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9.9.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS BOTAS... DO ESTADO. PARTE III


O Manuel e sua esposa no dia do casamento.





 Para ir ver a jovem, Manuel tinha que atravessar o rio e na Seca havia sempre um bote e um par de remos disponíveis para o fazer. Mas às vezes o mau tempo fazia perigar as visitas. Como naquele dia, 20 de Janeiro de 1946, noite de chuva forte, e ventos intensos, em que ao regressar com o Aires, que também tinha ido ver a namorada, perderam os remos, e Manuel mergulhou várias vezes, perante o terror do amigo, até os conseguir apanhar e regressarem assim com dificuldade, mas sãos e salvos. O casamento fora marcado para Novembro, e embora faltasse pouco tempo, a Manuel parecia que ele tinha parado. O barquito e os remos, não descansavam um só dia, da travessia entre a Seca da Azinheira e a Seca do Seixal. A par da sua ansiedade, reinava o medo. Manuel tinha que tirar os documentos para se casar, e como era desertor, pensava que podia ser preso em qualquer altura.
Mas os documentos vieram sem problemas e o jovem aquietou o seu coração. 
Finalmente, Novembro chegou, e com ele o tão ansiado dia do casamento. A 9 de Novembro, na Igreja de Santa Cruz, no Barreiro, o Padre Abílio Mendes, casava o Manuel com a sua amada Gravelina.
A partir desse dia, a mulher passou a trabalhar na Seca da Azinheira, e o bote e os remos foram dispensados.
Sem casa, nem dinheiro para a pagar, Manuel vivia na malta dos homens e a mulher na malta das mulheres.



                                           foto minha


A malta, era um enorme edifício que existia na seca, para o pessoal que todos os anos, era recrutado nas aldeias do norte para a safra de bacalhau, que decorria entre Setembro e finais de Março, princípios de Abril. Este pessoal, mesmo sendo constituído muitas vezes, por marido e mulher, não podia, segundo a mentalidade de outrora, viver junto durante todo o tempo da safra. Logo, na seca existiam duas maltas, uma para os homens e outra para as mulheres. As regras eram claras, os casais, podiam fazer as refeições juntos, num ou noutro local, mas antes das onze horas da noite, teriam que estar nas suas respectivas maltas, sob pena de o vigia encerrar as portas e terem que dormir ao relento.
Para dar asas à paixão, os casais procuravam um pinhal que havia na seca, situado numa ribanceira, que criava zonas ocultas aos olhares de quem por ele passava, ou o canavial, que ladeava a vedação da seca, até à Telha.
 Usavam um nome de código que era: "Aviar a caderneta" Consta, que a pessoa que vos está a contar esta história, é filha de um "aviamento de caderneta". Em 47, com o aproximar do final da safra, e com a mulher grávida, Manuel deita contas à vida, sem saber como evitar a ida da mulher para casa da sogra, na Beira Alta.
Quer-a junto de si, mas de Março a Setembro a Seca, não tem trabalho a não ser para os que trabalham na sua manutenção. Logo a mulher não poderá ficar na malta das mulheres, e o que ele ganha, não dá para alugar uma casa.

                                               

17 comentários:

Odete Ferreira disse...

Aplausos! Parece que estou a ler uma história que caberia num romance de época. Ainda tenho alguma lembrança de pessoas que vinham de outros locais para a apanha da azeitona e que "viviam" em condições miseráveis. Tenho também presente o relato da escravidão de pessoas que iam para as cegadas no Alentejo, através da leituras de obras.
Bom partilhares estas realidades.
Bjo :)

Odete Ferreira disse...

Por curiosidade, aderi ao google+. Arrependi-me porque me mudou o nome (A EU morreu) e agora apareço a comentar com o meu nome e com o símbolo do google+...

Pedro Coimbra disse...

Parece impossível que se tenham vivido estes períodos, estas mentalidades.
E não foi assim há tanto tempo....

Unknown disse...

Momentos de grande ternura mas que naquele tempo eram vividos a medo.
Um avivamento da caderneta.
Aqui houve outro igual mas sem essas características dado que fui o terceiro filho.
Tempos que ficam mais pobres sem as cores da sua escrita e das recordações ainda vivas.

Francisco Manuel Carrajola Oliveira disse...

Um belo texto retratando muito bem uma época bastante difícil neste país.
Gostei daquela expressão "Aviar a caderneta".
Um abraço e continuação de uma boa semana.

chica disse...

Um lindo e bem interessante relato e tive que rir do aviamento da caderneta,rs...Beijos, tudo de bom,chica

Edum@nes disse...

Ele rapaz, ela menina,
casaram dia 9 de Novembro
o Manuel e a Gravelina
já foi há tanto tempo!
Dessa eu, ainda, não sabia,
os homens separados dos mulheres
havia mais tristeza do que alegria
por causa das leis sem preces.

Por isso havia mais penúria,
por que não havia liberdade
como o também era a ditadura
Seriam as leis do disparate!

Tenha um bom dia amiga Elvira, um abraço.
Eduardo.

Berço do Mundo disse...

Amiga Elvira, que felicidade saber dos pormenores da história dos seus pais. Foi um deles que lhe contou ou foi construindo a narrativa aos retalhos?
Estou a gostar muito.
Beijinhos
Ruthia d'O Berço do Mundo

Mariangela l. Vieira - "Vida", o meu maior presente. disse...

Que bom Elvira, que você é fruto deste lindo e emocionante amor no
aviamento da caderneta!
A tua história é belíssima, seus pais, como os meus também, uma benção de pais!
Um grande abraço, e uma boa semana!
Mariangela

Zé Povinho disse...

Essa de "aviar a caderneta" é nova para mim...
Abraço do Zé

Anete disse...

Elvira, é bom estar novamente por aqui e ler sua narração! Uma hostória vívida e admirável!

Uma boa noite... Abraços

aluap disse...

Sabia que antes do 25 de Abril havia nas escolas divisão entre géneros, mas não sabia que nos trabalhos como a safra de bacalhau havia!
Antigamente era usual os beirões deslocarem-se ao Alentejo para a ceifa, os chamados "ratinhos", onde muita gente da minha terra também participou, inclusivé a minha avó paterna, pelo que fico a pensar se também por lá havia um edifício para a malta das mulheres!

Abraço e continuação de uma boa semana.

Janita disse...

Tempos difíceis esses!
Excelente a narrativa de uma história que lhe deve ter sido contada pelo senhor seu Pai, suponho.

Aguardo a continuação.

Um abraço

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Ando sempre atrasada, e não queria ler a Parte IV antes desta, para pegar "o fio da meada"...são relatos assim, muito interessantes, de vida tão atribulada, quanto a de sua família, que nos prende atenção e não se deve perder nem um fato. Lá em casa tinha um fogareiro semelhante ao que ilustra a postagem. Vou seguindo....

Rosemildo Sales Furtado disse...

Estou gostando da história. A cada parte que leio, fica mais interessante. Lembrei-me de que, antigamente, o aviamento de caderneta era realizado de forma muito discreta, enquanto que hoje, além de não haver código, ele é realizado abertamente e, às vezes, de forma muito vulgar.

Abraços,

Furtado.

Dorli Ramos disse...

Nossa Elvira!
Poxa, recém casados, já provaram do mel não iriam aguentar.
Que regime duro, mama mia.
Beijos
Dorli Ramos

Zilani Célia disse...

OI ELVIRA!
UM TEMPO DURO, PERCEBE-SE.
-http://zilanicelia.blogspot.com.br/