Havia o arrastar das cadeiras, o tinir dos copos e dos
talheres, o desdobrar dos guardanapos, o fumegar da terrina. Tomava-se o caldo,
bebia-se o primeiro copo de vinho, estava-se ombro com ombro, os pés dos de um
lado tocavam nos pés do que estavam em frente. Bom aconchego! Belo agasalho!
As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de
plenitude.
Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de
mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família,
estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada
e satisfeita. Não é tudo?
Não é. O primeiro dos convivas que tinha o sentimento dessa
imperfeição era a velhinha sentada ao centro da mesa. Ela, que para nós
representava apenas a avó, tinha sido também a filha, tinha sido a irmã, tinha
sido a esposa, tinha sido a mãe … No seu pobre coração, quantos lutos
sobrepostos, quantas saudades acumuladas! Por isso, enquanto os outros riam e
conversavam alegremente, a mão dela emagrecida e enrugada tremia de comoção ao
tocar no copo, e dos seus olhos cansados despegavam-se silenciosamente duas
lágrimas, que ela embebia no guardanapo enquanto a sua boca procurava sorrir e
titubear palavras de resignação, de conforto, de felicidade.
Essas lágrimas eram como a evocação do espírito dos ausentes
e do espírito dos mortos para aquele banquete. A festa era então interrompida
por silêncios graves, pensativos, durante os quais cada um se recolhia em si
mesmo e olhava um pouco ao passado e um pouco ao futuro. Dos que se tinham
sentado àquela mesa, em idêntica noite, quantos tinham partido para não
voltarem mais! Quantas lacunas dentro dos últimos anos!
Dentro de alguns anos mais, quantas outras! Se havia, como
quase sempre sucede, um filho, um neto, um irmão ausente, era em volta da
recordação dele que se agrupavam e fixavam esses vagos cuidados dispersos. A
mágoa do passado, a incerteza do futuro, acabava por aparecer a cada um sob a
figura aventurosa do viajante intrépido ou do trabalhador vigoroso que
celebrava aquela noite num país longínquo ou nas águas do mar.
E esse amado ausente era o conviva que cada um sentia mais
perto, a essa mesa, junto do seu coração.
Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria
imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade
nem as preocupações incertas do futuro. Para nós tudo na vida tinha o carácter
imutável e eterno. O destino aparecia-nos ridentemente fixado, como no musgo as
alegres figuras do presépio. Supúnhamos que seriam eternamente lisas as faces
da nossa mãe, eternamente negro o bigode do nosso pai, eternamente resignada e
compadecida a decrépita figura da nossa avó, toucada nas suas rendas pretas, no
fundo da grande poltrona.
Não tínhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. Não
nos tinham explicado suficientemente que o louro Menino Jesus que nos sorria no
seu bercinho, tão descuidado, tão alegre, no meio do esplendor dos círios e do
perfume das violetas, era o mesmo Deus descarnado e lívido, coroado de
espinhos, alanceado no coração, pregado na cruz e exposto no altar.
Repugnar-nos-ia acreditar, se então no-lo dissessem, que o
tenro e suave bambino do presépio, cercado de amores, de cânticos, de festas,
de dádivas, de bonitos, cheio de carícias e de beijos, teria um dia de ser um
mártir, um herói, um Deus, mas que para isso haveriam de o perseguir como um
rebelde, de o torturar como um criminoso, de o justiçar como um bandido, que
ele teria de ser esbofeteado, azorragado, traído, que receberia o beijo de
Judas, que seria preso entre os seus discípulos no Jardim das Oliveiras, que
mandaria embainhar a espada de Pedro para beber o cálice da amargura, que seria
levado de Caifás para Pilatos, que seria condenado, que lhe poriam a coroa de
espinhos, que o fariam subir o Calvário sob o peso da cruz, que finalmente o
crucificariam entre os dois ladrões aos olhos da sua própria mãe.
Não, a vida não é uma festa permanente e imóvel, é uma
evolução constante e rude. O Natal é a festa das lágrimas para todos aqueles
para quem ele não é a festa da inexperiência. E, todavia, pensavam alguns que
era útil não deixar de a celebrar. Que importa que o número ou que o nome dos
convivas varie em cada ano? Que importa que alguns amados velhos faltem ao
banquete? Que importa que nós mesmos faltemos para o ano que vem na festa dos
mais novos?
Esta noite de alegria para as crianças será sempre de alguma
saudade para os adultos. Assim teremos a esperança terna de sobreviver, por
algum tempo, na lembrança dos que amamos — uma boa vez ao menos, de ano a ano.
Crónica Jornalística – 1882 de Ramalho Ortigão
9 comentários:
Vamo-nos focar na alegria.
A saudade está lá.
Mas vamos dar palco à alegria.
Boa semana
Que lindo e como disse o Pedro, foquemos na alegria... Ótima semana natalina! beijos, tudo de bom,chica
¡Hola Garcíamigo!
En primer lugar, me presento; Soy un periodista "viejo" (81 años) pero creo que todavía estoy dentro de la "fecha de caducidad"...
He estado en más de 120 países pero nunca he estado en Argentina y ahora con algunas limitaciones de movimiento no iré.
Como fui redactor jefe (editor en jefe) del periódico más importante de Portugal - "Diário de Notícias" me gusta encontrar gente que escriba bien: es tu caso Muy bien hecho, mui buenas ideas, perfecto. Puedes visitarme y comentar en español ya que es mi segundo idioma. También hablo y escribo francés, inglés, algo de alemán e italiano e incluso sé decir algunas frases en rumano. Entrevisté a muchas "personalidades" internacionales, desde Indira Gandhi y su hijo Rajiv hasta Niculae Ceausescu, Olof Palme, Bruno Kreisky, Jonas. Savimbi, Lula, Adolfo Suaréz y otros. Ya he escrito tres libros y estoy preparando otro.
Tengo dos peticiones:
1) Visítame y deja un comentario (http://anossatravessa.blogspot.pt)
2) Si quieres hacerlo, comparte mi blog con tus amigos de la blogósfera. ¡Muchas gracias!
Un abrazo
Henrique
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Querida Elviramiga
Não que pretenda emular-me a esses gigantes da Literatura Nacional, também eu escrevi – como sabes – um conto de Natal que entretanto já sofreu alguns arranjos no original, Vou publicá-lo, obviamente no dia 24 n’A NOSSA TRAVESSA e creio que tem a sua originalidade pois o tema nunca foi tratado – tanto quanto sei.
A época presta-se a quem fez da escrita ofício com o qual ganhou a vida tão honesta, verdadeira e independente quanto me foi possível. Se alguém pagou esse procedimento foi a minha família mas tive – e tenho – a sorte d possuir a MELHOR FAMILIA DO MUNDO!
Neste Natal de 2022 juntamos a família alargada: nós próprios, a Raquel e eu, os três filhos e as noras/filhas, o quatro netos e a neta, o respectivos “apêndices”, uma irmã solteira da minha cara-metade e eventualmente a viúva do meu irmão mais novo (que se suicidou há trinta e seis anos) e o filho eles e meu sobrinho, todos em minha casa, repartidos entre o 24 e 25 com as famílias das noras que consideramos como as filhas que não tivemos.
E é assim. O melhor Natal para ti e para os teus
Beijos & queijos
Henrique
Por erro ficou também o comentário em castelhano par um amigo argentino. Como não sei apagá-lo, por favor fá-lo! Obrigado
Henrique
Acho que começar a escrever contos de Natal, pois toda a gente diz bem deles e não há quem os critique!
Vamos preparar-nos para o Natal, faltam poucos dias
Belíssimo conto de Ramalho Ortigão!
Muita PAZ, muita SAÚDE e um GRANDE abraço!
Muito bonito :)) Vamos continuar!!
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Dezoito anos de ti, com muito Amor.🍀
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Beijo, e uma ótima segunda-feira
E neste conto, Elvira, está o sentimento de todos nós, quando , sentados à mesa, damos conta de que tantos queridos já não estão presentes; surge uma saudade ainda maior e o pensamento de que no próximo, mais algum faltará, Não seremos nós? Mas, Amiga, não pensemos nisso e deixemos que a alegria entre, nem que seja só pelas pequeninas, Margarida e Beatriz que ainda acreditam no Pai Natal. Um beijinho e os meus votos de que os teus olhos estejam bons para poderes celebrar esta festa com alegria. BOM NATAL!
Emilia 🌲 ⭐ 🎁
Boa noite Elvira,
Um conto maravilhoso cheio de detalhes que me encantam.
Beijinhos e saúde.
Ailime
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