeira de imitação de cabedal, no consultório médico, a mexer nas unhas com nervosismo. Rugas de preocupação sulcavam-lhe a testa, enquanto olhava para Kenny, de cinco anos, sentado no tapete à frente dela.

«Ele é pequeno para a idade e muito magro», pensou. O cabelo louro do menino caía-lhe macio e liso sobre as orelhas. Ligaduras de gaze branca envolviam-lhe a cabeça, tapando-lhe os olhos e prendendo-lhe as orelhas.


No regaço fazia saltar um ursinho de peluche estragado. Era o orgulho da sua vida, embora lhe faltassem um braço e um olho. A mãe tentara por duas vezes deitar fora o urso para o substituir por um novo, mas ele ficara tão nervoso que ela desistira. Inclinou a cabeça um pouco para o lado e sorriu-lhe. «De facto, é tudo o que tem», disse para si mesma, suspirando.

Uma enfermeira apareceu à porta.
— Kenny Ellis — anunciou ela, e a jovem mãe pegou no filho e seguiu a enfermeira até à sala de observação. O corredor cheirava a anti-sépticos e a ligaduras. Desenhos a lápis, feitos por crianças, revestiam as paredes.— O médico virá daqui a pouco — disse a enfermeira, com um sorriso eficiente. — Sente-se, por favor.

A mãe colocou Kenny sobre a mesa de observação.
— Tem cuidado, querido, para não caíres.
— Estou muito alto, mãe?
— Não, querido, mas tem cuidado.
Kenny apertou o ursinho com mais força.
— Também não quero que o Cara-Feia caia.

A mãe sorriu. O sorriso curvou-lhe os cantos da boca, transformando-se num esgar de preocupação. Afastou o cabelo do rosto do filho e acariciou-lhe a face, suave como veludo, com as costas da mão. Quando a música do consultório mudou para uma versão ctual de Noite Feliz, recordou o acidente pela milésima vez.

Há anos que cozinhava nos bicos de trás. Mas lá estava, mesmo à frente, a água a ferver para a papa de aveia.
O telefone tocou na sala de estar. Era mais uma daquelas chamadas com «ofertas» caríssimas. No momento em que pousava o telefone na mesa, Kenny, na cozinha, soltou um grito, um grito horrível de dor, capaz de gelar as veias de uma mãe.
Estremeceu de novo com a recordação e limpou uma lágrima que lhe corria pela face. Tinham esperado seis semanas por aquele dia. «Poderemos tirar as ligaduras na semana antes do Natal», dissera o médico.

A porta da sala abriu-se repentinamente e o Dr. Harris entrou.
— Bom dia, Sr.ª Ellis — disse ele, prazenteiramente. — Como se sente hoje?
— Bem, obrigada — disse ela. Mas estava demasiado apreensiva para conversas banais.
O Dr. Harris debruçou-se na banca e lavou cuidadosamente as mãos. Era cauteloso com os doentes, mas descuidado consigo próprio. Raramente arranjava tempo para cortar o cabelo, e o cabelo preto e liso chegava-lhe ao colarinho. A gravata desapertada permitia que o colarinho ficasse aberto no pescoço.

— Então — disse ele, sentando-se num banco — vamos lá dar uma vista de olhos.
Suavemente, cortou a ligadura com uma tesoura e desprendeu-a da cabeça de Kenny. A ligadura caiu, deixando dois quadrados lisos de gaze, presos com adesivo, sobre os olhos de Kenny. Devagar, o Dr. Harris levantou as pontas do adesivo, esforçando-se por não ferir a pele fina do menino.

Kenny abriu lentamente os olhos, pestanejou várias vezes como se a claridade súbita o ferisse. Em seguida, olhou para a mãe e sorriu.
— Olá, mamã! — disse.
Sufocando e incapaz de falar, a mãe lançou os braços à volta do pescoço de Kenny. Durante vários minutos, não pôde dizer nada, enquanto abraçava o filho e chorava de gratidão. Por fim, olhou para o médico com os olhos rasos de água.
— Não sei como lhe poderei pagar — disse ela.
— Já falámos disso — interrompeu o médico, acenando com a mão. — Sei qual é a sua situação, e a do Kenny. Ainda bem que pude ajudar.

A mãe passou um lenço puído nos olhos, levantou-se e pegou na mão de Kenny. Mas, quando se virou para a porta, Kenny soltou-se e ficou parado um longo momento, a olhar indeciso para o médico. Em seguida pegou no braço do urso e estendeu-o ao médico.
— Aqui tem — disse. — Fique com o meu Cara-Feia. Deve valer muito dinheiro.
O Dr. Harris pegou no urso estragado com ambas as mãos.
— Obrigado, Kenny. Vale muito mais do que os meus serviços.

Os últimos dias, antes do Natal, foram particularmente bons para Kenny e para a mãe. Sentavam-se nas longas noites, a olhar para as luzes da árvore de Natal, que acendiam e apagavam. As ligaduras tinham tapado os olhos de Kenny durante seis semanas, por isso o menino parecia ainda relutante em os fechar para dormir. O fogo que dançava na lareira, os flocos de neve que se colavam às janelas do quarto, os dois pequenos embrulhos por debaixo da árvore – todas as luzes e cores da festa o fascinavam!

Na véspera de Natal tocaram e a mãe de Kenny foi abrir a porta da rua. Não estava lá ninguém, mas havia uma caixa grande, embrulhada em papel dourado com uma fita vermelha, larga e com um laço. Uma etiqueta presa ao laço identificava a caixa como destinada a Kenny Ellis.

Com um sorriso, Kenny tirou a fita, levantou a tampa e retirou um ursinho – o seu querido Cara-Feia. Só que agora tinha um braço novo de bombazina castanha, e dois olhos, feitos de botões, que brilhavam na luz suave do Natal. Kenny não pareceu importar-se por o braço novo não condizer com o outro. Abraçou o ursinho e riu.

No meio do papel de seda dentro da caixa, a mãe encontrou um cartão. «Querido Kenny», dizia, «às vezes consigo curar os meninos e as meninas, mas a Sr.ª Harris ajudou a consertar o Cara-Feia. É melhor médica do que eu. Feliz Natal! Dr. Harris.»
— Olha, mãe — Kenny sorriu, apontando para os olhos de botões. — O Cara-Feia vê outra vez, tal como eu!

Garry Swanson

11 comentários:

Pedro Coimbra disse...

E o Cara-Feia deixou-me o coração cheio.
Boa semana

Os olhares da Gracinha! disse...

Este não conhecia... Bj

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Um belo conto minha amiga, gostei bastante.
Um abraço e boa semana.

Andarilhar
Dedais de Francisco e Idalisa
O prazer dos livros

chica disse...

Que amor e me fez lembrar de um Cara Feia que tive assim... beijos, ótima semana! chica

Meu Velho Baú disse...

Belo conto de Natal com um tal ursinho "cara feia" que fez a delícia desse menino.
Beijinhos e uma Boa Semana

Isa Sá disse...

A passar por cá para conhecer mais um conto de Natal e desejar boa semana!

Isabel Sá  
Brilhos da Moda

Majo Dutra disse...

Interessante... Gostei de ler.
Abraço
~~~~

Larissa Santos disse...

Tão bom este conto. Obrigada pela partilha e por nos deliciar:))

Hoje : Deslumbras-te na essência da minha tez

Bjos
Votos de uma óptima Segunda Feira.

Rosemildo Sales Furtado disse...

Kenny ganhou dois presentes de Natal, o primeiro a visão, pois voltou a enxergar, e o segundo, o retorno do Cara-Feia devidamente transplantado. Obrigado Elvira por mais um belo conto, e parabéns por mais uma ótima escolha.

Abraços, uma ótima semana, um Feliz Natal e um 2020 repleto de realizações.

Furtado

João Santana Pinto disse...

Neste fim de semana, parei para tentar escrever um conto de natal, mas não fui capaz (ainda não desisti).

Em todo o caso, este conto, aqueceu-me a alma e no fundo, deixa expostas as grandes questões e os verdadeiros valores…

Abraço e bom início de semana

Cidália Ferreira disse...

São todos tão lindos, que eleger um é muito difícil!:) Amei

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--> Nas brumas do tempo ...
Beijo e uma boa noite!