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20.9.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS... DO ESTADO. PARTE VII


                                              foto da net

 Ao mesmo tempo que mandava um vigia avisar a mulher do Manuel, o Capitão telefonou para o posto no Barreiro, para saber do que era acusado, um homem que levava a vida a trabalhar, e não se metia em escaramuças nem políticas. Foi então informado, de que a ordem viera de Lisboa, com a acusação de que Manuel era um desertor.
 Parece que à época, os mancebos aptos para a tropa, não ficavam livres depois de ela acabar, mas passavam a uma situação de reserva que só terminava aos 45 anos. Manuel fizera 44 em Abril. Ora todos os anos, eram vistos os processos, de todos os homens que cumpriram tropa e estavam nessa idade. E encontraram a caderneta militar do Manuel, que lhe devia ter sido entregue quando da passagem à reserva. Daí a investigarem o tempo de tropa dele foi um passo. E logo descobriram a deserção. E em consequência disso, Manuel estava agora preso e ia ser mandado para Lisboa. Precisamente para o quartel de Caçadores 5 em Campolide, de onde tinha desertado em 1941.
Uma vez no quartel, foi-lhe dito que teria de cumprir os quase dois anos de tropa que lhe faltavam quando desertou. Como porém em Abril de 63, faria 45 anos, e passava à reserva, ficaria na tropa até essa data.
Dá para imaginar o sofrimento do Manuel? Os jovens militares, gozavam com ele, mal acabava a formatura. Não estava em prisão no quartel. Estava na tropa, embora sem licença de saída.
Recebia a visita da mulher no quartel, e mortificava-se com a situação da família, agora sem o seu ordenado, que era o único na casa até à próxima safra, e ainda obrigada a gastar dinheiro em viagens para as visitas. Chorava todos os dias. E tudo por causa de umas malfadadas botas da tropa, que não pudera pagar ao estado.
Trabalhador humilde, sempre pronto a qualquer trabalho, mesmo que nada tivesse a ver com o armazém da lenha, alegre e bem-disposto, apesar de todas as dificuldades, o Manuel granjeara a simpatia, não só de todos na Seca, como do próprio patrão, que já por algumas vezes tinha requisitado o Manuel para tratar do jardim de sua residência.
Boa pessoa, sabendo reconhecer os méritos do Manuel, o patrão deu ordem ao gerente da Seca, o Capitão Aníbal, para manter o ordenado do Manuel enquanto ele estivesse ausente. Não satisfeito com isso, o patrão, usou de toda a sua influência, (e se era influente a família Bensaúde) para retirar o Manuel daquela agonia. E foi por isso que ele, voltou à liberdade no início de Setembro, bem a tempo de dar um beijo à filha no dia dos seus 15 anos.

FIM


Nota: 

Como disse no primeiro episódio, esta história é real.
O Manuel foi o meu pai, e a menina que nasceu depois duma noite de trovoada, sou eu. Tudo o que escrevi sobre a Seca é  (era) real. A Seca foi desactivada em 30 de Dezembro de 1999. Hoje mantém-se aberta apenas para visitas de estudo. Parte do complexo, foi declarado património histórico. Para o restante foi projectado um condomínio de luxo, com campos de ténis, cavalariças e outras "coisitas" que fariam dele único na zona. Prestes a ser aprovado, eis que o projecto da nova ponte Barreiro Seixal, cai precisamente neste local. O condomínio ficou sem efeito, e por causa da crise, a ponte Barreiro Seixal, ficou em "águas de bacalhau".  A antiga Seca, mantém-se aberta apenas a visitas de estudo. 



13.9.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS BOTAS... DO ESTADO. PARTE V


Mulheres a estenderem bacalhau na Seca da Azinheira. O edifício do lado direito, é a malta dos homens. Foto de Eduardo Martins.



O casarão, como ele lhe chamava, era um enorme barracão assente em pilares de cimento, com 1m de altura, para que a água passasse por baixo nas tempestades de Inverno, ou nas marés vivas de Agosto, pois ficava bem na margem do rio Coina, junto ao portão de acesso à Seca, pelo pessoal do Barreiro, que para encurtar caminho, vinham pela trilha da Caldeira do Alemão. Tinha quatro grandes quartos com portas e chave, mas apenas um tinha janela para o exterior. E um salão de 11 m de comprimento por 4 m de largura. Contrariamente aos quartos, este salão não tinha nenhum forro por baixo do telhado, pelo que não raras vezes pingava lá dentro quando chovia. Na frente duas enormes janelas para o exterior. Viradas para a Seca, cercada a toda a volta por arame farpado. A meio do salão uma grande mesa comprida, e de cada lado um banco corrido de madeira. A mesa era utilizada pelos quatro casais. A um canto do salão, sobre uma base de cimento, dois tijolos, com uma grelha de ferro em cima servia de fogão. A luz era fornecida pelos candeeiros a petróleo, e a água, as mulheres iam  buscá-la ao chafariz da Telha, em bilhas de barro, que transportavam à cabeça, sobre uma rodilha, ou sogra. Entre o barracão e o chafariz uns quinhentos metros bem medidos. 



                                      Candeeiro a petróleo
                                           

Os casais davam-se bem, eram colegas e amigos, gente da mesma terra, que migrara para ali, em busca de trabalho e uma vida melhor. Todos eram vigias, excepto o Manuel que era lenhador, por isso tinham trabalho todo o ano.
A primeira obra do Manuel no casarão, foi a construção de um forno, junto ao fogão, para que as mulheres pudessem cozer pão.
Se por um lado não havia grande privacidade, por outro havia sempre uma mulher disponível para cuidar dos miúdos, dois rapazes do Aires, um casal do António, mais um rapaz do Carlos, e a menina do Manuel. Em Setembro, regressam os bacalhoeiros e recomeça a labuta de mais de 400 pessoas, que na Seca, descarregam o bacalhau e iniciam todo o processo de cura que expliquei noutro conto. É a  festa do reencontro, entre os que partiram para a aldeia, e os que ficaram.
Pouco tempo depois, o António muda-se com a mulher e os filhos para uma casa na Telha. Mais longe do trabalho, mas mais perto da mercearia, da escola, da padaria… E melhor que isso, com electricidade em casa e o chafariz à porta. No Barracão ficou um quarto vago que foi ocupado pelos dois filhos do Aires. No verão, seguinte, o Carlos muda-se com a família para a seca de Alcochete, onde tinha irmãos a trabalhar, e pouco depois, o Aires, muda-se para uma das casas existentes na seca. No “casarão” ficavam agora apenas o Manuel e sua família.


9.9.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS BOTAS... DO ESTADO. PARTE III


O Manuel e sua esposa no dia do casamento.





 Para ir ver a jovem, Manuel tinha que atravessar o rio e na Seca havia sempre um bote e um par de remos disponíveis para o fazer. Mas às vezes o mau tempo fazia perigar as visitas. Como naquele dia, 20 de Janeiro de 1946, noite de chuva forte, e ventos intensos, em que ao regressar com o Aires, que também tinha ido ver a namorada, perderam os remos, e Manuel mergulhou várias vezes, perante o terror do amigo, até os conseguir apanhar e regressarem assim com dificuldade, mas sãos e salvos. O casamento fora marcado para Novembro, e embora faltasse pouco tempo, a Manuel parecia que ele tinha parado. O barquito e os remos, não descansavam um só dia, da travessia entre a Seca da Azinheira e a Seca do Seixal. A par da sua ansiedade, reinava o medo. Manuel tinha que tirar os documentos para se casar, e como era desertor, pensava que podia ser preso em qualquer altura.
Mas os documentos vieram sem problemas e o jovem aquietou o seu coração. 
Finalmente, Novembro chegou, e com ele o tão ansiado dia do casamento. A 9 de Novembro, na Igreja de Santa Cruz, no Barreiro, o Padre Abílio Mendes, casava o Manuel com a sua amada Gravelina.
A partir desse dia, a mulher passou a trabalhar na Seca da Azinheira, e o bote e os remos foram dispensados.
Sem casa, nem dinheiro para a pagar, Manuel vivia na malta dos homens e a mulher na malta das mulheres.



                                           foto minha


A malta, era um enorme edifício que existia na seca, para o pessoal que todos os anos, era recrutado nas aldeias do norte para a safra de bacalhau, que decorria entre Setembro e finais de Março, princípios de Abril. Este pessoal, mesmo sendo constituído muitas vezes, por marido e mulher, não podia, segundo a mentalidade de outrora, viver junto durante todo o tempo da safra. Logo, na seca existiam duas maltas, uma para os homens e outra para as mulheres. As regras eram claras, os casais, podiam fazer as refeições juntos, num ou noutro local, mas antes das onze horas da noite, teriam que estar nas suas respectivas maltas, sob pena de o vigia encerrar as portas e terem que dormir ao relento.
Para dar asas à paixão, os casais procuravam um pinhal que havia na seca, situado numa ribanceira, que criava zonas ocultas aos olhares de quem por ele passava, ou o canavial, que ladeava a vedação da seca, até à Telha.
 Usavam um nome de código que era: "Aviar a caderneta" Consta, que a pessoa que vos está a contar esta história, é filha de um "aviamento de caderneta". Em 47, com o aproximar do final da safra, e com a mulher grávida, Manuel deita contas à vida, sem saber como evitar a ida da mulher para casa da sogra, na Beira Alta.
Quer-a junto de si, mas de Março a Setembro a Seca, não tem trabalho a não ser para os que trabalham na sua manutenção. Logo a mulher não poderá ficar na malta das mulheres, e o que ele ganha, não dá para alugar uma casa.

                                               

4.9.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS... DO ESTADO. PARTE II




                                            foto minha.



                                                   II


 Na Azinheira Velha, um local cheio de história, pois lá esteve sediada uma importante  base naval portuguesa, antes e depois dos descobrimentos. O local situado na feitoria da Telha, era abrigado, estava afastado da base naval da Ribeira das Naus, embora funcionasse como complemento desta, mas suficientemente afastado, dos olhares dos espiões de outros países. Acresce a isto o facto da abundante madeira de qualidade, nos arredores, dos sapais do Coina, onde essa madeira era enterrada, num processo de preparação, para a construção das caravelas e de pertencer à vila de Alhos Vedros, onde se refugiou D. João I, depois da morte da rainha, D. Filipa de Lencastre, vítima da Peste Negra que assolava a capital.
Era portanto na Azinheira Velha, que as naus seriam construídas entre o Outono e a Primavera, chegando nesta à Ribeira das naus para acabamento. Ou vice-versa, já que segundo a história, foi na Telha, no séc. XVI, na extinta Igreja de Stº André, que D. Manuel I terá assistido ao lançamento ao Tejo da Armada de Vasco da Gama. Atingida pelo terramoto de 1755 a feitoria foi destruída. Foi pois neste local cheio de história, que em 1891 a família Bensaúde, instalou a Parceria Geral de Pescarias, dedicada à pesca do bacalhau. A tão famosa Seca de Bacalhau, de que tanta vez falo nas minhas histórias.
Em 46, Manuel apaixona-se por uma das irmãs de um grande amigo, o Varandas, homem do norte como ele.
 Certo dia, logo no início do ano, o Varandas convidou o Manuel para ir com ele ao Seixal, onde ele ia visitar a irmã a trabalhar na seca. Para Manuel foi amor à primeira vista, pois ficou perdidamente apaixonado, mal viu a jovem. Ela porém não ficou muito interessada. Primeiro, porque Manuel tinha mais oito anos do que ela, segundo porque ele tinha fama de ser mulherengo, de não se prender a ninguém, e de gastar tudo o que ganhava, com “as meninas” em Lisboa.
Por pressão do irmão, mais velho, que ela respeitava, mais do que por amor, acabou por lhe aceitar namoro. Manuel estava perdidamente apaixonado. Tinha esquecido as idas a Lisboa, e tudo o que isso implicava. Todos os seus tempos livres serviam ao Manuel para ir ver a amada.
Na verdade a Seca da Azinheira, era conhecida por este nome, embora o seu verdadeiro nome, fosse Parceria Geral de Pescarias, e a Sociedade Lisbonense de Pesca de Bacalhau, conhecida por Seca do Picado, situada na Ponta dos Corvos, ficavam em frente uma da outra, apenas separadas pelo rio Coina.




                                  Antiga Seca do Seixal. 
                                  Foto de Hugo Gaito




O meu muito obrigado a todos que ontem contribuíram para que o meu dia fosse mais feliz. Bem Hajam
 






31.8.15

A HISTÓRIA DE UM PAR DE BOTAS... DO ESTADO.


Ao lado da Igreja, o antigo colégio jesuíta, mais tarde transformado no quartel de B.C.5, e que hoje é ocupado pela Universidade Nova de Lisboa.
Foto  da net.





Aviso aos amigos: Por muito absurda que pareça esta história, é absolutamente real.


                                                        Primeira Parte

No início de 41, Manuel era um jovem de 23 anos e estava prestes a terminar a tropa, e passar à reserva, no Batalhão de Caçadores 5 em Campolide. Nessa altura porém, uma certa manhã, ao levantar-se, deu por falta das botas. Quando ele viera para a tropa, o Sr. Américo, tinha-lhe dito “Manuel, tem cuidado com as tuas coisas no quartel. Anda por lá, filho de muita mãe e de vez em quando, algumas coisas desaparecem. Se te faltar alguma coisa, não te queixes, tira essa mesma coisa a quem te ficar mais perto. Ele tirará a outro e no fim, tudo estará certo”.
Ele ouviu mas nunca lhe tinha faltado nada e aos poucos foi deixando de se preocupar. Naquele dia porém, não tinha botas para a formatura e como tinha acordara depois dos outros, já não podia tirar as botas de ninguém. A dois dias de sair tropa, Manuel, teve que participar a “perda” das botas. E tinha que pagar umas botas novas ao exército.
Como porém ele não tinha dinheiro para pagar as botas, e havia falta de mancebos nos quartéis, por via do “sangramento” para os Açores e Cabo Verde, foi-lhe proposto que ele poderia pagar a dívida ao estado com mais dois anos de tropa, voluntária. Sem outra alternativa, Manuel aceitou.
Meses depois, em Junho, num dia de licença, o Manuel, saiu e depois de várias voltas pela cidade, pensou que estava farto da vida da tropa, e que não estava para continuar mais tempo no quartel.

Decidido, mas sem dinheiro para o comboio, resolveu seguir a pé para a terra. Não seria uma viagem rápida, mas também não tinha pressa. Lá era certamente o primeiro sítio onde iriam procurá-lo. E foi andando, ficando um dia ou dois nas quintas que lhe apareciam no caminho. O trabalho do campo não tinha segredos para ele, e assim ganhava algum dinheiro, além de encher a barriga. E foi deste modo que nos primeiros dias de Agosto chegou à sua aldeia, Carvalhais, no concelho de S. Pedro do Sul. Se a mãe ficou surpresa, porque pensava que o filho estava no quartel, Manuel não ficou menos surpreso ao saber que ninguém o tinha ido procurar. Ele não sabia, que na confusão reinante do período de guerra que se vivia, ninguém dera pela sua falta. E quando o capataz da seca, chegou à aldeia para o engajamento de pessoal para a próxima safra, Manuel integrou-se no grupo.

27.8.15

SER HONESTO É CRIME?





A história que vou contar, passou-se numa pequena aldeia, do concelho de S. Pedro do Sul, nos gloriosos e loucos anos 20. Numa pequena casa tipicamente beirã, daquelas de granito que ficavam por cima da “loja” onde (quem os tinha ) guardava os animais, e os mais pobres guardavam apenas os utensílios de trabalho na terra,  a caruma, e a lenha para o fogo, viviam a Maria e o Manuel, mais os seus cinco filhos. A casa era composta por uma ampla entrada, onde num canto havia uma chaminé, e um pequeno forno de lenha onde a Maria cozia o pão. Não havia fogão, a refeição era cozinhada numa panela de ferro, com três pés que assentava directamente em cima da fogueira, que se acendia ao lado do forno, sobre uma placa metálica, assente em cima das pedras, que formavam o chão. Completava a decoração, uma comprida mesa de madeira e dois bancos corridos, que serviam na hora das refeições.
Além desta “sala”, a casa tinha mais dois quartos. Num dormia o casal, com o filho mais novo, no outro, os quatro filhos mais velhos. Nos quartos, mantas de trapo, sobre enxergas de palha de centeio, serviam de cama, na hora de descansar o corpo. Manuel, o marido trabalhava no campo quando havia trabalho, e quando não batia as portas das redondezas à procura de ferro-velho que depois vendia na Feira Velha, uma feira mensal que se fazia em S. Pedro a cerca de 9 km que o Manuel fazia com o seu burrico que ele baptizou com o nome de Tem Dias. Isto porque segundo ele o burro tinha dias em que era obediente à voz do dono e outros em que empancava e não se mexia por mais que recebesse ordem em contrário. Naquele longínquo ano de 1927 Maria estava de novo grávida. Estávamos no início de Setembro, Manuel não tinha trabalho, e nada havia para comer naquela casa. E se o filho mais velho com 9 anos, já estava a "servir" em Lourosa e já não dava cuidados os outros 4 tinham fome.  Maria pensou que tinha que arranjar comida para os filhos. O marido só chegaria à noite e quem sabe se traria ou não alguma coisa para comerem.  Deitou o bebé numa canastra que pôs à cabeça, pegou no outro pequeno ao colo, e seguida dos outros dois foi em busca de comida. Batia à porta das casas mais abastadas e oferecia algum trabalho em troca de comida para as crianças. Não pedia esmola, tinha vergonha. Mas as pessoas tinham pena das crianças e sempre lhe davam alguma coisa. Naquele dia, numa dobra do caminho deparou com uma carteira. Era uma bela carteira de pele com iniciais gravadas a ouro. A tremer Maria abriu a carteira e viu umas quantas notas. Cada vez mais assustada tirou-as da carteira mirou-as e viu que era 1 nota de mil escudos, 2 notas de 500 escudos 1  de 100, 3 de 50, e 5 de 10.
Uma verdadeira fortuna. Ao metê-las de novo na carteira qualquer coisa caíu no chão e Maria viu que era uma fotografia. Reconheceu o homem. Um doutor de uma aldeia vizinha, homem rico e influente com negócios em Lisboa e Porto. Maria pegou na carteira e foi a casa do tal  doutor. Lá chegada, puxou o sino do portão da herdade e uma "criada"  - naquele tempo chamavam-se assim, veio à porta. Maria disse que tinha achado a carteira e vinha entregá-la. A criada pegou na carteira e foi para dentro. Maria ficou à espera que ela voltasse. Quem sabe lhe daria alguma comida para as crianças. Um palácio daqueles devia ter mesa farta. Porém o tempo foi passando e a criada não voltava. Impaciente e cansada com o peso dos filhos e da barriga, a mulher puxou de novo a sineta do portão. E então a "criada" voltou.
-Entregou a carteira ao seu patrão? Perguntou Maria
- Entreguei - respondeu ela
- E o que ele disse?
-Guardou-a e não disse nada.
-  Por favor diga que eu estou aqui, que tenho as crianças com fome, se me pode dar alguma coisa para elas comerem.
-Espere um pouco que eu vou dizer-lhe.
A mulher virou costas e voltou pouco depois com uma corda.  Com lágrimas nos olhos estendeu-a a Maria dizendo.
- Eu fui falar com o Sr. Dr. e ele disse que era para eu lhe trazer esta corda. E quando eu perguntei o que lhe ia dizer, ele mandou que se enforcasse, porque uma pessoa que tem os filhos com fome, encontra uma fortuna e vai entregá-la, não merece viver. Desculpe, dói-me tanto, mas foi o que ele me disse.
Maria engoli-o as lágrimas, pegou os miúdos e virou costas pensando: 
-Que raio de País é este, onde ser honesto merece pena de morte?


20.12.12

UMA HISTÓRIA DE OUTROS NATAIS


Re-edição
 foto do presépio da Santa Casa da Misericórdia do Barreiro





Aproveito para agradecer ao J. R. Viviani do blogue "Vendedor de Sonhos" que organizou o
 1º  Contos e Prosas
um evento para divulgação de autores no qual tive a honra de participar com um conto sobre violência doméstica que alguns de vós já conheceis. 
A quem quiser e puder passar por lá é só clicar aqui
 

6.10.12

MANUEL OU A SOMBRA DE UM POVO - PARTE XLV



 Foto da biblioteca de Arte- Fundação Calouste Gulbenkian


Ainda nesse mês de Maio é publicada a obra-prima de Virgílio Ferreira, Aparição.
Em Junho, os sete membros não CEE da OECE começam a estudar em Saltjosbaden, nos arredores de Estocolmo, um plano sueco sobre o desarmamento aduaneiro progressivo.
Adenauer, que estava para se candidatar à Presidência da República, prefere manter-se como chanceler, com prejuízo para Ludwig Ehrard
Dias depois a URSS denuncia acordo de cooperação atómico com a República Popular da China
Em Julho a Espanha é admitida na OECE, seguindo-se medidas de abertura do Mercado Comum. No barracão, depois de uma conversa com o irmão e cunhada, o Manuel decide que a filha do meio vai estudar. A miúda fez os exames de 4ªclasse e admissão com distinção, ganhou uma pequena bolsa de estudos, o tio forneceria o que mais fosse preciso, e a tia comprometeu-se a dar algumas roupas da prima para que ela não fosse “a vergonha da escola” Claro que a mãe teria que as adaptar ao corpo da miúda bem mais nova e mais franzina do que a prima. Além disso a prima também ajudaria dando algumas explicações se a miúda precisasse. Ainda assim Manuel interrogava-se sobre a justiça de dar àquela filha a possibilidade que uma vida que os outros dois não teriam.
A 3 de Agosto dá-se a Revolta do Pidjiguiti em Bissau, com repressão de estivadores no porto de Bissau, ponto de partida para a guerrilha na Guiné. Segundo os dados do PAIGC, cerca de 50 mortos e cem feridos.
 No final do mês surge a Lei nº 2 100. A eleição do Presidente da República passa a ser feita por colégio eleitoral.
Setembro chegou e com ele a Seca começa de novo a preparar-se para a safra. Chegam os primeiros trabalhadores os navios estão também a chegar.
A filha mais velha do Manuel acaba de fazer 12 anos. É quase uma mulher e o Manuel não a quer sozinha em casa. Pede ao capitão Ramalheira, trabalho para ela na Seca, mas ele diz-lhe que com menos de 14 anos não. Mas se o Manuel não se importar ela pode ir para a quinta. Lá pode ajudar cuidando que a vaca não pare na nora, ou fazendo algum recado aos caseiros. Terá almoço e uma pequena gratificação. Claro que o Manuel aceita. Afinal de contas lá vai decerto comer melhor do que em casa.
 E é assim que enquanto a Lunik 2 atinge a lua, e o De Gaulle reconhece o direito à autodeterminação da Argélia na Seca recomeça a Safra com a descarga do Creoula.
Em Outubro é aberto um processo judicial contra Aquilino Ribeiro pela publicação do romance Quando os Lobos Uivam, acusado de criticar o Estado Novo face ao processo de expropriação dos baldios.
Em Novembro Humberto Delgado visita Londres a convite dos trabalhistas. Visita também a Holanda, mas não obtém autorização para visitar outros países ocidentais.
No inico de Dezembro aconteceu um verdadeiro milagre no velho barracão.  Um dia o filho regressou da escola e ao saudar o pai, eis que sai um “paizinho” alegre e sonoro. Emocionado o Manuel sentou o filho no colo e começou a perguntar-lhe várias coisas para ver como o miúdo se expressava. E o gaiato fazia-o corretamente. Toda a vida Manuel atribuiu o milagre a Nª Senhora da Conceição que se festejaria no dia seguinte.
E quase a terminar o ano, mais precisamente a 29 de Dezembro é inaugurado o sistema de transportes públicos do Metropolitano de Lisboa, na altura consistia numa linha em Y constituída por dois troços distintos, Sete Rios (atual, Jardim Zoológico) – Rotunda (atual, Marquês de Pombal) e Entre Campos – Rotunda (Marquês de Pombal), confluindo num troço comum, Rotunda (Marquês de Pombal) – Restauradores


AGRADEÇO A TODOS OS QUE ME TÊM INCENTIVADO A CONTINUAR ESTA HISTÓRIA QUE É EM PARTE RECONHECIDA POR MUITOS, E DESEJO A TODOS UM BOM FIM DE SEMANA

29.9.12

MANUEL OU A SOMBRA DE UM POVO - PARTE XLIV

Imagem do Google.



A nível internacional o início de Janeiro é marcado pelo triunfo da revolução castrista em Cuba. O ditador Fulgêncio Baptista em fuga No mesmo dia, entra em vigor o mercado comum; primeira redução dos direitos aduaneiros entre os Seis.
Dois dias depois, Fidel Castro entra triunfalmente em Havana.
Em Portugal logo nos primeiros dias de Janeiro, Humberto Delgado foi compulsivamente aposentado e pede asilo político na embaixada do Brasil. Nos meados de Janeiro, Henrique Galvão que se encontrava no Hospital de Santa Maria em regime de prisão consegue fugir, e pedir asilo político na embaixada da Argentina, donde parte pouco depois para o exílio. Corre uma petição nacional para demitir Salazar e a PIDE não dá tréguas, fazendo a detenção de dezenas de pessoas.
A meio de Fevereiro Fidel Castro, é o novo Primeiro-Ministro de Cuba, e a 19 do mesmo mês a independência de Chipre é acordada entre a Turquia, Grécia e Reino Unido.
No início de Março, a safra do bacalhau estava quase a acabar. Parte do pessoal já tinha sido dispensado até à próxima e os navios faziam os últimos preparativos para a partida. Foi nessa altura que se deu a Revolta da Sé com Manuel Serra e o major Calafate. Mário Soares chama-lhe de inspiração católica. Participariam também o major Pastor Fernandes e o capitão Almeida Santos, cujo cadáver viria a ser encontrado um mês depois no Guincho. Enquanto isso, De Gaulle decide manter, em caso de guerra, um comando nacional quanto aos navios estacionados no Mediterrâneo, dando assim um sinal de independência relativa à NATO
N primeiro de Abril é inaugurado em Espanha o monumento do Vale de los Caídos. Dois dias depois o Dalai Lama foge para a Índia e Fidel Castro visita os E.U. Ainda em Abril, precisamente no dia em que o Manuel comemorava 41 anos, Delgado parte para o Brasil. Dias depois George Papandreou funda o Partido Liberal Democrático na Grécia, e Liu Shao-ch'i é o novo Presidente da República Popular da China.
A 17 de Maio, é inaugurado o Monumento ao Cristo Rei em Almada. Era o cumprimento de uma promessa dos bispos portugueses se Portugal não entrasse na guerra. Nem Salazar nem o presidente da República estiveram na Inauguração, desculpando-se com a autonomia da Igreja, numa altura em que os clamores da revolta se ouviam cada vez mais fortes. À noite o Manuel sentou nas escadas do barracão com os filhos e mostrou-lhes o Monumento que se via iluminado para lá das águas do Rio. Ele gostaria de levar a família a ver de perto o Monumento, mas onde arranjar dinheiro para as passagens? Quando a safra acabava, a mulher ficava sem trabalho até ao regresso dos navios em Setembro, e as bocas a comer eram sempre as mesmas. Por essa altura outros problemas atormentavam o Manuel. A professora dos filhos mandara-o chamar para lhe dizer que achava um crime que a sua filha não fosse estudar dado que era uma criança muito inteligente. Dissera-lhe ainda que ela própria, ia prepará-la para o exame de admissão, e pedir uma ajuda uma bolsa ou lá o que era para ela poder continuar a estudar. Se por um lado ele ficava feliz pela inteligência da sua menina, por outro interrogava-se como iria conseguir pô-la a estudar. É que ainda que a professora conseguisse a tal ajuda, isso não era tudo. A miúda não podia ir estudar para o Barreiro com as tamanquitas de madeira com que ia para a primária, ali ao pé da porta. E as roupas? E tudo o resto? E ainda que conseguisse havia a mais velha. Saíra da escola no ano anterior, gostaria de estudar, lia tudo o que apanhava à mão e até gostava de escrever histórias. Decerto ia ficar revoltada da irmã ir estudar e ela não. Mas por outro lado a mais velha era uma moça forte, podia tinha já quase o corpo de uma mulher e podia melhor aguentar o trabalho que a segunda que fora sempre uma miúda franzina, e medrosa. Por outro lado havia o rapaz. A professora acabara de lhe comunicar que o miúdo ficava mais um ano na primeira classe. Ele até parecia um miúdo inteligente, mas era “ pelego”. Ninguém no entendia, a não ser os pais. Dizia “pachino” em vez de paizinho,  “machina” em vez de mãezinha, chamava a irmã  Elvira de “Nebida” a Lourdes de “Nudes” e por aí fora. Claro que se a professora não o entendia era natural que ele não passasse.  Mas e se ele nunca conseguisse falar bem, angustiava-se o Manuel.  Em tempos levara-o ao médico. Mas ele dissera que não podia fazer nada, que talvez mais tarde com a mudança de idade ele ficasse normal.  Mas ele já estava prestes a fazer 9 anos e nada. Um dia a cunhada dissera à Gravelina, para meter o miúdo num fole e percorrer com ele 7 freguesias.  Coisa que eles nunca fizeram. Em parte por não acreditarem na receita, em parte também porque a distância entre as 7 freguesias era de vários Kms, o miúdo era pesado e a mãe nunca mais fora a mesma mulher forte que era desde que ele nascera.
Até parecia castigo. Tanto que ele desejara aquele filho. E afinal depois que ele nascera multiplicaram-se os seus problemas. Primeiro com a doença da mulher, depois, o miúdo gostava de se isolar, de brincar sozinho. Tivesse ele uns pedacitos de madeira uns pregos e um martelo e ele brincaria uma tarde inteira sozinho. Ou um balde com água e terra. E era vê-lo entretido em grandes construções.
Assim naquela noite enquanto mostrava aos filhos o monumento iluminado lá ao longe, Manuel erguia uma prece ao Cristo Redentor, suplicando ajuda para o seu menino.


A TODOS UM BOM FIM DE SEMANA