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24.7.24

PIEDADE - UMA MULHER DE OUTROS TEMPOS

REEDIÇÃO


                                                        

Quando Piedade soube que estava de novo grávida, pensou que o mundo lhe caía em cima. Corria o mês de Setembro de 1917, e o mundo agonizava entre uma guerra que durava já há três anos, e a gestação de uma revolução prestes a nascer na União Soviética. Nessa altura os Alemães tinham-se apossado de Riga, e a Itália fazia frente ao império austro-húngaro perto de Piave, onde se refugiaram no mês seguinte, e de onde conseguiram por fim rechaçar as tropas inimigas. 

O reino Unido lutava comandado por esse extraordinário coronel que foi T. E. Lawrence, na Palestina, e com o auxílio dos Árabes, aproximava-se de Jerusalém. Os Americanos tinham entrado na guerra e o Brasil preparava-se para declarar guerra à Alemanha e entrar no conflito ao lado dos Aliados.
 
O Corpo Expedicionário Português, combatia na Flandres ao lado dos Aliados e os jovens portugueses embarcavam para as colónias portuguesas tentando defendê-las de algum possível ataque  do inimigo.

 Em Portugal, acontecia a quinta  aparição em Fátima, envolta pelo controvérsia, entre os que acreditavam nos videntes e se deslocavam religiosamente à Cova de Iria, e aqueles que juravam que as aparições, mais não eram do que uma manobra do governo, para desviar a atenção dos Portugueses, que mal preparados para a guerra sofriam pesadas baixas, e ainda dos constantes embarques de jovens para as colónias portuguesas, duas situações que sangravam a Pátria da sua juventude masculina. 

Mas tudo isto passava ao lado de Piedade, uma ignorante mulher, do povo, a viver numa aldeia do interior norte de Portugal,  que nada  sabia, nem sonhava, do que se passava por esse mundo de Cristo. Ela nada conhecia para além da sua pequena casa, numa aldeia encravada entre montes, onde habitava com os filhos, tendo por companhia constante a fome e a miséria. O companheiro partira para o Brasil em busca de uma vida melhor e nunca mais dera notícias. Ela nem sabia se era vivo ou morto. Com ela ficaram os dois filhos, uma menina de dois anos e um rapazito, recém-nascido e muito enfezado, a quem ninguém profetizava uma vida 
longa.
 
Sem emprego, Piedade, percorria as poucas casas da aldeia e de outras aldeias vizinhas, oferecendo-se para trabalhar, na lida da casa, ou no campo, cujos trabalhos não tinham para ela segredos. Meses antes, ela conhecera um homem de uma aldeia vizinha, viúvo, com alguns campos, e que lhe prometera, ajuda para criar os dois filhos em troca de “certos favores”. 
Piedade não sabia nada de métodos anticoncecionais.
 
A falar verdade ela se juntara com o pai dos filhos com apenas dezasseis anos quando a mãe morrera. O pai nunca o conhecera. A mãe nunca lhe falara sobre as coisas da vida. Quando Piedade se juntou com o Joaquim, não foi por amor. Amor era um luxo a que os pobres não chegavam.

 Foi uma espécie de troca. Ele ajudou-a a pagar o funeral da mãe, e ela pagou-lhe com a sua virgindade. Depois, foi ficando por lá, punha comida na mesa, pagava a renda da casa, e ela satisfazia-lhe os apetites sexuais. Que a falar verdade, duravam o tempo necessário para ele se satisfazer. Piedade “embuchou” uma vez e as despesas cresceram. Quando “embuchou” a segunda vez, Joaquim disse que o primo que estava no Brasil lhe mandara uma carta de chamada, que ia embarcar e quando pudesse a mandava buscar e aos filhos.

 Joaquim terá ido mesmo para o Brasil? Quem sabe, se partiu ou se apenas se quis livrar de responsabilidades e despesas. A verdade é que estivesse onde estivesse, nunca mais lhe deu notícias.

 Com duas crianças pequenas, Piedade arregaçou as mangas e foi à luta. Mas a vida era muito difícil, o trabalho no campo bem duro, e mal pago. Ninguém da atual geração, terá uma noção exata do que era a vida em Portugal na primeira metade do século vinte. Um dia inteiro, não chegaria para contar as vezes que ficava sem comer, para dar de comer aos filhos.
 
Por isso aceitou a ajuda do lavrador, para quem trabalhava. Era  viúvo e esse facto dava mais coragem a Piedade. Ela não seria capaz de estragar o casamento de ninguém, E Alberto parecia sincero e bom homem. Por algum tempo ela pode dar aos filhos uma alimentação aos filhos como eles nunca conheceram na sua curta vida, porém quando Alberto soube que ela estava grávida, simplesmente a pôs na rua com os dois filhos e com a indicação de que nunca mais lhe aparecesse na frente. Ela chorou tudo o que tinha a chorar e depois recomeçou a jornada de porta em porta, procurando trabalho. O seu ar franzino não mostrava a força de que aquela mulher era dotada.

 Em Abril de 1918, poucos dias depois do desaire português, na Batalha de La Lys, nasceu o terceiro filho de Piedade. Era um rapazinho pequeno e franzino,  mas saudável. 

Para criar os três filhos, Piedade trabalhou no campo, até deixar de sentir as costas, de tanta dor, lavou roupa no rio até as mãos sangrarem, deitou com a fome, levantou com a miséria, mas não chorou que as lágrimas tinham acabado há muito tempo. 
Um dia, depois que os filhos emigraram em busca de uma vida melhor, deixou-se dormir, e nunca mais acordou.



Fim

12 comentários:

Citu disse...

La historia de muchas mujeres. Te mando un beso.

Pedro Coimbra disse...

A minha prima Alice.
Ela que até foi despedida da Triunfo enquanto o sacana lá ficou.

Fatyly disse...

Ainda hoje há muitas mulheres assim e o que narras é bem verdade!
Gostei!
Beijos e um bom dia

Tintinaine disse...

Ainda me lembro bem desta história de vida que li quando foi publicada pela primeira vez!

Rogério G.V. Pereira disse...

Apenas a morte se compadeceu
quando, sorrateiramente, lhe apareceu

Tristemente belo

Anónimo disse...

Que vida sofrida
Comoveu-me esta história
Abraço e saúde

Manu disse...

O anónimo é a Manu

São disse...

Existiram , existem e existirão sempre, infelizmente, mulheres com vidas duras .


Abraço , bom dia .

Janita disse...

Já passei por cá duas vezes, Elvira, li e reli a história que, se não estou em erro já tinha lido aquando da 1ª publicação, mas sabe, amiga? Fico com o coração tão acabrunhado e triste, que acabo por me retirar sem encontrar palavras.
Há pessoas que vieram ao mundo para sofrer. Não há direito, não é justo! Desculpe, mas não consigo dizer que gostei...

Um abraço grande.

Olinda Melo disse...

Uma história de vida sofrida.
O mundo em desatino mas dentro
de cada um outro mundo de
sofrimento. Em especial para as
mulheres.

Abraço
Olinda

Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Que história de vida esta e quantas Mulheres como Piedade não terão comido o pão que o diabo amassou.
A Elvira revela, mais uma vez, neste magnífico conto o quanto é uma excelente contista e escritora.
Parabéns, Amiga!
Gostei muito.
Beijinhos e saúde.
Emília

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Boa tarde Elvira.

Uma história de vida tão triste e tão amarga.
Ainda devem existir algumas Piedade assim por esse mundo além.
Um conto muito bem escrito.

Bom fim de semana.
Um beijo
:)