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9.7.24

CAROLINA

 Reedição



A mulher que sentada na beira da cama se  entregava à tarefa de entrançar a sua farta e negra cabeleira, não teria mais de trinta  anos, embora pequenas rugas, a fizessem parecer mais velha.
Era muito bonita, talvez um pouco alta demais para o comum das mulheres portuguesas, mas muito bem proporcionada. Muito morena de cabelos e olhos negros. Na aldeia quando era menina, e as outras crianças por qualquer razão se zangavam, chamavam-lhe farrusca por causa do seu tom de pele. Ela crescera com esse desgosto, mas agora aquela cor começava a estar na moda e não raras vezes ela notava os olhares de inveja que lhe lançavam.
Lançou um breve olhar sobre o berço onde um bebé dormia tranquilamente. Hoje era um dia especial. O menino ia ser batizado. Não haveria festa, o dinheiro era escasso, a vida era muito difícil a meio do século XX. Mas para ela, o dia em que o seu menino ia ser apresentado ao altar e purificado com o sacramento do batismo, seria sempre um dia especial.
Acabou de entrançar o cabelo e enrolou a trança no alto da cabeça prendendo-a com alguns ganchos.
Alisou a saia rodada que lhe chegava a meio da perna, dobrou um velho pedaço de lençol impecavelmente limpo em triângulo como se fosse um lenço, dobrou outro pedaço igual de modo a ficar como uma tira que colocou por cima do anterior, ficando assim com as fraldas preparadas para mudar o menino quando ele acordasse. Debaixo da cama retirou uma caixa que colocou em cima da mesma. Lá dentro repousava o vestidinho de crepe azul que a madrinha entregara na véspera para o batizado.
 Foi até à cozinha, pegou as malgas do pequeno-almoço que tinham ficado a escorrer e guardou no armário. A cafeteira de alumínio foi pendurada na grade de madeira na parede.
A casa era pequena, apenas o quarto e a cozinha, mas apresentava-se limpa. No quintal, separada da casa alguns passos, uma pequena divisão, com uma sanita e um chuveiro. Claro que era aborrecido que não estivesse ligada à casa, especialmente de noite e de inverno, mas ainda assim Carolina achava que tinha muita sorte pois tinha água canalizada, coisa, que na maioria das casas, daquele pátio não existia. Não tinha eletricidade, mas nunca faltara o petróleo para o candeeiro.
Sentou-se de novo na beira da cama, junto ao berço do filho e enquanto aguardava o marido que fora ao barbeiro à Telha, deixou que as lembranças saltassem da gaveta das memórias, onde ela as trancara.
Carolina era a sexta filha de um casal já entrado na idade e que já tinha cinco rapazes entre os vinte e os nove anos. Fruto de um descuido do pai,(1)a mãe que julgava estar na menopausa só se apercebeu da gravidez quando já era demasiado tarde para a “pôr a estudar”.(2)
A mãe falecera poucos meses após o seu nascimento, vítima de complicações surgidas pós parto e o pai culpava-a pela morte dela. Os irmãos não sabiam o que fazer com ela e não fora uma vizinha tomar conta dela, talvez não tivesse sobrevivido. Até porque os tempos eram muito difíceis, a segunda guerra mundial  ainda não tinha acabado e muitos dos bens essenciais eram racionados. Não fora por isso, uma criança desejada e muito menos amada.
Mas como diziam na aldeia, “mal de quem vai, quem cá fica, trambolhão daqui, trambolhão dali, tudo se cria”
Quando Carolina entrou na adolescência mostrava já que iria ser uma bela mulher, e aí começou nova luta, já que os irmãos, diziam que ela estava uma bela "franguinha" e o mundo estava cheio de gaviões. E não a deixavam pôr o pé fora de casa, e ela tinha ânsias de liberdade. Entretanto o pai faleceu, os dois irmãos mais velhos casaram e foram viver para a cidade grande, o terceiro casara e fora viver com o sogro na aldeia vizinha. Na velha casa de família restava ela e um dos irmãos, já que o mais novo emigrara para o Brasil, na esperança de um futuro mais risonho. Farta da vida na pequena aldeia, escrevera aos dois irmãos, pedindo para ir viver com eles na cidade, mas não recebeu resposta.
Então começou a juntar algum dinheirito, do que o irmão lhe dava para as compras da casa, e um belo dia de Verão fugiu de casa rumo a Lisboa. Acabara de fazer dezasseis anos mas o seu corpo era já o de uma mulher.


CONTINUA


Como vêm esta história é uma reedição. Foi publicada em 2014. É uma história de outros tempos,  pequenina só dois posts. Espero que gostem.

(1) Naquela época o único meio que os casais conheciam de evitar uma gravidez era o coito interrompido. Milhares de crianças nasciam porque o homem não era muito hábil na hora, e quando isso acontecia as mulheres diziam que a gravidez era um descuido do marido.

(2) "pôr a estudar" era a maneira como diziam de quando uma mulher provocava a si mesma um aborto, utilizando algumas mezinhas caseiras cujo preparo, passava de mãe para filha. 

10 comentários:

chica disse...

Lindo conto,rico em detalhes e descrições sempre bem feitas, o que é a tua marca...
Vamos aguardar o final! beijos, chica

Joaquim Rosario disse...

Bom dia
A nossa autora de contos está de volta.

JR

Tintinaine disse...

Não me recordo de ter lido a história da Carolina e se li não perco nada em a reler!

Rogério G.V. Pereira disse...

Sim, Carolina, oh-ih-oh-ai
Sim, Carolina, oh-ai, meu bem
Sim, Carolina, oh-ih-oh-ai
Sim, Carolina, oh-ai, meu bem

Expresivo conto
a remeter-me
para a popular canção
vejamos a continuação

Abraço

Janita disse...

Ainda com um sorriso afivelado no rosto em virtude da saia da Carolina do Rogério, que tinha nela um lagarto pintado, manifesto o meu contentamento pelo Conto de dois capítulos. Eu gosto destes contos curtos, não se perdem tanto com pormenores. Vão directos ao ponto!

Só a Elvira saberá - pelos comentários em 2014 - se o li ou não.
Não tenho ideia de o ter lido, mas não garanto.

Um abraço, aguardando o epílogo no próximo episódio.

Ailime disse...

Boa tarde Elvira,
Não conhecia ainda este conto!
Estou a gostar! Tempos difíceis aqueles.
Vamos ver como é o desfecho.
Beijinhos e saúde.
Emília

lis disse...

Ah, que tempo não acompanhava uma história boa ,Elvira
Não lembro de ter lido ,mas sempre lia tudo por aqui.
Ando cada dia que passa mais esquecida.
Seus contos são bons demais_ os detalhes fazem a gente vivenciar
os acontecimentos ,quase reais. Espero voltar aos proximos.
Um abraço, Elvira

Citu disse...

Me g usto la historia. Te mando un beso.

Pedro Coimbra disse...

A Catarina não se chama Carolina porque uma das minhas cunhadas se chama Carolina.
Nome lindo.

Duarte disse...

Sabes o muito que agrada à turma a tua capacidade narrativa. Não pares.
Grande abraço de vida nosso.