As lendas são como os bons vinhos: quanto mais velhos, mais saborosos. Assim é o caso da lenda da vila da Sertã, que remonta ao ano 74 antes de Cristo, quando Sertório, esse romano expulso de Roma por desavenças políticas e adorado pelos Lusitanos com justificado acerto, fundou nos Hermínios mais uma pequena povoação e nela começou a edificar um castelo. Não lhe dera ainda nome seguro.
Mal começara a povoar-se e as preocupações de ordem militar nesse tempo eram tremendas. As lutas sucediam-se. E tudo porque a Lusitânia era muito cobiçada e Sertório tinha o ódio de Sila, adversário de Mário, por quem o caudilho romano combatera. Então Sila jurara não dar descanso a Sertório nem às gentes lusitanas. Preparou uma expedição e enviou-a, comandada pelo pretor Lúcio Domício. Nesse encontro foram os romanos derrotados. Exasperado, Sila enviou Manilo.
De novo Sertório mandou reunir forças, colocando à frente delas o seu questor Hirtuleio. E em breve os homens de Sila eram derrotados. A raiva de Sila aumentou mais ainda; e logo urdiu nova trama, que ao longo de vinte e um séculos se foi envolvendo nos fumos luminosos da Lenda…
A passo pesado, caindo sobre a terra seca, o exército de Sertório levantava no ar nuvens de pó. Embora vitorioso, o regresso não era feito em ritmo de alegria. Os homens vinham cansados e desejosos dos dias de folga que o chefe lhes prometera. Sonhavam já com as suas casas, as suas famílias e a recompensa que lhes fora anunciada.
A meio da hoste, um rapaz alto, de olhar vivo e ombros largos, destacava-se dos outros. Era bastante moreno e dir-se-ia o menos cansado de todos. Olhava com evidente interesse para as casas dessa pequena aldeia que iam atravessando. De súbito, soou um grito de alegria, pronunciando um nome:
— Marcelo!…
O rapaz olhou na direcção do chamamento. Uma jovem, também alta e de ombros bem lançados, corria já ao seu encontro.
— Marcelo! Finalmente chegaste!
Sem parar, ela enlaçou-lhe a cintura e continuaram caminhando.
— Celinda!
Ela falou-lhe quase ao ouvido:
— Soube que as tropas regressavam vitoriosas e vim ao teu encontro.
Sempre caminhando com a jovem a seu lado, Marcelo declarou com entusiasmo:
— Sertório é um grande chefe!
Ela teve um trejeito de amuo.
— É possível que o seja. Mas estou farta de tantas lutas! Quando é que ele te deixa descansar?
— Talvez agora. Vou ser apresentado ao próprio Sertório!
— Porquê? Nunca lhe falaste?
— Quem nos comandou, por ordem de Sertório, foi Hirtuleio. E ele vai falar-lhe de mim.
— De ti? Porquê?
— Depois te explicarei. Agora vai para casa. Dentro de poucos dias estarei de volta.
— Diz-me só se o que vão dizer de ti é bom ou é mau.
— É bom.
— Fizeste alguma coisa digna de distinção honrosa?
— Parece que sim.
Ela quase o abraçou.
— Meu querido herói! Tinha já tantas saudades tuas!
— Também eu. Mas agora volta para casa. Não te quero misturada com todos estes famintos de caras bonitas…
Celinda riu alto, demonstrando a excitação que a dominava. Ele insistiu:
— Vai. Juro-te que não demorarei.
E desembaraçando-se carinhosamente da jovem que lhe passara o braço pela cintura, seguiu sempre no seu posto, perdendo-se numa nuvem de pó.
Celinda ficou ainda por uns momentos parada, vendo o noivo sumir-se no horizonte. Depois, com o coração a pular de alegria, voltou para casa na mesma corrida com que viera esperar Marcelo ao caminho.
Alguns dias passaram. Celinda contava as horas numa impaciência crescente. Pensava com certo desespero: «Se Marcelo está vivo e são, porque não vem ele ter comigo…?» Porque não sentia o desejo que dela se assenhoreara, de estarem juntos sob o mesmo tecto?… Atormentada com uma ausência que lhe parecia inexplicável, deitava as culpas a Sertório.
E imaginava já o seu Marcelo a caminho de novos combates…
Porém, dez dias depois da sua chegada, o jovem montanhês entrava em casa da bela Celinda. Ao vê-lo, a jovem temeu ser vítima de uma alucinação.
— És tu, realmente, Marcelo?
— Sim, minha Celinda, sou eu!
— Até me parece mentira!
— Porquê?
— Receei que esse homem não te deixasse voltar.
— Que homem?
— Sertório!
Marcelo rodeou-lhe os ombros com um dos seus braços fortes.
— Não digas tolices! Se soubesses o que Sertório faz por nós…
Ela encarou o noivo, cheia de curiosidade.
— Por nós?… E que fez ele?
O jovem sorriu contente.
— Deu-me um prémio em dinheiro, por o ter ajudado a pôr em prática um dos seus planos de combate, e ainda fez mais…
Ardendo no desejo de saber o que se passara, ela quase suplicou:
— Conta-me tudo, Marcelo!
— Pois bem: deu-me dinheiro e confiou-me a guarda do castelo desta povoação!
Os olhos grandes de Celinda abriram-se mais, num espanto.
— Tu?…
— Sim, eu! Ou antes: nós.
— Nós?
— Claro! Vamos casar…
Num ar gaiato, Celinda lançou os braços em torno do pescoço do noivo.
— Marcelo! Tudo o que me contas parece-me um sonho! Habituei-me todo este tempo em que estiveste longe a conversar contigo em pensamento.
Ele riu.
— E como fazias isso?
Celinda encolheu os ombros.
— Ora! Fazia perguntas e dava eu própria as respostas.
— Assim, não houve ocasião para desavenças…
Ela tornou-se gaiata.
— Enganas-te: andávamos sempre à bulha…
— Porquê?
— Porque tu só te interessavas por Sertório! Só ele era o teu senhor…
— Ciumenta!
Celinda pôs-se subitamente séria.
— Ouve, Marcelo. Tens a certeza que ele não voltará com a palavra atrás?
O jovem soldado olhou-a de frente.
— Celinda! Lembra-te que Sertório está aqui porque nós, Lusitanos, o chamámos para que nos ajudasse a expulsar os Romanos. E ele veio de África e trouxe com ele o seu exército. Sertório luta por nós, compreendes? Confia nele, Celinda!
A jovem baixou a cabeça, não plenamente convencida. O noivo tornou:
— Porque não gostas dele?
A resposta veio rápida:
— Porque é romano!
Marcelo meneou a cabeça.
— Um romano que expõe a vida por nós… é um amigo!
Celinda respirou fundo. Sentia que a sua atitude desagradava a noivo. Tentou encorajar-se.
— Talvez tenhas razão. No fundo, devo aborrecê-lo apenas porque me afasta de ti.
Marcelo voltou a sorrir.
— Mas agora é ele quem nos aproxima. Tens de fazer-lhe essa justiça.
E o resto da tarde gastaram-no os jovens enamorados a fazer projectos para o futuro.
Celinda e Marcelo casaram-se. No castelo que o jovem guerreiro lusitano guardava, reinava a paz e a alegria. Celinda era uma cozinheira de grande fama e Marcelo adorava ver os seus melhores amigos sentados à sua volta, à hora das refeições. A alegria deles contagiava-o. E todas as frases elogiosas dirigidas a Celinda ele as tomava cor orgulho de um esposo apaixonado.
Ora, certa vez, Celinda esperava Marcelo e alguns amigos para a refeição do meio-dia, quando um desses amigos chegou correndo e ofegante perguntando por Marcelo. Aflita, a jovem indagou:
— Que há? Vens coberto de suor e pó!
O interpelado fechou os punhos como que indeciso da atitude a tomar e respondeu apenas:
— Preciso falar com o teu marido.
Então, resoluta, Celinda abanou-o por um braço.
— Que aconteceu? Não me escondas nada!
O recém-chegado persistiu no seu propósito.
— Preciso falar com Marcelo. Diz-me onde o poderei encontrar.
Celinda mordeu os lábios para não gritar a sua impaciência. Mas vendo que Marcelo se aproximava, indicou-o:
— Vem ali.
O homem que viera de fora precipitou-se sobre o amigo.
— Marcelo! Os teus homens esperam ordens. Os romanos voltaram a atacar-nos!
Subitamente pálido — única nota de emoção no rosto do valente guerreiro — Marcelo indagou com aparente serenidade:
— Onde estão agora?
— No vale. Mas dirigem-se para aqui!
— Reúne os melhores guerreiros! Vamos sair ao seu encontro!
O outro admirou-se.
— Sair? E se nos apanham nos desfiladeiros?
— Havemos de os subjugar, como temos feito sempre. O que é necessário, é evitar que tomem o castelo.
— E as mulheres? Onde ficam?
— Aqui reunidas. Celinda tomará conta delas.
— Celinda?
Mas a jovem castelã, já ao lado do marido, mostrava uma serenidade semelhante à dele.
— Não receies. Se esses malvados ousarem subir até aqui, encontrarão uma mulher capaz de os ensinar!
Marcelo sorriu-lhe para a encorajar, embora no íntimo estivesse mais inquieto do que desejava. Sacudiu a cabeça num gesto quase imperceptível, como a afastar os pensamentos desencorajadores que tentavam assediá-lo. Tomando uma decisão brusca, exclamou:
— Vamos, não há tempo a perder! É necessário não dar ocasião a que o inimigo saia do vale!
Reuniu os seus melhores homens, teve um leve gesto de despedida para a sua jovem esposa e encetou a descida com os cuidados requeridos. Porém a pouco mais de meia penedia começaram a surgir as emboscadas. Os romanos haviam conseguido deixar o vale e subiam a caminho do castelo. O combate tornou-se duro e incerto.
Embora os homens de Marcelo combatessem com mais brio e saber, o certo era que o número de romanos se mostrava sensivelmente maior. As pedras choviam de um e outro lado, caindo com fragor e rolando juntamente com corpos ensanguentados. Jaziam lado a lado soldados lusitanos e soldados romanos.
A vitória parecia inclinar-se para o lado lusitano quando Marcelo foi gravemente ferido. Visto o caso por vários contendores dos dois exércitos em luta, o medo acobardou os soldados de Marcelo, dando novas forças aos romanos. E a subida da montanha para o castelo foi reencetada.
Quase sem forças pela perda de sangue, Marcelo falou ao seu lugar-tenente:
— Reúne os homens… e segue… para o castelo… que deves defender… até ao fim…
O amigo do bravo castelão mostrou-se inquieto.
— E tu? Não posso deixar-te aqui… tão ferido…
Quase sem fôlego, Marcelo insistiu:
— Não penses… em mim… corre… passa à frente deles… e avisa Celinda…
O jovem lusitano sossegou o seu chefe.
— Irei à frente! Mas antes destacarei dois homens para que te transportem.
E sem mais escutar, porque o tempo urgia, o lugar-tenente de Marcelo numa ordem rápida, ordenou que transportassem o chefe e seguiu por atalhos, escondendo-se sem dar luta, a fim de chegar lá acima primeiro que o inimigo…
Quando Celinda avistou o lugar-tenente do marido, correu para ele num sobressalto.
— Onde está Marcelo?
Pálido e trémulo, o jovem não escondeu a sua aflição.
— Marcelo foi ferido. Dois dos nossos homens vão trazê-lo para aqui.
Gritando, sem dominar os nervos, ela perguntou:
— Porque o abandonaste?
— Foi ele que me pediu para vir à frente avisar-te de que os romanos não tardam!
Celinda abriu os seus lindos olhos numa expressão que a tornou quase feroz. A sua voz gritante tornou-se quase rouca.
— Pois que venham! Que venham os meus inimigos! Eu os receberei!
Era tal a expressão da jovem castelã, que o amigo de Marcelo sentiu receio da sua razão. E suplicou:
— Acalma-te, Celinda! Preciso que estejas bem lúcida para me ajudares a aguentar o castelo até que cheguem reforços.
Ela perguntou então:
— É esse o desejo de Marcelo?
— É.
— E donde esperas reforços?
— Mandamos um emissário a Hirtuleio.
— E o meu marido conseguirá chegar até aqui?
— Ninguém o sabe!
Ela cerrou os dentes, rangendo-os. Depois deixou sair uma praga:
— Malditos romanos!
Ficou um momento parada, como se tudo estivesse dormindo à sua volta. Depois sorriu. O amigo de Marcelo assustou-se.
— Celinda, por que sorris? Sentes-te bem?
Ela sorriu mais ainda.
— Não te preocupes comigo! Vai para o posto indicado pelo teu chefe. Eu ficarei no meu! Estava a preparar a refeição que comemoraria a vitória. Afinal, são eles, os meus inimigos, que chegam!
E numa voz quase surda:
— Pois que venham! Dar-lhes-ei do nosso almoço!
Julgando-a louca, o lugar-tenente de Marcelo mostrou-se aflito.
— Celinda! Que estás a dizer?… Marcelo ordenou que não os deixássemos entrar!
Ela teve um risinho seco, de semilouca.
— Não queres que eles entrem? Pois olha para ali! Não os vês, tu? Já chegaram! Corre para o teu posto, que eu vou para o meu.
Como ela se afastasse, o jovem gritou-lhe:
— Que vais fazer, Celinda?
A mulher ordenou com firmeza.
— Abre essa porta!
Ele gritou-lhe mais:
— Estás louca!
De facto Celinda parecia a personificação da própria loucura. Ria.
— Se não a abrires, eles acabarão por entrar mesmo sem pedirem licença…
— Morreremos primeiro!
— Nunca sem me vingar!
— Que vais fazer?
— Defender o castelo até ao fim e lavar no sangue deles o sangue de meu marido!
E, pegando na enorme sertã cheia de azeite a ferver onde fritava ovos, gritou ainda:
— Abre a porta! O azeite para fritar os ovos poderá fritá-los a eles!
E conta então a lenda velhinha que a jovem esposa de Marcelo, com a força e destreza que lhe davam o ódio e o desejo de vingança, se dirigiu furiosamente ao encontro dos romanos. Um a um, à medida que entravam no castelo, deitava-lhes para os olhos o azeite a ferver, cegando-os ou matando-os. Quando o azeite terminou, foi com a própria sertã ao rubro que ela deu cabo do resto dos seus inimigos, sem que estes tivessem tempo de compreender bem o que estava a acontecer.
Alarmados pelo halo de morte que se fazia à volta dessa estranha mulher, os outros assaltantes afrouxaram o ímpeto e deram tempo a que os lusitanos se recompusessem, pondo-os depois em debandada.
Por este feito heróico de uma mulher lusitana que defendia o seu território, foi dada à povoação o nome de Sertã, como lembrança de tão retumbante vitória… alcançada mercê duma grande sertã em brasa.
Ficha de Património Imaterial | N.º de inventário: STGL_011 | Domínio: Expressões orais e escritas | Categoria: Lendas | Denominação: Lenda da Celinda | Autor: Desconhecido | Fonte bibliográfica: Gentil Marques, Lendas de Portugal, volume II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997, pp. 69-75 | Contexto social: Habitantes da freguesia da Sertã | Contexto territorial: Local – Freguesia da Sertã | Concelho – Sertã | Distrito – Castelo Branco | País – Portugal