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1.7.17

ROSA - PARTE II





Durante anos, Rosa não teve outra vida que sair todos os dias para o monte com o rebanho. Nele cresceu e nele nasceram os primeiros sonhos de mulher. E fizera-se uma linda mulher. Tinha um corpo esbelto que as roupas grosseiras não conseguiam esconder, um rosto moreno no qual os enormes olhos negros brilhavam como faróis em noite sem lua. Os cabelos escuros, primorosamente entrançados, chegavam quase à cintura.
As longas horas de solidão passavam rápidas, entretida entre sonhos e desejos. Um dia, um príncipe, encantado ou não, de alguma cidade distante havia de chegar… e nesse dia a sua vida ia mudar.
Naquela tarde, quando recolheu o rebanho, a Ti‟Zefa, convidou-a para vir à noite à desfolhada. Todos os anos era convidada mas, devido ao facto de se levantar antes de o sol nascer para apascentar o rebanho ela nunca lá fora. Naquele dia, sabe-se lá porque tentação do demo, aceitou ir. 
A desfolhada era na eira do Sr. António, não muito longe do alpendre da casa. O Sr. António era o patrão da maioria dos habitantes na aldeia. Tinha feito fortuna no Brasil, mas isso fora muitos anos antes de ela nascer. 
Foi uma noite inesquecível. Rapazes e raparigas, alguns de aldeias vizinhas, sentavam-se numa grande roda à volta da eira. No meio desta, uma pequena montanha de espigas que iam descascando com perícia, pondo atrás de si o folhelho, e a seu lado em grandes cestos de vime a maçaroca loira. Mais tarde o folhelho seco seria usado para encher os colchões e as espigas seriam malhadas pelos homens, ali mesmo na eira. De vez em quando, soltavam-se as gargantas em afinadas quadras ao desafio, quase sempre entre um rapaz e uma rapariga, que faziam rir quem os ouvia, ora apoiando um, ora apoiando outro.
Para descansar a garganta, ou quem sabe para germinar nova leva de cantorias, preenchia-se o intervalo com histórias que, de tão antigas, já haviam virado lendas, conhecidas de todos. Mas, como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, as histórias eram sempre diferentes dependendo do narrador.
As histórias masculinas eram quase sempre de bruxas e almas do outro mundo, onde não faltava nunca o próprio demo disfarçado de bela dama, com pés de cabra. As mulheres, regra geral, talvez por medo, contavam histórias  mais reais. Gracinhas dos filhos, ou dos sobrinhos, eram sempre bem recebidas, mas às vezes também vinha à baila uma ou outra história de “lobisomens”.
Por vezes, alguém gritava: - Milho-rei! E levantava-se exibindo no ar uma espiga de milho quase cor de vinho como se fora um troféu. Os rapazes eram mais exuberantes. As moças, especialmente as solteiras, tentavam esconder o seu entusiasmo que o brilho do olhar denunciava.
Então, como diz a cantiga, cumpria-se a lei e rapaz ou rapariga a quem ela saísse, tinha que percorrer a roda abraçando todos os participantes da desfolhada, novos ou velhos, casados ou solteiros. Era a oportunidade para os namorados trocarem um carinho na frente dos pais, coisa que de outro modo era absolutamente proibida naqueles tempos.



20 comentários:

Tintinaine disse...

Também participei em algumas desfolhadas, mas era muito novo ainda e não percebia nada da poda. Depois de fazer 18 anos e alistar-me na Marinha, nunca mais houve desfolhadas.
Bons tempos!

Olinda Melo disse...


A desfolhada! Momentos inesquecíveis para que os viveu.

Bj

Olinda

chica disse...

Interessantes costumes...bjs,chica

António Querido disse...

Sou desse tempo, e que belo tempo, alegre e inesquecível tempo na aldeia até aos 14 anos de idade.
O meu abraço amiga Elvira.

Edum@nes disse...

Lembro-me desse tempo. Mas, do que passei, não tenho saudades. Foram mais as tristeza do que as alegrias. Enquanto viver as quais não consigo esquecer!

Tenha amiga Elvira um bom fim de semana, um abraço,
Eduardo.

Emília Pinto disse...

Estive a ler tudo para trás e gostei muito do final, Agora, uma que me faz voltar aos meus tempos de criança na aldeia onde nasci; na minha casa não havia desfolhadas, mas fazia-se muitas nos grandes lavradores, nossos vizinhos e era sempre uma grande festa; naquele tempo vizinhos eram familia e a convivência era muito agradável e todos se ajudavam nesses trabalhos agricolas. Vamos acompanhando este teu conto, querida Elvira, que, como sempre, vai ser muito bom. Desejo-te um excelente fim de semana. Beijinhos e até....
Emília

AvoGi disse...

Estou a adorar... Uma forma de resolver vier as histórias antigas da minha meninice... Nunca pRticipei na desfolhada mas lia os actores portugueses que barraca esse acontecimento.
E por falar em histórias de bruxos, realmente, era um tema recorrente de antigamente
Kis :=)

Manu disse...

Em miúda participei em desfolhadas e fiquei muito contente porque me lembrei da história do milho-rei.
É óptimo recordar histórias da nossa infância.

Beijos Elvira

Rui disse...

Também estive presente numa ou noutra esfolhada na eira de um lavrador, nos anos 40 e 50 (ainda miúdo) e que bem me recordo dos efeitos da descoberta de uma espiga de grão vermelho ! :))
Bela recordação !
... e já agora, para mim e para os meus amigos, os campos de milho serviam-nos como pista de atletismo para as nossas corridas de velocidade ! ... Daí para o desporto federado foi um saltinho ! rsrs

Vejamos como se irá portar o sr António e qual o destino da Rosa ! (?)

O meu pensamento viaja disse...

Bicho de cidade, inesperadamente participei numa desfolhada na quinta dos pais de uns amigos. Foi uma revelação.
Beijo

Ailime disse...

Boa noite Elvira,
Adorei a descrição da desfolhada que me fez recordar tempos de criança.
Um beijinho,
Ailime

Majo Dutra disse...

Vou seguindo...
Ainda não dá para avaliar...
Ótimo Domingo, Amiga.
Abraço.
~~~

redonda disse...

Gostei muito da descrição desta desfolhada e estou a gostar muito da história
Quem será o pai da Rosa? Será que ela vai ficar a saber quem é?

um beijinho e uma boa noite

Gábi

Cantinho da Gaiata disse...

Nunca participei em desfolhadas, mas vi quando ia às fazendas da minha Madrinha em Monchique.
Estou a gostar Elvira da história.
Bj e bom fim de semana.

aluap disse...

A espiga "preta" aparecia sempre, e normalmente aparecia aos rapazes. Quantas vezes essa espiga ia bem escondida no bolso (dizem)!
Já conheço a obra, mas como os tempos mudaram tanto vou acompanhar e comentar com muito gosto.

Louraini Christmann - Lola disse...

Muito interessante conhecer outras culturas.
A vida vive-se dentro delas. Lindo.

abraço
Lola

Os olhares da Gracinha! disse...

Desfolhada uma tradição que une gerações!
Bj e estou a gostar

Lua Singular disse...

Oi Elvira,
Apesar de não estar muito bem, quase dormindo em cima do computador.kkk,sinto a sua alegria de contar contos verídicos.
Os meus pequenos contos são ficção.
Adoro ler seus conto...
Beijos
Lua Singula

Gaja Maria disse...

Estou a gostar muito da história Elvira. veremos o que se vai passar :)

Berço do Mundo disse...

Esta desfolhada, como a outra da Simone, parece que vai ser polémica...