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12.12.22

CONTOS DE NATAL - O SUAVE MILAGRE - PARTE V



Ora entre Enganim e Cesarea, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. 


Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na terra escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento.

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, que de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava com olhos famintos. 

E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia como o Sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessa a Enganim; Septimus, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesarea. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionarios de Septimus. E todos voltavam como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi, que amava as criancinhas ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:

- Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areias e colinas, desde Chorazin até ao país de Moab. Septimus é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar. Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora conosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas lágrimas na face magrinha, murmurou:

- Oh, mãe, Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um tão mal pesado, e que tanto queria sarar!

- Oh, meu filho, como te posso deixar? Longe são as estradas da Galileia, e 
curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O céu o trouxe, o céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.

De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:

- Mãe, eu queria ver Jesus...

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo Jesus disse á criança:

- Aqui estou.

Eça de Queiroz, 



E aqui termina este maravilhoso conto, desse  genial mestre da literatura portuguesa que é Eça de Queirós. Espero que tenham gostado.

10 comentários:

Pedro Coimbra disse...

Maravilha.
Própria do Mestre.
Boa semana

chica disse...

Gostei de acompanhar esse tão importante escritos nesse conto lindo! beijos, ótima semana, tudo de bom para ti e teus olhos! chica

Isa Sá disse...

Obrigada por partilhar os contos de Natal!
Isabel Sá
Brilhos da Moda

Fatyly disse...

Este não conhecia e gostei imenso.
Beijos e um bom dia

Tintinaine disse...

O Eça, sim, é o escritor que eu admiro e ainda por cima natural da minha terra!
E estes contos, a puxar a lágrima, tão ao gosto do nosso povo!
Gostei de ler!

Olinda Melo disse...


Tão lindo este Conto de Natal, Elvira.
Lembro-me dele de um dos meus livros
da instrução primária, que era como se
chamavam os primeiros anos da escola.
Adorei relê-lo. Com emoção.
Bom Natal.
Beijinhos
Olinda

Jaime Portela disse...

Reler destas preciosidades é sempre agradável.
Boa semana, amiga Elvira.
Um abraço.

Maria João Brito de Sousa disse...

Foi com muito prazer que reli este belo conto de Eça de Queiroz, Elvira.

Espero que já se encontre um pouco melhor dos seus olhos, embora considere um tanto prematura esta sua pressa em voltar às publicações.

Um abraço grande!

teresadias disse...

Maravilhoso conto, sem dúvida.
Obrigada, Elvira.
Beijo, boa semana.

Ailime disse...

Boa noite Elvira
Lindíssimo conto que adorei ler.
O final é simplesmente sublime.
Beijinhos e saúde.
Ailime